A IDEIA DE VIAGEM DE HOMERO A CAMÕES (fim)

*Publicado na Revista Brotéria-Cristianismo e Cultura, 156 (4), Lisboa, Abril 2003

A Ideia de viagem na Bucólica

Passando da epopeia e romance cavaleiresco ao género bucólico, nele encontramos também relação entre metamorfose, viagem e sentido utópico da viagem, sobretudo no plano do itinerarium mentis. Façamos, pois, uma breve síntese dos grandes fulcros da viagem, suas metaforizações e alegorizações, no género bucólico, de Teócrito a Camões.

Os personagens que são verdadeiros pastores, nos Idílios de Teócrito, narram histórias com temas épicos muito antigos – aventuras do Ciclope, de Hércules criança, de Hylas, numa época em que o género épico estava em decadência e a nostalgia desses temas era um modo de recriar um ambiente propício à sua recuperação, através dos diálogos, numa linguagem por vezes rude e popular, teatralizando e cantando temas reportados ao mito, ao quotidiano, à magia do amor e da mulher. O mito de Dafne, um dos mais frequentemente narrados pelos pastores, concilia a relação ancestral entre metamorfose e viagem. Dafne é também o antepassado mítico do género bucólico (1).

Ovídio, nas Metamorfoses, criou um modelo de epopeia mítica, em que cada mito de metamorfose é assumido como uma forma complexa de viagem que profundamente moldou o imaginário do Renascimento e o imaginário camoniano (2). A metamorfose é nostalgia ligada à utopia, procura de transformação interior e exterior.

A ideia de utopia como nostalgia decorrente da agudização da consciência da violência e da mudança de pessoas, de acontecimentos, para pior, a inevitável necessidade de metamorfose, no sentido profundo e positivo, exigindo viagem da mente, vem reiterar-se no universo das Éclogas de Virgílio cujos interlocutores são figuras disfarçadas de pastores, como na Bucólica do Renascimento. Os seus diálogos desenvolvem-se num quotidiano onde converge a confissão de problemas pessoais de desânimo, de relacionamento de uns com os outros, a queixa, a denúncia de violência e de doenças sociais como a inveja, a denúncia de formas de magia negra. Está presente o poder mágico positivo da música, através do canto e da dança; o poder do divino, através de epifanias de deuses aos mortais, do canto sobre o mito de Dafne. Dançam faunos e animais numa gruta, um local de passagem e de travessia difícil, confirmando a relação dos mitos de metamorfose com os ritos de passagem e marcas da metáfora do labirinto (3).

No universo peculiar das Éclogas de Virgílio que se reporta a aspectos menos positivos e até lamentáveis da época de Augusto, à memória de acontecimentos e de práticas menos positivas da humanidade em geral, é compreensível que a esperança de Virgílio se exprima, na écloga IV, na metáfora da viagem messiânica e utópica, instaurada por uma criança que há-de trazer uma nova ordem política e cósmica e contribuirá para a idade do ouro do futuro, para a salvação da humanidade. Sabendo discernir as várias faces da vida e o comportamento dos humanos, a bucólica autocompensa-se, na obra de Virgílio, pela esperança optimista da renovação da humanidade, conciliando metamorfose e metáfora da viagem utópica (4).

Na literatura portuguesa, a bucólica como género só retomou o seu fôlego na poesia de expressão latina do século XV, onde ficou marcada pelo pendor moralizante, nas éclogas de Henrique Caiado. Diríamos que são éclogas sem magia, não como as de Virgílio ou os Idílios de Teócrito, porque dominadas por considerações e exortações morais pouco subtis, inseridas na tradição moral dos seus antecessores. As éclogas de Caiado reportam-se a acontecimentos sociais da época, à influência de Savonarola, às queixas do doge de Veneza, à marcha de Carlos VIII sobre Florença (5).

