REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
ISSN 2182-147X
NOVA SÉRIE
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Adílio Jorge Marques

ADILIO JORGE MARQUES & SUSANA ZANELLA
“A Ceia do Senhor”: 1Cor 11, 17-22

1 – Perícope: 1Cor 11, 17-22 – “A Ceia do Senhor”: 

17Dito isto, não posso louvar-vos: vossas assembléias, longe de vos levar ao melhor, vos prejudicam. 18Em primeiro lugar, ouço dizer que, quando vos reunis em assembléia, há entre vós divisões, e, em parte, o creio. 19É preciso que haja ate mesmo cisões entre vós, a fim de que se tornem manifestos entre vós aqueles que são comprovados. 20Quando, pois, vos reunis, o que fazeis não é comer a Ceia do Senhor; 21cada um se apressa por comer sua própria ceia; e, enquanto um passa fome, o outro fica embriagado. 22Não tendes casas para comer e beber? Ou desprezais a Igreja de Deus e quereis envergonhar aqueles que nada têm? Que vos direi? Hei de louvar-vos? Não, neste ponto não vos louvo”. 

Delimitando o texto, a perícope está situada no capítulo11, versículos 17-22 da Primeira carta de Paulo a comunidade de Corinto. O objetivo é apresentar o bom comportamento na assembléia ou comunidade, a partilha e comunhão entre os membros como atualização da prática de Jesus. A “ceia própria”[1] de cada um é posta em contraste com a “Ceia do Senhor”, exigindo celebração comum no amor e repelindo as divisões geradas pelo egoísmo. Um das versões antigas escritas mais antigas que se refere à instituição e celebração da Eucaristia. Bíblia de referência: Bíblia de Jerusalém[2].  

2 - Contexto literário

O texto antecedente – A conduta dos homens e das mulheres, 1Cor 11, 2-16 - apresenta uma espécie de hierarquia: Deus – Jesus Cristo- homem – mulher. Paulo pretende nessa passagem salvaguardar as assembléias litúrgicas de tudo aquilo que poderia ofender a santidade de culto[3], ou ainda manter nas reuniões cultuais da comunidade cristã um clima de decência e santidade. Para alguns autores, a passagem manifesta uma característica machista de Paulo, outros, porém, chegam a afirmar que esse trecho não pertence a ele, mas que seria sim uma colocação tardia na carta*.

            Ao se analisar o conteúdo, o que fica mais evidente da postura de Paulo, é que antes de tudo, ele quer apontar que a diversidade entre homem e mulher perde a razão de ser no Senhor[4], sob o olhar de Jesus Cristo e em vista da salvação que é para todos, onde não pode haver separação entre homens e mulheres. Com isso este texto enfatiza que o lado humano egoísta apresenta obstáculos à comunhão com Deus através do Senhor, como conselhos pragmáticos de boa conduta.

            No texto subseqüente, estão os versículos 23-34 do capítulo 11 – A Ceia do Senhor. Paulo faz menção a instituição da Eucaristia. Ele começa o discurso usando as palavras receber e transmitir, que o colocam na posição de um intermediário numa cadeia de tradição da mensagem de Jesus a sua comunidade[5]. Sublinha o caráter histórico da eucaristia ou da celebração eucarística. Afirma a eucaristia não como um evento mítico, fora dos limites do tempo, mas como um acontecimento real, situado dentro de um contexto histórico e de salvação porque deixado pelo próprio Jesus. Não se trata apenas de uma lembrança psicológica, mas de uma atualização da última ceia de Jesus sob forma sacramental, no qual a comunidade cristã participa eficazmente do evento salvífico da morte e ressurreição de Jesus[6].

