BENTO CARQUEJA

Bento Carqueja (curriculum vitae) - Index

Adaptado de um artigo de Hugo Rocha publicado n' O Comércio do Porto

O gigante

Foi, integralmente, um lutador. A sua situação na vida, a sua prosperidade pessoal, a altura dos seus conhecimentos, tudo representa o prémio concedido pela Providência aos que souberam viver, bem servindo Deus e os homens.

Desde criança, trabalhou. Ninguém lhe conheceu jamais desânimos ou descrenças. Os seus desgostos, as suas desilusões, as dores imanentes a todo o ser humano foram curtidos com a força de alma dos eleitos.

Pelo temperamento de batalhador, em prol do seu jornal - a sua vida! -, pelo esforço constante empenhado na vida que viveu, pelas proporções invulgares do seu espírito, Bento Carqueja foi, verdadeiramente, um gigante.

Na verdade, seria preciso um volume - dos maiores - para que à acção de Bento Carqueja, em tantos terrenos da actividade humana, como jornalista, como pedagogo, como catedrático, como ecónomo, como escritor, como conferencista, como académico, como orador, como filantropo, fosse dado o necessário relevo.

Dentro e fora da sua Pátria, Bento Carqueja foi Alguém. Os meios intelectuais mais represeritativos do pensamento mundial conheciam a personalidade do escritor e jornalista português, que, cedo, muito cedo, afirmou a pujança e a qualidade da sua inteligência privilegiada.

Das suas viagens na Europa e na América ficou, sempre, um rasto luminoso. A sua forte e inconfundível individualidade sabia impôr-se, sem esforço. Ao receberem-no, ao louvarem-no, nas terras estranhas por que passou, foi, sobretudo, o homem de cérebro e de coração aquele com quem se requintou em recepções e louvores.

Na sociedade portuguesa, Bento Carqueja deixou um vácuo que, mui dificilmente, será preenchido. As mais altas esferas sociais do País conheceram-lhe o trato fidalgo e gentil. Foi querido de chefes de Estado, de chefes do Governo, de ministros, de diplomatas, de altos funcionários.

Tendo podido ascender, por seus méritos e virtudes, pelo seu conhecimento da coisa pública, pelo seu patriotismo indefectível, pelo prestígio do seu nome, pela sua própria aura intelectual, aos mais altos postos da governação, quis, apenas, a cátedra de professor e a secretária de director dum jornal.

Isento do morbo político, preferiu, sempre, na concordância perfeita com os interesses da sua Pátria, ser um bom português, um português que todos pudessem respeitar e estimar.

As gerações académicas que passaram pelas suas aulas recordam-se, ainda, do mestre bom e amorável que sabia premiar o esforço dos alunos, do amigo complacente que sabia compreender e desculpar.

Não é só a sua terra natal, a sua querida Oliveira de Azemeis, não é só a sua terra adoptiva, o seu idolatrado Porto, que lhe devem inapreciáveis favores. O seu maior devedor é o País. Portugal inteiro deve a Bento (arqueja um apostolado férvido e operoso, um apostolado de muitos anos.

Nos seus livros, nos seus artigos, Bento Carqueja evidenciou, continuamente o seu portuguesismo quente e vibrante, bem digno de ser tomado para exemplo.

Nas colunas deste jornal, do seu jornal, os superiores interesses da Pátria tiveram, sempre, um caudilho devotado e infatigável. As iniciativas tomadas por O Comércio do Porto, em benefício desta ou daquela zona do País, deste ou daquele núcleo português, partiram da vontade firme e recta, do espírito preclaro dum verdadeiro português.

A obra de O Comércio do Porto, no capítulo da caridade, é, ninguém o ignora, a obra de Bento Carqueja. Desde as creches para os pequeninos às esmolas para os que nada têm, foi o coraçãoo de Bento Corqueja, continuador zelosíssimo de tradições de bem-fazer, que tudo orientou e promoveu. Os pobres, os desprotegidos da sorte devem-lhe, na verdade, muito. Podendo gastar o remanescente do seu tempo em ocupações que lhe solicitassem, mais agradàvelmente, o espírito, preferiu consagrá-lo aos deserdados, fazendo do seu jornal, tanto quanto possível, um baluarte em que todos os desgraçados pudessem encontrar defesa, nas horas de dor mais cruciante.

Herdeiro das virtudes de seus maiores,cuja memória constituia um dos seus cultos mais caros, soube valorizar, pela vida fora, o alto património moral que lhe haviam legado.