A écloga também foi cultivada em língua vernácula, no século XVI. O bucolismo português do século XVI está profundamente marcado pelo tom elegíaco, no rasto da elegia pastoral, e pela expressão da vivência do sofrimento e desengano amoroso das éclogas de Bernardim à Crisfal (6), tornando-se a sua expressão extensiva a sentimentos relacionados com o discernimento e a consciência crítica sobre a acontecimentos sociais, as doenças como a inveja e a cobiça, nas éclogas de Sá de Miranda (7); à possibilidade de refúgio no amor divino, nas éclogas de Frei Agostinho da Cruz. As éclogas de António Ferreira (8) visam sobretudo objectos estéticos.

O universo das éclogas de Luís de Camões é percorrido pela viagem do pensamento, pela consciência da falta de lógica e de justiça, nesta vida terrestre. As situações da vida humana não estão localizadas no devir histórico, embora as éclogas sejam dedicadas a personagens importantes do século XVI. Afloram, na bucólica de Camões, os temas da lírica, como a instabilidade da fortuna, a submissão do sujeito às forças do amor, do acaso, do tempo e da sorte; a efemeridade do contentamento; a sujeição ao Fado e à morte; e sobretudo as viagens do amor (9). Tal como Virgílio, Camões encena o sentimento amoroso, através de figuras disfarçadas de pastores que desabafam os sofrimentos próprios e alheios, relativos à continuidade, descontinuidade e decepção do amor, aos caminhos que tentam percorrer, no plano sensual, sentimental e espiritual, aos constantes entraves que se lhe deparam.

Tal como nas Éclogas de Virgílio, a presença das ninfas, deusas e faunos poderia atenuar o sofrimento amoroso dos pastores, mas não chega a realizar-se verdadeira comunicação. Na realidade, é sobretudo o canto e a dança que vêm conferir uma atmosfera de magia, a música dos instrumentos pastoris e a própria lira. A falta de correspondência e de reciprocidade nos sentimentos, e, por vezes, até a ausência de sentimento amoroso entre os pastores e as jovens, entre os próprios faunos e as ninfas, vêm exprimir um universo dominado pelo sentimento de tristeza, pelo esvaziamento de elos contínuos entre seres humanos e entre seres do universo mítico-erótico como os faunos e as ninfas. A união entre mortais e ninfas, exaltado e alegorizado na epopeia de Camões, não se passa no plano da bucólica. Faunos e ninfas, como em geral os deuses da lírica e da bucólica, no Renascimento, enquadram o cenário e vivem os seus dramas e sentimentos sem se misturarem com os humanos.

Pelo que fica exposto, não é, pois, de admirar que, entre as oito éclogas de Camões, das quais a última é piscatória, a sétima constitua uma peça rara, sobre o canto e os amores dos faunos que convidam as ninfas às viagens do amor e em vão lhes confessam à distância como é grande o sofrimento de sentir que elas lhes fogem e o amor não chega a consumar-se. A metamorfose é um mito contraditório, genésico e escatológico, de crescimento e de degradação (10), imaginário e real, palavra e ser, interior e exterior.

A Ideia de viagem na poesia lírica

Passando da bucólica à lírica, é sabido que a poesia lírica medieval de expressão vernácula e latina, assim como a lírica de expressão latina dos séculos XV e XVI, estão profundamente marcadas pelo mal de ausência, o sentimento de saudade, a pluralidade de conceitos e de vivências de exílio interior (11).