3 - Pré-texto

            A comunidade de Corinto era formada por vários grupos, sendo que a maioria dos cristãos vinha das camadas mais pobres, e grande parte da população era formada por escravos e libertos. Os cidadãos livres eram a minoria e formavam a classe rica. São esses ricos que colocam suas casas a disposição para as reuniões da comunidade cristã[7], sendo que as reuniões nestas casas de certa forma ajudava a não levantar suspeita perante as autoridades. No entanto esse tipo de organização também apresenta conseqüências negativas: o dono da casa acaba por assumir uma atitude de desprezo com os mais pobres. Apenas alguns são privilegiados, enquanto outros não, há separação de lugar, o próprio tratamento na mesa é diferenciado. Se não há comunhão, não há ceia e, sem esta, não há comunidade[8].

            Muitos membros da comunidade de Corinto só tinham em comum o cristianismo, pois havia diferença em nível de conhecimento e financeiro já citado, de habilidades políticas e também em suas expectativas (até mesmo em relação a pregação de Paulo). Alguns viam na Igreja um meio de se chegar a outras oportunidades que de certa forma haviam sido negadas pela sociedade. Em síntese, havia um espírito competitivo. Além dos motivos econômicos e sociais que criavam conflitos e tensões entre os vários grupos da comunidade cristã, havia também as questões culturais dadas pela relação com o próprio ambiente doméstico[9]. Vários autores definem a comunidade de Corinto como uma comunidade turbulenta, apesar de muito amada por Paulo[10].

O mal estar era grande entre os fiéis e os não fiéis presentes, em uma comunidade onde havia uma supervalorização dos carismas espetaculares em detrimento aos mais simples. As reuniões tornavam-se caóticas com grande facilidade, onde o ágape era deixado para segundo plano.

            A necessidade de uma firmeza interior aparece nesta carta, pois Paulo exorta os cristãos a agir de forma a respeitar a consciência errônea do outro, não querendo dizer que deva se submeter ao erro de julgamento do próximo. Isso não significa ser estranho a experiência cristã de estar no mundo, mas sim uma rígida obediência ao Senhor estando no mundo[11]. Ser fiel às tradições transmitidas leva, para Paulo, à constante “ligação” com a corrente apostólica que une cada cristão ao Deus vivo que está representado na Ceia do Senhor, como veremos nos versículos 17 em diante. Citar nas fraquezas humanas os aspectos sociais mostra uma intensa preocupação paulina com os costumes humanos que podem, então, levar ao enfraquecimento dessa fé maior. A questão do penteado mostra a importância de se ter controle sobre a sua cabeça, estando de forma a atender os costumes da época e a não chamar mais a atenção do que a própria mensagem do Senhor.

Este pré-texto mostra referência à situação cultural da mulher, propiciando o estudo de uma antropologia feminina em Paulo[12], como a participação das mulheres com a cabeça descoberta e os tipos de cabelo[13]. 

4 - Crítica textual

Paulo inicia a perícope denunciando as divisões ocorridas no interior da comunidade, por isso tem a pretensão de dar instruções precisas. Sua maneira de intervir, apresenta ironia: “Vocês acham que devo elogiar?” (v.17); e censura: “Não tendes casa para comer e beber?” (v.22). Segue com vários questionamentos que deixam a impressão de se tratar de uma pedagogia utilizada pelos filósofos, cujo objetivo é levar a pessoa tirar suas próprias conclusões, ou buscar a partir do conhecimento já adquirido chegar por si mesmo a uma resposta.

A Ceia do Senhor para Paulo é um convívio com Cristo e com os irmãos. A refeição comum é a expressão da fraternidade e do amor, representando desse modo as novas associações de pessoas de diferentes culturas, posição social, sexo e tradição religiosa. [14] É uma refeição na qual o povo de Deus come o alimento espiritual. Neste ato, o povo de Deus aprece como comunidade da nova aliança. A comunhão do povo implica a união com Cristo e de uns com os outros; é uma participação koinonia no corpo de Cristo. [15] 

Por esse motivo, Paulo reprova com categoria e decisão as atitudes tomadas no banquete fraterno, pois não se trata da Ceia do Senhor, mas da própria ceia (v.21). Na realidade o que estão consumindo não é a Ceia do Senhor, (= Kyriakón deípon), mas uma ceia particular (= idion déipnon)[16]. Desse modo, a ação se torna inválida, porque se trata de uma prática de injustiça da parte dos participantes. No Antigo Testamento há uma sinalização para a problemática, em Is 1,10-20, as solenidades são declaradas detestáveis, ainda em Is 58 aparece um questionamento da validade do jejum quando não acompanhado de uma vivencia concreta, semelhante a isso a falta de caridade torna inválida a celebração da Eucaristia.

