PORTUGAL
9. PRÁTICA HIPERTEXTUAL - CIBERFLUXO ANAMÓRFICO?

A questão maior que se coloca a propósito da definição textual dos documentos e da sua permanência no mar do ciberespaço é esta: é a cibernética um ciberfluxo anamórfico? O novo estatuto do texto obriga a algumas considerações. Um texto em constante estado de fluxo não é um texto, é um texto em fluxo, ideia cara aos modernos. Não é o fluxo que faz o tempo, mas a ligação, e o fluxo laminar pode tornar-se turbulento . É necessário, pois, repensar o estatuto epistemológico do texto e é igualmente recomendável que se tente redifinir a noção de texto dentro daquilo que é a nossa tradição textual . Não podemos fugir à textualidade no discurso real contextualizado do quotidiano (Derrida) a fortiori não podemos fugir-lhe tão pouco no correio electrónico.

Com um processador de texto convencional um documento define-se como um bloco linear de texto que tem um começo, um meio e um fim. Platão quer que um discurso tenha o corpo bem constituído de um grande animal, com cabeça, ventre e cauda. É mesmo por isso que nós, bons e velhos platónicos, sabemos e não sabemos o que é um discurso sem cauda nem cabeça, afalo e acéfalo. Sabemos: é aquilo a que chamamos o sem sentido. Mas não sabemos. Não sabemos o que fazer do “sem-sentido”. Estamos sempre a fazer sinal ao sentido: para lá, perdemos o pé. Jean-Luc Nancy esclarece-nos acerca deste não saber, que está ligado ao saber do “corpo”: “o ‘corpo’ é onde se perde o pé. ‘Sem-sentido’ não quer dizer aqui algo como o absurdo, nem como sentido ao contrário, ou contorcido (não é em Lewis Carrol que se tocará nos corpos). Mas isso quer dizer: sem sentido, ou ainda, sentido que é absolutamente excluído abordar sem qualquer figura de ‘sentido’” .

Estabilidade e fixidez são as traves mestras do texto clássico. Com um sistema hipertextual como Storyspace, há uma série de unidades - denominadas "espaços" e "lugares" - que estão estruturadas em rede. Os livros electrónicos são documentos activos com novas formas entrelaçadas de autoria e leitura: ciberespaço, ciberdocumentos, cibergrupos, criação/leitura. Um espaço de histórias manifesta-se textualmente como uma série de unidades estruturadas em rede em que tudo depende da resposta do leitor, da sua capacidade de navegação. O leitor transforma-se num "turista" (M. Joyce), o texto transforma-se em "caminhos que se bifurcam" (Borges). Podemos discernir algum potencial com futuro em visões ficcionais tais como Count Zero ou Neuromance , o mapa "Aspen Movie do MIT é apenas um dos exemplos do que tais "textos" virão a ser .

O hipertexto é a possibilidade de passar de uma leitura linear de um documento a uma leitura de acesso directo. Deixa de ser necessário ler a obra integralmente. Em teoria, o conceito já existe desde há muito tempo, visto ser o da enciclopédia, ou o que se adopta folheando um jornal. Na prática, o computador está perfeitamente a este princípio: um lugar traduz-se por uma palavra sublinhada ou posta em destaque a cor. Basta seleccioná-lo para obter o documento respectivo. Com o hipertexto não há necessidade de ter um único enredo linear ou um nível fixo de descrição. Contudo, conquanto seja possível criar um modelo de ponto de encontro textual onde cessa a linearidade, um tal modelo manter-se-á obstinadamente estável.

Mudou a forma da expressão e mudou o fundo, inevitavelmente. A nova cultura da escrita, que desde há algumas décadas forcejava por entrar no mundo secretamente vigiado pela crítica, irrompe agora, transportada pela electricidade, tornando-se pública, profana como sempre foi, sem o ritual da instituição que a legalizava. O aspecto literário do jogo inspirou muitos dos trabalhos que procuravam criar romances interactivos, hipertextos, que podiam ser lidos segundo a ordem que o leitor decidia. A expressão "selfish interaction" resume esse tipo de leitura ad usum agora em voga.

Comparado com a imprensa, o hipertexto encarna uma retórica diferente, uma estética diferente e diferentes formas de estruturas conceptuais e topológicas. Primeiro, o hipertexto desestabiliza noções tão fundamentais como: texto, autor, leitor, literaridade . Numa ficção hipertextual não há uma história, mas uma série de narrativas diferentes que emergem de acordo com as opções do leitor. Porque o leitor colabora activamente com o autor para dar existência à narrativa, a distinção entre ambos esbate-se. Para o autor, o hipertexto significa abdicar do controle sobre o texto, aceitando o leitor como parceiro, encontrando a própria voz misturada com o coro de outras. A unidade do texto também se dispersa. Por exemplo, no hipertxto pedagógico de Jon Lanestedt e George P. Landow The 'In Memoriam' Web (Eastgate Systems, 1992), certas secções do poema epónimo de Alfred, Lord Tennyson estão associados a outros blocos do poema que entram em consonância com eles, bem como a comentários críticos - alguns de autoria de estudantes universitários - que interpretam o significado dos elos. No hipertexto, pode-se ler-se até ao fim da página ou pode caminhar-se lateralmente, seguindo uma palavra chave que abre outro documento e ainda outro. Cada texto é uma nota de roda pé possível a todos os textos; cada história uma digressão de todas as outras histórias. Quando se passa do poema a um ensaio de um universitário ou de outra secção do poema para alguns elementos de informação biográfica, o "texto" deixa de ser simplesmente o poema isolado, tornando-se, em vez disso, a totalidade da rede interligada.