Petrarca construiu o universo poético do Canzoniere sobre a ausência da sua amada Laura, morta prematuramente, por quem sente uma profunda paixão que o domina e o liberta. Procurou a fuga à mortalidade pela viagem interior, no itinerarium vitae, vivido com verdade e sem fingimento – non ficta carmina –, como teve de afirmar de viva voz aos seus contemporâneos incrédulos relativamente ao conteúdo e expressão do Canzoniere (12). Se o fundamento desta obra é a expressão de um sentimento amoroso complexo, inspirado pela ausência da amada morta, se o poeta exprime não raro a comunhão afectiva e amorosa com Laura que conhecera e continuara a amar ao longo da vida, será lógico que Petrarca tenha imaginado criar uma viagem interior perfeita, nesta vida terrena, de união com a amada e Deus, chegando a comparar-se com o peregrino que procura Cristo (13). Assim Petrarca concebeu o Canzoniere como uma viagem interior perfeita, marcada pela tristeza e pela ausência. Perfeita porque desde o início que tem um sentido, porque é contínua na expressão do sentimento amoroso e na procura de constância interior pessoal, ao longo do seu peregrinar. Perfeita porque se insere no tempo irreversível da vida terrena e procura o retorno a Deus, após a velhice e a morte, fechando o círculo da vida que, pelo espírito, tem uma origem divina e a Deus regressa, para a eternidade. O Canzoniere termina com o arrependimento final dos erros de toda a sua vida, o retorno a Deus e o hino final à Virgem Maria. Concilia, de maneira perfeita, a viagem do amor e a experiência do homo viator.

Em Os Lusíadas, é o amor que o narrador procura, como guia mítico e futuro do homem português e universal. Essa aspiração parece resultar na esperança de colaboração do universo de Vénus, na procura de harmonia, no plano individual e comunitário. Na lírica camoniana, o amor e as suas viagens é guia que gera uma nova ordem interior, colaborando com forças contraditórias de separação, desespero e caos interior, deixando entrever um espaço interior que poderá aproximar-se do labirinto, no sentido negativo, por ser impossível dele sair e não existir vislumbre de um fio mágico de nenhuma força vital, nem humana, nem divina, para nele discernir o que é labirinto do que é transcender o labirinto, através da permanente procura, a constante questionação e abertura a uma infindável pluralidade de dimensões e itinerários da sua vida pessoal, a travessia da vida e da existência humanas.

Petrarca, na sua lírica, exprime o amor humano e a procura do amor divino, herdado da tradição cristã medieval. No rastro da devotio moderna, vinda da Flandres, cultivada por Erasmo e conhecida em Espanha, através das traduções das obras de Erasmo (14), a mística espanhola adquiriu novas dimensões na mística europeia do século XVI, criando modelos aferidores na obra de São João da Cruz (15) e de Santa Teresa de Ávila (16), com novas modulações na viagem interior, espiritual, religiosa e mística. A viagem interior que, na lírica camoniana, procura exprimir o tópico do homo viator, é a viagem para a eternidade, a “pátria verdadeira” (17), de retorno a Deus e a Jerusalém Celeste, expressa em particular nas redondilhas Sobolos Rios. Em Sobolos Rios a viagem à “pátria verdadeira” não é predominantemente mística, sem tomarmos como aferidores da viagem imóvel (18), mística, de São João da Cruz, no Cantico Spiritual (19) e a viagem “ao centro do centro da alma”, no Castillo Interior o las Moradas de Santa Teresa de Ávila (20), mas sobretudo congeminação filosófica e intelectual, tal como demonstrámos no nosso ensaio já publicado sobre “Camões, São João da Cruz e Santa Teresa de Ávila”(21).

Luís de Camões, como todos os poetas europeus do século XV ao século XVII, leu e foi influenciado por Petrarca. Não concebeu, todavia, a sua obra lírica como uma viagem interior com uma direcção inicial, um objectivo único, concentrador das energias sentimentais e espirituais, como a viagem de Petrarca, no Canzoniere. A sua obra é marcada pelas contradições da estética maneirista e pelas contradições dos sentimentos e da vida humana. A viagem, na lírica camoniana, é constante procura, interrogação, consciência, experiência do amor, do visível e do invisível, autoconhecimento, procura do conhecimento da mulher, dos seres humanos; da insegurança e instabilidade da vida, da sua própria capacidade criadora como poeta, em momentos e experiências de vertigem, desesespero, exaustão, esperança e sobretudo de constante questionação sobre si próprio, sobre a vida e existência humanas. Os seus itinerários são plurais como plural é a vida humana, nas suas virtualidades, acontecimentos, construções e desconstruções, com a variedade de modulações que a sua procura de liberdade e a abertura de espírito permitem.