A comunidade vive um momento de divisão, e é nesse contexto, e a partir dessa realidade que Paulo critica os abusos, a falta de decoro e sensibilidade no banquete comunitário. Em termos concretos, aos ricos ele pediu que não privassem dos bens, mas que partilhassem com os pobres. Há um aspecto exortativo, em que ele pede uma revisão de conduta, todo o questionamento proposto tem a intenção de convidá-los a retomarem o caminho. Caminho esse que na mensagem de Paulo é o próprio Jesus morto e ressuscitado. Conclui a perícope quase da mesma forma como começou: “Hei de louvar-vos? Não, neste ponto não vos louvo” (v.22). Paulo afirma neste ponto, o que deixa aberta a questão de mesmo sendo uma comunidade problemática como muitos autores a colocam e de fato é pela proposta e preocupação de Paulo, há também muitos aspectos positivos e que são apreciados por ele.

5 – Exegese:

5.1 – A censura (vers. 17 e 18): Paulo faz duras censuras aos coríntios a propósito de suas assembléias da Ceia do Senhor, com uma nítida avaliação negativa da práxis eucarística. Foi informado (vers. 18) que muitas confusões comprometiam gravemente o verdadeiro significado da Eucaristia, sobre a qual Paulo transcorrerá nos vers. 23 a 34 deste capítulo[17]. Vemos como havia uma forma já ordenada na mente de Paulo de tentar controlar as comunidades distantes através das informações que recebe. De influência helenística clássica, Paulo transfere suas informações e suas mensagens de origem judaica para dentro deste estilo. Escreve de forma personalizada, sendo objetivo e falando de coisas concretas que afligem o ser humano e que podem corromper a tradição que perpetua com os demais Apóstolos[18]. Havia grupos sectários que queriam a prevalência de sua cultura sobre a Boa Nova, quando para Paulo estava claro que era a Nova aliança que levava à salvação (Lc 22, 14-20). Sabe-se que as divisões são inevitáveis, apesar de ser uma forma de pecado, ainda mais em uma comunidade heterogênea como a de Corinto[19]. De qualquer modo a censura dirigi-se às reuniões eclesiais onde não estaria ocorrendo a solidariedade. 

5.2 – “Em primeiro lugar...” (vers. 18): Parece que o texto Paulino quer elencar motivos para o caos em Corinto, mas este termo não encontra uma seqüência clara no texto seguinte. Talvez se ligue ao versículo conclusivo do texto subseqüente (vers. 34) onde Paulo diz que irá regulamentar a comunidade quando lá chegar[20]. Paulo parece mostrar a função do Apóstolo perante a comunidade, mostrando uma dupla função (válida até os dias de hoje): comunicar a palavra à comunidade e descobrir a palavra na vida dessa comunidade, dando-lhe realidade e eficácia, principalmente em termos eclesiais e nos momentos críticos[21]

5.3 – A virtude comprovada (vers. 19): Para Paulo os verdadeiros cristãos deverão fazer todo o possível para manter a unidade, que é expressa na Eucaristia. Mostra que há uma separação do “joio do trigo”, o que também não alivia a comunidade do peso de seus erros. Ele conhece a Palavra do AT, onde aparecem situações de injustiça dos oferentes e participantes, como em Is 1, 10-20. O texto antecedente mostra um vasto “sermão” Paulino, como preparação textual, sobre o comportamento da época para homens e mulheres em uma situação cristã como a da Ceia do Senhor. A questão dos cabelos ressalta e exemplifica as virtudes que devem estar postas ne mesma mesa onde está a Ceia que leva à comunhão com o Cristo. Ocorre uma exortação de que todos que comungam com Ele estão nele, assim como o próprio Paulo e os demais que receberam a missão apostólica[22].  

