A IDEIA DE VIAGEM DE HOMERO A CAMÕES (2)
Helena S. Conceição Langrouva*


Ideologia medieval herdada

Se Camões, em Os Lusíadas, narra a história verdadeira dos reis, dos grandes senhores da monarquia, as suas interpelações e desafios predominam nos epifonemas, nos quais a presença epifânica do narrador interfere, comenta os acontecimentos, critica os contemporâneos para lhes tocar a consciência, para lhes demonstrar a integridade e grandeza da sua epopeia, apesar da crise de heróis e de valores, das dificuldades da escrita de um poema épico. Luís de Sousa Rebelo afirma, a este propósito, que a visão do mundo, a filosofia humanista de Camões se situa no plano do “alto assento”, fundamenta-se no humanismo cívico e no sentido da comunidade (1). É do “alto assento” que a visão do narrador se torna epifânica, em particular nos epifonemas ou finais dos cantos de Os Lusíadas.

A ideologia que atravessa Os Lusíadas é herdada dos valores medievais, quer pela natureza da história narrada, quer pelo tratamento que Camões confere aos heróis medievais e renascentistas. O herói medieval combate ou luta individualmente, Beowulf e/ou os cavaleiros dos romances de cavalaria, como Ulisses e Eneias, lutaram muitas vezes sozinhos, apesar de terem companheiros de viagem. Alguns heróis renascentistas de Os Lusíadas, situados longe do território nacional e da autoridade do rei, são obrigados a enfrentar a luta individual e a terem um comportamento heróico à maneira do herói medieval.

O denominador comum presente no tratamento individual dos heróis, de Ulisses a Eneias, a Beowulf, Orlando, os cavaleiros errantes, os guerreiros, cavaleiros e nautas de Os Lusíadas, é o facto de terem um compromisso com uma comunidade. Na Idade Média e no Renascimento é a ideologia de cruzada que polariza o indivíduo, a comunidade e o Rei, como símbolo da comunidade. Os cavaleiros errantes poderão identificar-se com a pequena nobreza que procura a honra pessoal e a estima alheia, procurando, por actos de justiça, libertar sobretudo mulheres e homens fracos, de situações de sofrimento e de injustiça. Subjaz, todavia, entre os cavaleiros, o ideal de cruzada.

No Renascimento, Ariosto e Camões tinham consciência do perigo da ameaça turca perante a Europa cristã dividida. Ariosto cria em Orlando Furioso uma epopeia imaginária cujos heróis têm um comportamento medieval. A sua visão do mundo é completamente marcada pela ideologia de cruzada, envolve toda a temática dos romances de cavalaria cujas personagens se movimentam num espaço aparentemente inserido no Renascimento. O tempo histórico está entrecruzado, pois o tema aparente do poema é a defesa da Europa cristã por Carlos Magno, tratando-se de uma evocação indirecta do Império de Carlos V, como guardião da cristandade europeia, sendo o Outro não cristão de África, Ásia e América, conotado, não como o diferente a descobrir, mas como o inimigo a eliminar e a combater. Assim, no Orlando Furioso, a visão do mundo e do homem é medieval.

Novidade camoniana

A novidade de Os Lusíadas consiste em manter os ideais do indivíduo e da comunidade, na procura de sintonia com o respeito ao Rei e a Deus, com a ideologia de Cruzada, não posta em causa de maneira global. Neste ponto, aproxima-se dos valores medievais do Orlando Furioso, sendo, todavia, inovador, na epopeia como género, por nela introduzir, de certo modo, o respeito pela alteridade e pela diferença, o Outro que o deslumbra, em particular o Outro diferente que deslumbra Vasco da Gama, ao chegar à Índia. Embora predomine, em Os Lusíadas, a visão do descobridor e conquistador ocidental todavia também se exprime o deslumbramento perante o diferente que é uma forma de respeito e de aceitação do Outro. Na lírica, exprimiu de modo inigualável a aceitação da beleza diferente, vivenciada, de Bárbara escrava (2). Camões cria e recria em Os Lusíadas o deslumbramento perante o Outro, invisível e divino, nas viagens dos deuses, no caminho de Vénus, no Oceano, e na Ilha do Amor.