Ao aprofundarmos a leitura da obra lírica de Luís de Camões, vemos como a viagem é multímoda e dela sobressai a diversidade de vozes e de expressões, consoante o momento vivido, de acordo com o tipo de composições, das trovas às odes, aos sonetos, redondilhas, oitavas, a sextina ou o universo denso de viagens que é o das canções. Se a maioria das suas composições líricas são perfeitas, na concepção e harmonia estética global, a viagem da lírica não é perfeita como a de Petrarca. É uma viagem imperfeita, com conotação labiríntica, em que predomina o subterrâneo, as forças da imaginação, a tentativa de ascenso através da metáfora do voo do pensamento, como fio mágico, como asas de Dédalo, para sair do labirinto, da confusão, do desespero, do sofrimento. É uma viagem imperfeita onde seria impossível fechar um círculo, mas onde todas as quebras e pausas são possíveis, para olhar, reflectir, viver, questionar, mudar de registo, na relação consigo próprio, o destino, o amor, a vida e o mundo.

Depois de termos percorrido alguns temas da viagem literária, de Gilgamesh à Odisseia e à epopeia medieval, nos romances arturianos, na Divina Comédia de Dante, no Orlando Furioso de Ariosto e em Os Lusíadas, tendo em seguida apresentado a sua articulação com temas da viagem, na bucólica, de Teócrito a Camões, e, na lírica, de Petrarca a Camões, pensamos que a escolha de Camões relativa à sua epopeia, bucólica e lírica, corresponde ao horizonte de expectativa do leitor do Renascimento, e pressupõe o conhecimento e leitura das obras que o precederam.

Na epopeia, ao tentarmos articular o espaço, o tempo, com o retorno, a fidelidade à pátria, o futuro, a procura de estabilidade e ordem, vimos que Camões opta pelo espaço geográfico, o tempo mais linear do que cíclico, a viagem de descobrimento/achamento que transcende, no tempo e no espaço, a própria viagem, é libertadora e aberta para o futuro. A ideia de retorno relaciona-se com as ideias presentes em Os Lusíadas, da fidelidade à pátria, a procura de estabilidade e ordem, a transcendência do tempo; na alegoria global da Ilha do Amor cuja conotação é também globalmente positiva e surpreendente para os nautas portugueses (22). Interessa-lhe a procura de estabilidade, em Portugal e no Império, através da constância das leis. Manifesta o desejo de ver a pátria e o império governados pelos que deveriam ser escolhidos pela comunidade, por procurarem servi-la. A aspiração suprema de Camões é que seja o amor o guia da história futura. A história do passado e da época sua contemporânea é verdadeira, ao contrário das efabulações de Ariosto. Os epifonemas têm a função de mostrar o modo como o narrador e autor empírico interfere, se torna epifânico, comenta os acontecimentos e desafia os seus contemporâneos – uma atitude que se integra na mundividência do humanismo cívico e crítico do Renascimento (23).

História e mito

Para conciliar história e mito, no rastro da tradição da epopeia clássica, Camões introduz, em Os Lusíadas, mitos como elementos de comparação com a história de Portugal e história da viagem, nas intervenções dos deuses, nas invocações, na narração em geral, nos episódios simbólicos e na Ilha do Amor. O mito que tem maior autonomia é o do Adamastor, da invenção do próprio autor. É um complexo mito de metamorfose com diversidade de conotações, sendo uma das mais importantes a barreira do conhecimento a ameaçar o homem de que não deve ultrapassar os limites vedados.