5.4 – A ceia particular (vers. 20 e 21): Especificamente aqui se vê manifestações do afrouxamento da união da comunidade, no momento solene da Ceia, o que torna ainda mais grave a situação para Paulo[23]. Sabia-se que nem todos se sentavam à mesa para a Ceia em comum, onde os que tinham mais posse estavam sentando à parte. Com isso, os coríntios estavam consumindo uma ceia particular (ídion déipnon) em detrimento da Ceia do Senhor (kyriakón déipnon)[24], evidenciando uma forte antítese. O gesto exterior fica esvaziado de seu profundo significado. “Alguns passam fome...” mostra a anulação da convivência crística entre todos que são iguais perante Ele. A celebração eucarística torna-se uma ilusão.  Não Igreja, a eclesialidade é quebrada, pois não ocorre a verdadeira comunhão[25]. É certo que a falta de caridade da comunidade impede que a Ceia seja a do senhor, apesar de dizerem as palavras aparentemente corretas. Ministros inadequados bloqueiam a passagem da graça sacramental[26]. Os coríntios estão desprezando a verdadeira Igreja divina e humilhando aos mais necessitados. Afrontar aos pobres é afrontar a Deus[27]. Todos os que participavam do ato de culto traziam algo para comer depois deste. E era justamente nesta refeição pós-assembléia de oração e culto que surgiam as discórdias[28]. Celebra-se aquilo em que se acredita. A comunidade e a liturgia devem estar unidas em prol da mesma busca. Paulo mostra que na celebração da Palavra, da Eucaristia, expressamos sempre a nossa fé. E esta deve ser vivida. Não se pode prestar culto a Deus, ao Senhor, ignorando a comunidade e conseqüentemente os mais necessitados. Para os irmãos a Palavra é dada em pé de igualdade. E é na comunidade que se vive a fé. O que está em jogo desde a primeira Ceia é o todo da vida, e não as particularidades, e daí a comunhão. Sem isso a assembléia não será “memória” da Ceia do Senhor[29].  

5.5 – A ironia (vers. 22): Em ligação direta com a exegese anterior, através de perguntas Paulo ironiza e protesta, mostrando sua autoridade e sabedoria em relação à situação caótica desta comunidade. É na própria casa, particular de cada um e isoladamente, que os coríntios podem comer e beber até a embriaguez da carne[30]. Exorta a não confundir as reuniões eclesiais com mera refeição do pecado. Ceiar com o Senhor é estar com Cristo e com os irmãos. A reunião eclesial exprime participação da graça com os demais. Paulo oferece um profundo ensinamento eclesial e comunitário. Mais uma vez fica claro que o desprezo e a afronta aos mais necessitados equivale a desprezo e afronta também ao Senhor. Paulo quer chocar colocando questões que remetem ao egoísmo particular. Não há koinônia (comunhão) mesmo havendo diversidade na comunidade[31]. Fica clara a referência: temos que louvar aos homens ou a Deus? Para Paulo, a resposta é evidente. Alguns famintos se apressavam enquanto outros ficavam sem nada (vers. 21). Por isso Paulo pergunta: “Não tendes em vossas casas para comer e beber?”. Como havia uma nítida separação entre a Ceia do Senhor e a refeição final, a ironia de Paulo enfatiza a crise que se estabelecia na comunidade mas que ninguém conseguia controlar até a sua intervenção. A gula enquanto pecado fica evidente aqui, pois não há partilha igual, e mantém-se a desigualdade social mesmo após a refeição final, ou seja, a desigualdade permanece entre os irmãos que irmãs que assim chegaram para o culto. Para Paulo era o “pão de Judas” em detrimento aos “Lázaros da vida”.[32] A comunidade que não conseguisse redimir todos os seus membros não havia realizado a sua páscoa, em processo incompleto de libertação pessoal que deveria cotidianamente ser celebrada e relembrada através da Eucaristia. E não há “novo êxodo” sem que se passe pela diaconia e a pequenez (Lc 22,26)[33]. Se Jesus come com os pecadores, Paulo só pode censurar aqueles que querem comer sós[34].

