ALESSANDRO

ZIR

 

Estilhas de um vampiro

bem refletido

 

Capítulo 10: des mères profanées

Inconscientemente, a forma mais nobre de fertilidade já lhe esposara, sobretudo, na atenção reverente e desafetada com que a avó os instruía, ele e a irmã, sobre a queda dos anjos, sobre os anjos da guarda, os apóstolos, profetas e santos, os mártires, sobre as divisões e orações dos terços e rosários. Ela que, pelo mesmo excesso de bondade, igualmente não lhes impedia de calçar seus sapatos de festa, enfiados na sapateira de pano, dependurada atrás da porta do sótão, em cuja escada, tornada barulhenta pelos saltos, desfilavam, irritantes. Ela que sobrevivia no rasgar vermelho sangue do parir, enquanto azul carregado da noite a tombar definitivo até detrás dos prédios, num desencadeado sussurro de sinfonia fantasma recém começada, dilatando como bossa pelo ouvido e extinguindo, uma por uma, as luzinhas enfileiradas ao longo do cone de fios esparramado do topo da testa, a ondular pelo pescoço, pingando nos ombros, nos seios, no lombo, nas mãos, a contornar mornos as coxas, os pés, e escorrendo entre os furos do ralo metálico, do chuveiro, imantando lágrimas estaladas dos olhos, na superfície vitrificada dos azulejos, no plano das lajes, nos riscos de cimento, desfazendo os dias da semana em escuridão, de encontrar finalmente num único pacífico susto, todos os futuros indefinidos, entrevistos, como porta entreaberta em casa vazia.

Repetir os banhos da mãe com luz apagada, cabelos desfeitos, olhos azuis vermelhos, a mão fechada comprimindo os próprios lábios, rasgados, engasgados do nariz, espremido, entupido, em partículas de tardinhas atômicas aceleradas, era comungar abertamente da cumplicidade herdada, sombria, silenciosa, desapercebida, de missa — o reconhecimento sofrido mas doce da eloqüência amorosa das apostasias, das traições, em suspenso, do avô com a negra, da mãe com o médico. Tratava-se aqui, uma vez mais, de digladiar os olhos vesgos, escutar o convulsionar mudo e totalmente afastado de terremotos e vulcões no centro da terra, fazer falar a lei que castra mas preserva, magnânima, por excesso, acordar alavancado pela interioridade cebruna e nocticolor das tábuas de araucária. De reunir o mais autêntico impossível, afastado na divisa de Vigny.

Tratava-se também de salvar e manter presentes até mesmo os que só na crueldade, insensível, do interior pornográfico, hermeticamente fechado, de pequenos complôs, entrevêem o reverberar das imagens de encanto, se em raro frisson, inconfessável, riso de delícia estranha e profunda, inadmissível, e por fim, despencado. Esposar o risco de se deixar, uma vez mais, manipular, profanar da forma mais insidiosa, descontrolada, a completamente se perder, na eternidade sacudida do barulho, virada dos olhos, da deusa, que lhe explicava e tinha desaparecido antes que pudesse terminar de escrever.

No seu lugar, Felipe, enovelado como uma grande gata, disse a Mateus, em sua alegria voluptuosa:

            — Ah bom! Que me importa se nos virem? Deixaria eu de cuspir nessa macaca?

Mateus estremeceu e levantou-se de um pulo. Apenas para, de frente ao amigo, sentir o ferrão de um beijo ameaçador sobre o V estilizado, cobrindo o fecho-ecler do jeans. Deu então um pequeno gritinho, e saiu correndo.  Ao que deram início ao ritual de se caçar pelo quarto, esbarrando pelos móveis, cacarejando e gralhando como um par de perdizes amorosas. Por fim, Mateus caiu exausto no sofá, onde permaneceu tapado pelo corpo inclinado do amigo. Mas espichava o pescoço a olhar para além da porta, pelo corredor, pressentindo a chegada, a qualquer momento, de Mariana. Passando alguns minutos, Mateus deu-se conta que Mariana não os veria, exceto se de fato chamada. Incapaz de resistir à atração daquele que tinha recém se mostrado tão implacável contra a esposa indefesa, cochichou no ouvido do amigo, girando, entre o polegar e o dedo médio, sobre o indicador, a própria aliança:

            — Oh, você não ousaria!

            — Não ousaria  c u s p i r  naquilo, naquela  m a c a c a ? — bradou Felipe a plenos pulmões, eriçado, em brutalidade deliberada.