Na narração de Os Lusíadas, Camões concilia mito, história, códigos da epopeia como género, a ideologia de cruzada, vigente na Idade Média e na sua época, valorizando o tratamento medieval do herói medieval e renascentista, o qual não raro empreende lutas individuais em favor da comunidade. Assim se harmoniza indivíduo e comunidade, estando explícita a experiência do poeta narrador como combatente não voluntário, exilado não voluntário, conhecedor da errância por África e Ásia. Na sua obra, embora a Europa cristã seja considerada como modelo civilizacional, há todavia, espaço para o respeito pela alteridade e diferença, manifestado, por exemplo, pelo deslumbramento de Vasco da Gama, ao chegar à Índia. Na lírica, o sujeito lírico aceita a beleza de Bárbara escrava (24), uma beleza que também o deslumbra e que transgride os códigos previstos para o aspecto físico da mulher, cantada na poesia europeia.

Na catábase, próxima do labirinto subaquático que é o universo do concílio dos deuses marinhos, convocados por Baco, não é visível a presença de monstros temíveis. O próprio Baco assume uma certa conotação de deus-monstro, como opositor à continuação da viagem para a Índia e como catalizador dos medos dos nautas e da fragilidade do estatuto dos deuses. Em contrapartida, aparece Glauco, uma divindade metamorfoseada num pequeno monstro semi- peixe, a chorar o facto de ver a sua amada Cila, metamorfoseada em temível monstro pela sua rival Circe. O Adamastor que se ligara ao mundo aquático por amor à ninfa Tétis, não tem de ser combatido nem vencido por Vasco da Gama, como os monstros que Ulisses, Eneias, Beowulf, têm de enfrentar. É um monstro ele próprio mais vencido que vencedor, na sua autobiografia, o que o aproxima de Cila, ela própria vencida pelo processo de metamorfose que lhe foi irremediavelmente imposto por Circe. O Adamastor é um monstro exclusivamente simbólico que desaparece, em Os Lusíadas, a chorar a sua história de amor e metamorfose (25).

Vimos que o monstro simbólico do mal latente que ameaça a comunidade é o Dragão, no país de Beowulf. Em Os Lusíadas, o Dragão – “O Drago horrendo” – aparece metamorfoseado em constelação, no Firmamento ou oitavo céu, eventualmente temível, mas muito ao longe (26). É sabido que o Dragão tem em si um forte conteúdo simbólico, em várias culturas, e no Apocalipse do Novo Testamento. O monstro em Os Lusíadas tem uma rede complexa de significações, sendo uma das mais importantes as metáforas e comparações que exprimem o terror e ferocidade da guerra. A ideia de monstro, na viagem de Vasco da Gama, aproxima-se mais da ideia do desconhecido como inimigo e potencial destruidor da ambição humana, cristalizado, de certo modo, na figura do Adamastor; aproxima-se da ideia de conflito entre os estatutos de humano e de divino, esta última concentrada na figura de Baco, figura mitológica complexa que esconde a um tempo o monstro, o medo e o desafio.

A preocupação máxima da viagem de Baco ao inferno subaquático é avisar os deuses do risco de os nautas atingirem o estatuto de imortalidade e poderem ofuscá-los. No Renascimento, nos feitos humanos desenvolvidos no desbravamento e conhecimento do mundo, predomina a tendência antropocêntrica, a procura de um novo tratamento do universo dos deuses que, neste caso, se sentem a competir com os homens.

Anábase e catábase

Poderíamos dizer que as componentes catabática e anabática, presentes na metáfora do labirinto e conciliadas, de maneira perfeita, no eixo perfeito do Inferno/Paraíso da Divina Comédia de Dante, se encontram na epopeia e na lírica camonianas. A anábase, na epopeia camoniana, está presente na procura de imortalidade dos heróis e da obra, no ascenso do estatuto de humano para divino, por parte dos heróis e da própria obra épica; no processo de imortalização do herói, no seu convívio e reconhecimento com e pelo divino; no ascenso global, concentrado na alegoria da Ilha do Amor, que culmina com a subida de Vasco da Gama ao cume de um monte, pela mão de Tethys, para contemplar a Máquina do Mundo em miniatura, constituindo, com essa posição e essa visão, um eixo que se prolonga até à descida de Baco, ao inferno subaquático. Pensamos que esta é uma das razões pelas quais a Máquina do Mundo é um dos eixos de leitura não só da epopeia como da lírica camoniana, pois, tanto na epopeia como na lírica, há uma viagem de catábase a que vai responder uma viagem de anábase. Na lírica camoniana, encontramos um longo fio anabático, nas metáforas do voo do pensamento, nas modulações da viagem do pensamento.