6 – Hermenêutica:

Há uma relação entre a perícope escolhida e os temas atuais? Podemos analisar as palavras de Paulo aos coríntios como sendo palavras que se perderam no tempo? Quantas questões hermenêuticas podem ser colocadas a partir de 1Cor 11, 17-22? O amor está presente nas verdades e ironias desta carta paulina. Até hoje a tese central do cristianismo é o amor.

Sabemos que em 25 de janeiro último, por exemplo, o Papa Bento XVI apresentou ao mundo a primeira carta encíclica de seu pontificado, intitulada “Deus Caritas est” (Deus é amor)[35]. Voltamos, então, a atenção para o tema central da mensagem do Cristo: o amor. Aí está a imagem cristã de Deus, bem como a imagem do ser humano e de seu caminho.

Este tema nunca sairá das assembléias e reuniões em torno do tema do Senhor, pois é oportuno e relevante no mundo de hoje como o foi nas idades que se passaram. O desamor cresce, os meios de comunicação mostram a desigualdade social que gera a miséria e a exclusão, lideranças públicas governando em benefício próprio e de forma totalmente egoísta, além da fome, desemprego, violência em todos os lares e níveis. Muitas vezes em nome de Deus se estabelece uma banalização da palavra amor, e também das atitudes que nos ligam a esse amor. Hoje é uma palavra superficial. O Papa nos diz: “O amor é possível, e nós somos capazes de o praticar porque fomos criados à imagem de Deus (n. 39)”.

Na verdade o texto papal não traz nada de novo, mas esta é sempre a novidade central da fé cristã, sempre atual e oportuna: a nova lei ou aliança se resume principalmente no amor. Aspectos como eros e ágape, amor no corpo e na alma, matéria e espírito, temporal e eterno, amor a Deus e ao próximo, caridade e justiça social. Estas são as realidades que nas suas aparentes diferenças estão relacionadas. Resgata-se a visão do mundo e do ser humano como um todo complexo, como ser uni-dual, afirmando sua dualidade, diferentemente de viver no dualismo.

Paulo fala dos glutões e dos sem caridade para com os pobres da comunidade. Sabemos que três palavras gregas buscam descrever o amor enquanto Eros (tendência natural do amor humano e das coisas da carne) e ágape (amor oblativo, doação). Os textos bíblicos privilegiam o último termo para se referir ao amor. O ser humano é composto de corpo e alma. O homem torna-se realmente ele mesmo quando estes estão em unidade, quando Eros e ágape estão unificados. Eros é amor ascendente, de si próprio, como nos glutões de Paulo. Ágape é amor descendente, para o outro. Eros é força vital que pode conduzir ao amor, esquecendo de si na fascinante descoberta do outro, mas deve ser refreada pela fé e pelo exercício da vontade para se tornar ágape. O Eros necessita de disciplina, purificação, para não se reduzir simplesmente ao prazer de um instante, mas tornar-se cuidado do outro pelo outro. Só quando ambos se fundem numa unidade é que o ser humano torna-se pleno dele próprio, podendo então ser ou estar pronto para receber o Cristo eucarístico. Assim, o amor de Deus é Eros e ágape em sua unidade. Paulo compreende que o Logos encarnado tornou-se alimento para todos, no momento da Eucaristia que é quando Deus vem ao encontro dos fiéis, daqueles que foram separados do joio (vers. 19 de nossa perícope e correspondente exegese).