A grande novidade da epopeia camoniana é o modo original como concilia mito, história, códigos de género, ideologia vigente da época, com a singularidade da sua experiência pessoal de combatente não voluntário em África, de exilado não voluntário na Ásia, a pluralidade de dimensões da sua experiência de viajante ao longo desses dois continentes. A experiência já tinha sido um valor importante na Odisseia, no Beowulf e nos romances de cavalaria, como um modo de caminhar no autoconhecimento, autodomínio, no conhecimento e na sabedoria, no plano mítico, geográfico, histórico, iniciático. Todavia, Camões, como conhecedor dos princípios ciceronianos de ingenium, doctrina e ars sintetiza, no final do poema, a auto-consciência do seu valor:

Nem me falta na vida honesto estudo,
Com longa esperiencia misturado,
Nem engenho, que aqui vereis presente,
Cousas que juntas se acham raramente.
Os Lusíadas
, X, 154, 4-8

A sua própria experiência é um valor raro, embora importante no universo dos valores do Renascimento.

Combate aos monstros

A experiência do combate aos monstros tem pluralidade de significações, desde a Antiguidade; é diferente e nova em Os Lusíadas, embora herdeira da tradição homérica e da expressão dos horrores da guerra. Na Odisseia, há dois motivos dos ritos de passagem – a gruta e o portão – que estão relacionados com a presença de monstros que Ulisses terá de enfrentar. O Ciclope, figura vinda da tradição do sacrifício do homem-urso ou de urso-homem, como rito de passagem, vive numa gruta onde Ulisses terá de o mutilar. Os monstros marinhos Cila e Caríbdes estão unidos por uma passagem entre portões, perfeitamente visualizáveis, segundo a descrição de Homero (3). Caríbdes não é um monstro como a mãe de Grandel do Beowulf, mas é uma monstruosa divindade aquática, guardiã do nascimento (4). É possível que estes monstros também tenham relação com ritos de passagem – todos os que navegam no Mediterrâneo têm de passar os portões de Cila e Caríbdes. Poderão ainda relacionar-se com ritos de iniciação, se interpretarmos a figura de Caríbdes como divindade guardiã do nascimento, ou de um novo nascimento.

Eneias venceu Cila, Caríbdes e as Harpias. A mãe de Grandel é um monstro terrível que também vive numa gruta. Beowulf mata esses dois monstros – Grandel e a sua mãe – que simbolizam a destruição da nação vizinha. O gigantesco Dragão que Beowulf tem de enfrentar, no seu país, já quase no final da sua vida, simboliza o mal latente que o ameaça. O fogo do Dragão é símbolo da comunidade existente e da perenidade da comunidade. O Dragão é o monstro que ameaça a comunidade, o mal que pode destruí-la. É vencido, mas é também vencedor, porque mata Beowulf, no fim.

Em Os Lusíadas, o monstro, o mal latente que ameaça a pátria portuguesa, é expresso em particular nas comparações herdadas de Homero, em que a ferocidade da guerra é comparada à ferocidade de animais selvagens. D. João, Mestre de Avis, é comparado a uma leoa enraivecida, ao sentir as suas crias ameaçadas:

Qual parida leoa, fera e brava,
Que os filhos, que no ninho sós estão
Sentiu que, enquanto pasto lhe buscara
O pastor de Massília lhos furtara,
Os Lusíadas, IV, 36, 5-8

Corre raivosa e freme e com bramidos
Os montes Sete Irmãos atroa e abala:
Tal Joanne, com outros escolhidos
Dos seus, correndo acode à primeira ala:
Os Lusíadas
, IV, 37, 1-4

Além das comparações homéricas, Camões cria novas metáforas, novas comparações para descrever o terror da batalha.

Descida aos infernos

Se os monstros se associam a ritos de passagem e a iniciações, as viagens de Homero e Camões têm marcas rituais e marcas de iniciação (5), patentes na aceitação de uma morte para entrar numa nova vida. Envolve uma mudança ontológica do regime existencial. A morte iniciática é indispensável para o começo da vida espiritual e prepara o nascimento de uma maneira de ser superior.

Mircea Eliade (6) sintetiza temas iniciáticos nas grandes religiões, alguns deles extensivos à literatura. Para este autor, a morte iniciática é simbolizada pelas trevas, a noite cósmica, o ventre de um monstro. As imagens e símbolos da morte ritual estão relacionados com a germinação, a embriologia e indicam que uma nova vida se está a preparar. A valorização da morte iniciática manifesta-se na entrada na companhia dos mortos e dos antepassados. Neste contexto, o mito da descida aos infernos, presente nas sagas do Oriente e do mundo mediterrânico, é uma prova iniciática. O herói desce vivo às profundezas subterrâneas, aos infernos, tem de enfrentar monstros e labirintos e sofrer uma prova iniciática.