A alegoria da “ínsula divina” em Os Lusíadas não é perfeita nem esgota a viagem como viagem, como a alegoria de Dante, mas abre caminho para uma nova visão do mundo e da humanidade futura, guiada pelo amor, a beleza, os frutos e a festa, próxima da divindade. É uma alegoria aberta, com potencialidade visionária e profética da humanidade futura, portadora da visão do mundo a partir do “alto assento”. Na Máquina do Mundo, Deus não é objecto de contemplação directa, tendo o poeta consciência de que Deus ultrapassa o entendimento humano. É possível que esta interrogação epistemológica sobre Deus se relacione com a modulação camoniana do tópico do homo viator, nas redondilhas Sobolos Rios, não como viagem a um centro, como a de Santa Teresa de Ávila – viagem “ao centro do centro da alma” –, não como a viagem de Dante ao centro do centro da terra – o Inferno – e ao centro do Paraíso – mas como antevisão, antecipação, filtrada pela sua congeminação filosófica e intelectual.

Na poesia camoniana, o amor humano e a colaboração de Vénus, em particular a colaboração de Vénus, é em grande parte gerador da realização de projectos da comunidade portuguesa. Ao procurar assumir o amor como guia, na lírica, gera-se não raro a falta de harmonia interior, desespero, caos, modulações do labirinto vivencial, potencial e possível. Todavia, em nosso entender, nas modulações da viagem catabática e do mito de Orfeu, na lírica, as constantes atitudes do sujeito lírico de procura, questionação, abertura à pluralidade de dimensões da vida e da existência humanas, contribuem para transcender, e de certo modo ultrapassar, a ideia e a experiência do labirinto interior, não assumido na globalidade complexa da sua rede de metáforas.

O universo da lírica camoniana, é também marcado pelas contradições vivenciais que coincidem com contradições cultivadas pela estética maneirista, como a herança do oxímoro da lírica petrarquista, assumidas globalmente como verdades vividas. Nesse universo da lírica camoniana entrecruzam-se itinerários plurais e diversidade de vozes, na expressão do amor, da procura do conhecimento e autoconhecimento, liberdade interior e abertura de espírito. A viagem, na lírica camoniana, é imperfeita, porque é aberta e questionante, não globalmente moldada nem por forças convergentes, nem pelo tópico do homo viator, nem apresentando um único sentido para a vida e existência humana pessoal.

Nas éclogas de Camões, a viagem é sobretudo modulada não pelo itinerário da vida mas pelo itinerário da mente, retomando temas da lírica, como a instabilidade da fortuna, a sujeição ao amor, ao tempo e à morte, a efemeridade do contentamento e o sofrimento decorrente das viagens do amor. Estes temas são partilhados por personagens disfarçados de pastores que lamentam, à maneira de Virgílio, os aspectos negativos da vida humana em geral, exprimindo, num espaço de harmonia da natureza e da magia da música, a aspiração utópica de regresso à harmonia. Na tradição da elegia pastoral desde a Antiguidade, Camões lamenta, na bucólica, o negativo da vida, da tristeza, da nostalgia da própria existência terrena, deixando espaço para integrar códigos e conceitos de utopia.

