ALESSANDRO

ZIR

 

Estilhas de um vampiro

bem refletido

 

Capítulo 9: elementos da formação


E o sol apareceu à noite, com toda nitidez. Era já março, e poucas pessoas restavam na praia. Não houve tumulto, sequer uma rajada de vento. E ele olhava para a irmã, que olhava para ele, e para a gigantesca bola de fogo, a flutuar silenciosa sobre o mar como uma frase. E olhavam também para a lua, mais acima à esquerda, e para as estrelas. E durante o tempo que levou para se erguer solene como reflexo intenso de um imenso disco incandescente, das águas à atmosfera límpida, sem nuvens, de mi bemol da noite, ninguém saiu correndo à rua, os passantes não interromperam a caminhada mais que o necessário para um aceno. E quando os dois voltaram a casa para relatar aos pais o ocorrido ininteligível, a mãe se limitou a ir até o portão dar uma olhada. E depois de jantarem, o insólito tinha desaparecido, sem nenhum registro. Mas Olek sabia que tinha visto, ao lado da lua, à noite, o sol, sem que nada se alterasse, as ondas, aliás, mais calmas agora do que nunca, rasas, em espuma sob a lua pálida.

Na tela da Globo, reprise no Fantástico do capítulo final feliz de novela, imagem em close do galã e da mocinha unidos num beijo lírico. Em seguida, duas mortes misteriosas: desaparecido por cerca de quatro dias, o ator E. A. P. é encontrado no interior do Rio de Janeiro, sujo, ferido e delirante, vestido em roupas e sapatos que provavelmente não seriam seus, vindo a morrer poucas horas depois no hospital, sem nada declarar que fizesse sentido, aos quarenta anos de idade. O corpo de I. V. Merla é retirado do rio Guaíba, em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, na manhã de ontem, depois de incidente em que a pequena goleta do marido da ex-miss universo teria afundado durante violenta tempestade de verão na noite anterior. Além do casal, afogou-se também o empregado de dezoito anos que tomava conta da embarcação. Puderam ser reconhecidos pelas roupas, mas não pelos rostos. Ao pegar uma carona para fugir da polícia, a escritora carioca Isabela Garcia dá à luz em plena Avenida Paulista.

Tais cenas, abrigando a contradição incompreensível entre a lembrança de um sentimento eletivo incondicional e o nada que o cerca, e por vezes o atravessa, forçavam Olek a se auto-aperfeiçoar, se cultivar e desenvolver. Compreenderia o que significava tocar bem: o fruto de uma incansável e perpétua insistência em fluência, graça, facilidade e até mesmo descuido. Porque se apóia num complexo atirar de estrelas, galáxias, espalhadas no espaço interior do cérebro, afastadas como neurônios. E dedos que se articulam, subdividem, multiplicam em fibras, em pesos de átomos, magnetizados aos conjuntos, no sistema flexível do corpo. Vindo da capacidade de dormir por milênios, confiança absurda em afinidades a se estabelecerem por si próprias, a garantirem os resultados pela repetição, mas independente de planejamento obsessivo — casual hits on Echelon. Porque o sucesso mundano não é senão o pulular cômico-insidioso das verdurinhas sob o descer inexorável de um cutelo de entidade africana invisível: seu segredo está no ritmo que é a lei de suas múltiplas configurações.

Daí a importância de certos princípios ulissianos, suportar e se manter fiel à meta cuja realização não se imagina possível, nem próxima, num desprezo diligente por qualquer mera flutuação exterior. Permitir a emergência do grande ímã, anônimo, ao qual se pode aquiescer destilar se não dissolver, encontrar um nome, graças ao seu senso pré-histórico do ridículo, que permite afrontar qualquer ridículo histórico numa seriedade sem vergonha e presciente, a reverenciar brumas, luares, pradarias, rochedos, um cavalo xucro e visitas de deusas, vistas ou descritas para além das 3000 páginas solitárias da manhã recolhida.