Na entrada dos infernos, guardada pela Sibila, em Cumas, por onde Eneias descerá, está gravado um desenho do labirinto subterrâneo de Creta. A viagem ao mundo da sabedoria pode ser figurada na saída do ventre de um monstro. Descer aos infernos é percorrer um labirinto, é descer ao interior da terra para depois sair com sabedoria e com o corpo passível de se tornar imortal.

Odisseia e Eneida. A catábase, na modalidade de descida aos infernos, de percurso de um labirinto, é relevante na Odisseia, na Eneida, nas viagens dos cavaleiros dos romances arturianos, na Divina Comédia de Dante, no Orlando Furioso e em Os Lusíadas. Na Odisseia e na Eneida é a companhia dos mortos e antepassados, no Hades, nos infernos, que proporciona a Ulisses e a Eneias a iniciação ao futuro e ao destino que os há-de transcender: Tirésias inicia Ulisses ao seu retorno a Ítaca (7); Anquises inicia Eneias ao futuro estável e à nova ordem da época de Augusto de que ele é o antepassado mítico (8). Ulisses e Eneias descem vivos às entranhas da terra, ao Hades, aos infernos, para serem iniciados pelas sombras dos mortos, puros espíritos que poderão vivificar e iniciar o espírito dos heróis. Ao saírem do ventre da terra, e depois de terem uma experiência de morte, são portadores de um novo saber. Tiveram também de enfrentar o medo, percorrer labirintos e enfrentar monstros dos infernos, para saírem com um novo saber claro e nítido. Os infernos são também alegoria e metáfora próxima da metáfora do labirinto.

Romances arturianos. Os motivos iniciáticos dos romances arturianos continuam os temas e figuras da mitologia céltica e é possível que constituam também resíduos de ritos reais. A origem céltica dos motivos arturianos será aceite pela maioria dos críticos. Os cavaleiros têm de enfrentar provações e de dominar a vigília nocturna. No romance Lancelot ou le Chevalier de la Charrette, Lancelote é um cavaleiro que vem não se sabe donde, aceita uma carroça, símbolo da experiência em curso, oferecida por um anão. Lancelote aparece inesperadamente na corte do rei Artur para libertar a rainha Guenièvre que fora raptada por Méléagant, um príncipe negro. Ao libertar a rainha, Lancelote é aprisionado numa torre onde sofre frio e fome; é libertado da torre pela jovem figura mágica feminina de uma fada. Uma vez liberto, Lancelote mata Méléagant, o grande perturbador da ordem da corte do rei Artur (9).

Os heróis arturianos têm de atravessar pontes subaquáticas ou feitas de espadas afiadas, ou guardadas por leões ou monstros. Perceval, em especial na versão do Conto do Graal de Chrétien de Troyes, tem de passar uma noite no castelo do Graal, em cuja capela se encontra o cadáver de um cavaleiro. Durante a noite, ao som de uma terrível trovoada, Perceval vê uma mão negra a apagar o único círio aceso, tendo de enfrentar as trevas e a morte (10). Estas cenas pertencem ao domínio da catábase, das descidas aos infernos de seres vivos, que estão sempre à procura de objectos maravilhosos e se sujeitam a esta forma de iniciação para, de algum modo, penetrarem no outro mundo, a ele terem acesso e adquirirem um saber novo. Ao perseverarem na demanda de objectos maravilhosos e na demanda do Graal – este remotamente ligado a ritos de fertilidade e, na tradição cristã, ao Santo Sepulcro e ao mistério da Eucaristia –, os heróis arturianos adquirem poderes inesperados como o de curar o rei de uma inexplicável doença e assim revigorarem a pátria, ou então solidarizam-se com o ritual que lhes permite o acesso à soberania.