Paulo mostra o caráter social da comunhão sacramental pela Eucaristia, onde todos ficam unidos ao Senhor. A comunhão tira cada um para fora de si mesmo, projetando-nos para a união com o Cristo e com todos os demais irmãos. Todos em um só corpo. Mas, ao que parece, levou um tempo para que as comunidades compreendessem isso, como ainda hoje a comunidade globalizada ainda tem dificuldade de compreender tal fato. Com isso Paulo mostra que a caridade é um dever eclesial; a “Igreja exprime sua natureza anunciando a Palavra (kekygma-martyria), celebrando os sacramentos (liturgia), a serviço da caridade (diakonia)”[36],[37].

            Além dos relatos da Instituição da Eucaristia, de Mt (26,26-29), Mc 14,22-25) e Lc (22,15-20), temos também aquele de Paulo (1Cor 11,23). Este relato é diretamente indicado por Paulo como uma revelação. “De fato, eu recebi do Senhor o que vos transmiti: Na noite em que ia ser entregue, o Senhor tomou o Pão e, depois de dar graças, partiu-o e disse- Isto é o meu corpo entregue por vós. Fazei isto em minha memória.- Do mesmo modo, depois da Ceia,tomou também o cálice e disse: - Este cálice é a Nova Aliança no meu sangue. Todas as vezes que dele beberdes fazei-o em minha memória. - De fato todas as vezes que comerdes deste pão e beberdes deste cálice estareis proclamando a morte do Senhor até que ele venha”[38]. Esta versão de Paulo é a primitiva. Precede aquelas dos Evangelistas e e´ formadora.

            A Eucaristia se celebrava entre as comunidades primitiva “depois de uma refeição”, como em 1Cor 1,25 e à semelhança da Última Ceia. Uma ceia em comum era um sinal religioso. Paulo recomenda nos versículos anteriores à Instituição, respeito muito grande para com a Eucaristia: que não haja dissensões, brigas, egoísmos... Ninguém deve comer e beber indignamente o corpo e o Sangue de Cristo. “Todo aquele que comer do Pão e beber do Cálice do Senhor indignamente será culpado contra o corpo e o sangue do Senhor... quem come e bebe sem distinguir devidamente o corpo, come e bebe a própria condenação” (1,27.29). Para Paulo esta celebração era a força do cristão. E alertava aqueles que tomavam tibiamente a Eucaristia: “Por isto que há entre vós muitos enfermos e doentes e não poucos tem morrido”. Enfermos e doentes como fracos na fé e os que tem morrido os apóstatas.

  A Igreja recebe a sua vida dos mistérios de Cristo e cada celebração que ela realiza é «memória»[39], atuação e participação em tal mistério, como vemos, por exemplo, nas profissões de fé do NT que são sempre narrações dos eventos [«mystéria»] da vida de Cristo, finalizadas a proclamar o único evento [«mystérion»] do Kýrios. Os sacramentos estão no «mystérion»; o «mystérion» está nos sacramentos[40]. A Eucaristia apresenta-se nítida de forma sacramental em Paulo. A sua doutrina sobre o batismo e sobre a eucaristia se relaciona à morte e a ressurreição de Cristo, eventos centrais do «mystérion»: no batismo tomamos posse daquilo que a morte e a ressurreição pascal são para nós (Rm 6, 3-11; Cl 2, 12; Tt 3, 5); na eucaristia revivemos a anamnesis da morte do Senhor aguardando o seu retorno (1Cor 11, 23-26).