Epílogo

Este nosso texto é uma tentativa de síntese do nosso caminho para desbravarmos e irmos ao encontro de fulcros e vectores das modulações da ideia de viagem na poesia épica, de Homero a Camões; nos romances de cavalaria; na poesia bucólica de Teócrito a Camões; na poesia lírica de Petrarca a Camões; para terminarmos com uma breve síntese sobre a ideia de viagem na poesia de Camões.

Retomámos leituras de obras importantes da literatura mundial, ousando fazer sínteses das nossa próprias leituras, tendo actualizado conhecimentos e seleccionado o que considerámos essencial da crítica internacional sobre a ideia de viagem, em particular entre especialistas de literaturas clássicas e renascentistas, até 2002.
______________________

1 Théocrite, Bucoliques Grecs I, Paris, Les Belles Lettres, 1927.

2 Ovid, Metamorphoses, translated and with an introduction by Mary M. Innes, Penguin Classics .

3 Vergil, The Eclogues, the latin text with a verse translation and brief notes by Gay Lee, Penguin Classics, 1984.

4 Idem

5 Claudine Balavoine, Les Églogues de Caiado, texte présenté, traduit et commenté, Lisboa- Paris, Fundação Calouste Gulbenkian, 1983.

6 Cristóvão Falcão, Crisfal, com prefácio e notas de Rodrigues Lapa, 3ª ed., Lisboa, Sá da Costa, 1978.

7 Francisco de Sá de Miranda, Obras Completas, Clássicos Sá da Costa, 2 vols., Lisboa, Edições Sá da Costa.

8 António Ferreira, Poemas Lusitanos, anotação e compilação de Francisco da Costa Marques, Coimbra, Atlântida, 1961.

9 Camões, Églogas in Rimas.

10 Pierre Brunel, Le mythe de la métamorphose, Paris, Armand Colin, 1974.

11 Carlos Ascenso André, O mal de ausência, o canto do exílio na lírica do Humanismo português, Coimbra, Minerva, 1992.

12 Vítor M. de Aguiar e Silva, “Aspectos petrarquistas na lírica de Camões”, in Cuatro lecciones sobre Camens, Fondación Juan March, Ediciónes Cátedra, Madrid, 1981, pp. 99-116. Foi publicada em 1997 pela Universidade de Coimbra a tese de Rita Marnoto, O Petrarquismo Português do Renascimento e do Maneirismo, um estudo exaustivo que inclui textos sobre o petrarquismo camoniano.

13 Vide Petrarca, Canzoniere, XVI.

14 Marcel Bataillon, Erasmo y l’España, trad. Espanhola, Fondo de Cultura Economica, 2 vols., 1950.

15 San Juan de la Cruz, Obras Escogidas, edición y prologo de Ignacio B. Anzoátegui, 5ª edición, Madrid, Espasa Calpe, 1964.

16 Santa Teresa de Ávila, Las Moradas, in Castillo Interior o Las Moradas – Exclamaciones del alma a Dios – Poesias, Aguilar, Madrid, 1962.

17 Luís de Camões, Sobolos Rios que vão, in Rimas.

18 Vide o ensaio de José Augusto Mourão, “Conversão, viagem imóvel”

19 Vide San Juan de la Cruz, Cántico Spiritual

20 Vide Santa Teresa de Ávila, Castillo Interior o Las Moradas

21 Vide Helena C. Langrouva, Camões, São João da Cruz e Santa Teresa de Ávila, in Homenagem a Maria de Lourdes Belchior, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian.

22 Nas viagens literárias, as Ilhas têm uma conotação frequentemente negativa, para afastarem os navegantes das suas metas; mas a Ilha do Amor de Os Lusíadas tem apenas uma conotação positiva, como no mito das Ilhas Afortunadas, na poesia de Píndaro e de Ronsard.

23 Vide Luís de Sousa Rebelo, A Tradição Clássica na Literatura Portuguesa, Livros Horizonte, Lisboa, 1982.

24 Luís de Camões, endechas a Barbara Escrava in Rimas, 105.

25 Os Lusíadas, V, 50-60.

26 Idem, X, 88, 4.