Tendo considerado, sempre, sagrado dever e respeito por esse património, fez de O Comércio do Porto uma espécie de magistério, em que fortalecia o espírito só com a evocação daqueles cujo nome herdara e cujo esforço se propusera honrar.

Bento Carqueja personificava o seu jornal. Soldado vigilante da sua própria obra, para ela vivia, nela consubstanciava os seus mais puros anseios.

É preciso tê-lo visto, como todos nós o vimos, no seu gabinete, no seu posto de supremo comando. Dali, irradiavam para todo o jornal ordens, ideias, iniciativas as mais várias. Homem, simultâneamente, de pensamento e de acção, não esperava que os seus ditâmes tivessem realização. Cooperava, activamente, entusiàsticamente, apaixonadamente, na realização do seu pensamento. Era, portanto, um obreiro da sua própria obra.

O jornal era a sua ocupação absorvente, a sua ocupação de todos os instantes. Jubilado, desobrigado da cátedra universitária, todo o seu potencial de espírito se concentrou, por assim dizer, na sua banca jornalística. Activo, em permanente vibração intelectual, passou a consagrar ao jornal todos os momentos que o magistério havia deixado livres. E é impossível conceber chefe mais acrisolado, director mais consciencioso, jornalista mais alertado do que ele.

Foi, sempre, através de tudo, o conselheiro e o amigo. Admirado, respeitado, querido, era, na realidade, o orago do jornal. Sabia incutir ânimo, desfazer dúvidas, eliminar receios. A sua palavra, o seu conselho, mesmo já quando a fraqueza física o abemolava, eram uma espécie de tónico, criavam energia, predispunham ao esforço frutuoso e profícuo.

Sendo um grande chefe e um grande amigo, era também, um grande companheiro.

Grande do seu País, deixou um nome que é louvado, que não pode ser esquecido. Cá dentro, no jornal de que foi o melhor, o mais exemplar, o mais esforçado obreiro, a sua figura admirável agiganta-se, se é possível. Nimba-a a nossa saudade, a nossa perdurável ternura.

Nos vários sectores da actividade intelectual em que a sua acção se fez, mais fortemente, sentir, Bento Carqueja deixou vincados os traços duma personalidade excepcional, digna, em tudo de admirção e respeito.

O curriculum vitae de Bento Ccrqueja, é dos mais vastos.

Ao fim, quase, de setenta e cinco anos de vida, a sua actividade exemplar disseminou-se, sem, todavia, se perder.

Há que salientar, porém, três ou quatro aspectos do esforço ingente de Bento Carqueja, que bastam para impor e agigantar uma individualidade como a sua.

O jornal, a cátedra, a agricultura e a caridade são, talvez, quanto a nós, esses aspectos de maior saliência.

A sua paixão pelo ensino está bem traduzida, por exemplo, no interesse que tomou pela construção do edifício principal da Universidade do Porto, no carinho com que regeu, anos seguidos, a sua cadeira de Economia Política, no impulso que deu a várias outras instituições escolares.

Em prol da agricultura, o que fez tem jus à admiração e à gratidão da lavoura portuguesa.

A criação das Escolas Móveis Agrícolas, mais de trinta missões, mantidas por diversos beneméritos e espalhadas por quase todo o País, especialmente no Norte e no Centro, havendo algumas que se demoraram, na nobre cruzada da agricultura, mais de um ano, na mesma localidade, tem de ser lembrada,
em primeiro lugar.

O jornal «O lavrador», que todo o País conhece e que, nos primeiros anos, foi mantido pelo grande benemérito José Cláudio de Mesquita, foi, também, de sua iniciativa, bem como a publicação da «Biblioteca do Lavrador», que contém, hoje, algumas dezenas de volumes, qual deles o mais interessante e útil.

Da caridade e da assistência quanto se poderia dizer! A sua obra das creches bastaria para lhe perpetuar o nome.

o infortúnio interessava-o. Procurava dar-lhe remédio, interessando, por seu turno, outros corações bem formados, para que o auxiliassem na cruzada em que se empenhava.

Os Bairros Operários, construídos, por sua iniciativa, no Monte Pedral (1899), em Lordelo do Ouro (1901) e no Monte das Antas (1903), são a prova bem frisante de quanto interesse lhe merecia a situação da classe operária.

Do que ele foi, como jornalista, fala, eloquentissimamente, O Comércio do Porto. Toda a obra de O Comércio do Porto, que era, apenas, seis anos e meio mais velho do que o seu director, quando faleceu, é, pràticamente, sobretudo desde 1884, a obra de Bento Carqueja. O melhor retrato de Bento Carqueja está, talvez, nessas linhas singelas dos dados biográficos, que damos a seguir.

     

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