            O que Paulo nos mostra é que o Corpo e o Sangue eucarístico não são, pois, simples memorial simbólico de um acontecimento passado; são a plena realidade do mundo escatológico em que vive Cristo[41]. Como sacramento proporciona ao fiel imerso no mundo antigo, o contacto físico com Cristo em toda a realidade do seu ser novo, ressuscitado, espiritual. O alimento se torna o verdadeiro pão dos Anjos (Sl 78,25), o alimento da era nova. Pela presença do pão e do vinho sobre o altar, Cristo morto está realmente presente na sua disposição de sacrifício. Por isto a Santa missa é um sacrifício idêntico ao sacrifício histórico da cruz e é o único que vale diante de Deus e o único que os valoriza (Hbr 13,10.15).

7 – BIBLIOGRAFIA:

[1] Bíblia de Jerusalém; Ed. Paulus; 3ª impressão; SP; 2004. 

[2] Libanio, J. B., Murad, A.; Introdução à Teologia – Perfil, Enfoques, Tarefas; 5ª ed.; Edições Loyola; SP; 2005. 

[3] Mazzarolo, I.; A Bíblia em suas Mãos; 6ª ed; Mazzarolo Editor; RJ; 2002. 

[4] ________. Lucas, a Antropologia da Salvação; 2ª ed.; Mazzarolo Editor; RJ; 2004. 

[5] ________. Paulo de Tarso – Tópicos de antropologia bíblica; 2ª edição; Mazzarolo Editor; RJ; 2000. 

[6] ________. Lucas em João, uma nova leitura dos Evangelhos; 2ª edição; Mazzarollo Editor; RJ; 2004. 

[7] ________. A Eucaristia: Memorial da Nova Aliança. Continuidade e rupturas; Ed. Paulus; SP; 1999. 

[8] Frosini, G.; A Teologia Hoje; 1ª ed.; Editorial Perpétuo Socorro; Vila Nova de Gaia; 2001.

[9] Meeks, W. A.; Os Primeiros Cristãos Urbanos, O mundo social do Apóstolo Paulo; Eds. Paulinas; SP; 1992. 

[10] CELAM; Manual de Liturgia – A celebração do mistério pascal; vol. III; Ed. Paulus; SP; 2005. 

[11] Papa Bento XVI; Carta Encíclica “Deus Caritas Est”; Ed. Paulinas; 2006. 

[12] Apostila I da disciplina “Sacramentos I”, autoria Pe. Abimar; PUC; RJ; 2006. 

[13] Barbaglio, G.; As Cartas de Paulo (I); Eds. Loyola; col. Bíblica Loyola 4; SP; 1989. 

[14] Murphy, J. - O’Connor, OP; Paulo, Biografia Crítica; Eds. Loyola; SP; 1996. 

[15] Vilanova, E.; Para compreender a Teologia; Ed. Paulinas; SP; 1998.

Notas

[1] Bíblia de Jerusalém; idem, nota a.

[2] Bíblia de Jerusalém; Ed. Paulus; 3ª impressão; SP; 2004.

[3] Barbaglio, G, As Cartas de Paulo I, p. 304.

* Brendam Byrne, em seu livro Paulo e a Mulher Cristã, comenta essa passagem, pois mesmo que a tradição manuscrita não ofereça nenhum fundamento, não deixa de ter uma certa plausibilidade, porque se cortar os versículos 3-16 há uma ligação entre o v.2 e o v.17. Ver Barbaglio, G., em  “As Cartas de Paulo I”.

[4] Barbaglio, G. As Cartas de Paulo I, p. 306.

[5] O’Connor, J.Murphy, A antropologia pastoral de Paulo – tornar-se humanos juntos, p. 193.

[6] Barbaglio,G. As Cartas de Paulo I, p.313-314.

[7] Fabris, R. Paulo Apostolo dos gentios, p.382.

[8] Mazzarollo, I.; A Eucaristia: Memorial da Nova Aliança; p. 133.

[9] Idem, p.382.

[10] O’Connor, J.Murphy; Paulo Biografia Crítica, p.279.

[11] Barbaglio, G.; As Cartas de Paulo I, p. 303.

[12] Mazzarollo, I.; Paulo de Tarso, Tópicos de Antropología Bíblica; 2ª edição; 2000.

[13] Barbaglio, G.; As Cartas de Paulo I, p.301.

[14] Barbaglio, G. São Paulo O homem do Evangelho, p.131.

[15] Fitzmyer, J.; Linhas Fundamentais da Teologia Paulina, p.130.

[16] Barbaglio, G.; As Cartas de Paulo I, p.312.

[17] Barbaglio, G.; As Cartas de Paulo I, p.308.

[18] Mazzarollo, I.; Paulo de Tarso, Tópicos de Antropología Bíblica; p. 130.

[19] O’Connor, J.Murphy; Paulo Biografia Crítica, p.292.

[20] Barbaglio, G.; As Cartas de Paulo I, p.313.

[21] Vilanova, E.; Para compreender a Teologia, p. 124.

[22] Frosini, G.; A Teologia Hoje, Síntese do Pensamento Teológico; Ed. Perpétuo Socorro; Portugal; 2001.

[23] Segundo Wayne ª Meeks, em “Os Primeiros Cristãos Urbanos”, na pág. 129, a comunidade judaica assumia a responsabilidade de resolver as discórdias internas, e Paulo, no mínimo, esperava que o mesmo fosse feito na Ekklesia. Os cristãos paulinos tomaram a escritura e boa quantidade de normas e tradições, no todo ou com algumas modificações, das sinagogas de língua grega.

[24] Barbaglio, G.; As Cartas de Paulo I, p.312.

[25] Idem.

[26] O’Connor, J.Murphy; Paulo Biografia Crítica, p.290.

[27] Mazzarollo em A Eucaristia: Memorial da Nova Aliança, ainda na pág. 133, cita X. L. Dufour que sustenta a tese de que havia uma clara confusão entre a Eucaristia,enquanto assembléia cúltica, e refeição.

[28] Idem.

[29] Idem.

[30] Barbaglio, G.; As Cartas de Paulo I, p.312.

[31] Mazzarollo, I.; A Eucaristia: Memorial da Nova Aliança; p. 133.

[32] Idem.

[33] Mazzarollo, I.;Lucas, a Antropologia da Salvação; 2ª ed.; Mazzarolo Editor; RJ; 2004.

[34] Mazzarollo, I.; A Eucaristia: Memorial da Nova Aliança; p. 133.

[35] Carta Encíclica Deus Caritas Est; Papa Bento XVI; 2006.

[36] Carta Encíclica Deus Caritas Est; Papa Bento XVI; 2006.

[37] Recomendamos ver também à pág. 117: Mazzarolo, I.; Lucas em João. Uma nova leitura dos Evangelhos; 2ª edição; Mazzarollo Editor; RJ; 2004.

[38] Bíblia de Jerusalém.

[39] Libanio, J. B. & Murad, A.; Introdução à Teologia; p. 17.

[40] Apostila I disciplina “Sacramentos I”, autoria Pe. Abimar.

[41] CELAM; Manual de Liturgia – A celebração do mistério pascal; vol. III; Ed. Paulus; SP; 2005.

 

Prof. Adílio Jorge Marques. Nasceu em 1968 no Rio de Janeiro/RJ, sendo de família lusa. Possui cidadania portuguesa. Desde muito jovem é estudioso e participante das Antigas Tradições, da História e das Ciências.

Concluiu o Doutorado em História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, após realizar intercâmbio na Universidade de Aveiro, Portugal, sendo o trabalho com ênfase na historicidade luso-brasileira. 

O tema da Tese na UFRJ versa sobre a vida e a obra do naturalista Alexandre Antonio Vandelli, personagem pouco estudado e filho do famoso paduano Domingos A. Vandelli da Reforma Pombalina.  

Possui Mestrado em Astrofísica estelar pelo Observatório Nacional (Brasil/RJ), com graduação em Física e em História. Atua como Professor de História da Ciência e de Física no Brasil. 

Email de contato: adiliojm@yahoo.com.br