Divina Comédia. Na estrutura da Divina Comédia, concilia-se catábase e anábase. Na catábase ou descida ao Inferno, Dante realiza uma prodigiosa síntese da descida aos infernos da epopeia clássica com a visão directa do Mal, na figura de Lúcifer, o ambíguo portador da luz, pelo seu nome, e a visão da pena eterna dos seres humanos, da tradição cristã. Nesta viagem imaginária, é o próprio Dante que viaja com o seu corpo e espírito. Na Semana Santa de mil trezentos e trinta, desce ao Inferno cujas entranhas são guardadas por uma pantera, um leão e uma loba. O medo que experimenta ao enfrentar estas feras, é dominado, com a ajuda de Virgílio – que aparece para ser o seu guia –, e da sua amada Beatriz que desce do Paraíso para o ajudar a aproximar-se do Inferno. Percorre nove círculos infernais, habitados por gigantescas multidões de homens, mulheres e crianças, vítimas dos pecados mortais, os heréticos e os violentos, em círculos cada vez mais profundos, até às entranhas da terra, como se o interior da terra fosse um receptáculo de todo o mal do mundo, ao longo dos séculos, até à época contemporânea de Dante (11). No centro do centro da terra já não há fogo mas gelo e nele se encontra o monstruoso Lúcifer que Dante, vencendo o medo, consegue contemplar. Depois sai do inferno e entra em novos círculos de saber ascendente, no Purgatório e no Paraíso, a caminho do Bem e de Deus (12).

Orlando Furioso. A descida ao Inferno, em Orlando Furioso, procura conjugar motivos dos infernos da epopeia clássica com a história da Etiópia, do Preste João, o procurado e esperado sacerdote salvador das Índias, integrado no messianismo utópico cristão, e com o ideal de cruzada. Em nosso entender, esta recriação da descida ao Inferno é relativamente forçada. Parece ter sido introduzida nesta obra para manter o mito clássico da catábase, na epopeia, para não desiludir o horizonte de expectativa do leitor do Renascimento. A imaginação de Ariosto é diferente da imaginação aprofundada e visionária de Dante e de Camões.

O Preste João apresenta, na obra de Ariosto, o reverso do mito de esperança utópica e salvífica, pois é temido e criticado pela sua hybris, o orgulho desmedido de querer dominar tudo. Ou seja, o medo de que a esperança de renovação, condensada numa figura do imaginário utópico cristão, relacionado com as viagens para o Oriente, venha a vencer a tradição do Deus castigador – vinda da tradição judaica – que, na obra de Ariosto, envia regularmente do inferno as temíveis harpias, aves monstruosas que roubam ou contaminam a comida do Preste João que está a morrer de fome e também de cegueira, pela sua excessiva arrogância.

Nesta situação, Astolfo, filho do rei de Inglaterra, tenta em vão matar as harpias com a sua espada. Então decide-se a segui-las, voando no cavalo alado até à entrada do inferno, situada perto da nascente do Nilo (13). Ao entrar, Astolfo ouve Lídia que lamenta estar no inferno, por ter vivido apenas de ódio: em seguida, foge e cobre cuidadosamente a sua entrada de modo a que as harpias não possam voltar a sair. Astolfo quer, pois, libertar o Preste João e contrariar o castigo de Deus. Mais adiante, no poema, Astolfo assiste à alegria do Preste João que, já livre da cegueira e das harpias, promete ajuda para a defesa da cristandade. Será um modo de recuperar o mito do Preste João, depois de atravessar o medo da força que ele possa vir a ter, na história da Etiópia. Então Ariosto inventa a metamorfose das pedras em milhares de cavalos, na Etiópia, prontos a defender a cristandade e a ajudar Carlos Magno. Toda esta efabulação nos parece própria da epopeia “sonhada, fabulosa”, na expressão de Camões (14), para a tentativa de recriar o mito da descida ao inferno e de o misturar com a ideologia de cruzada, numa etapa de interrogação sobre o messianismo utópico condensado na figura do Preste João das Índias que está a morrer de fome e de cegueira, retomando ainda o mito do castigo perpétuo das figuras marcadas pela hybris, a desmedida? o castigo da tradição cristã do Inferno, neste caso, em vida do Preste João.

Pertence, todavia, à liberdade do autor recriar e renovar as catábases, presentes na Odisseia, na Eneida, no universo dos romances arturianos e na Divina Comédia, deixando margem para a fantasia do próprio leitor. Constitui também uma hábil maneira de introduzir o mito messiânico do Preste João das Índias, do imaginário utópico, relacionado com as viagens dos europeus para o Oriente. O imaginário messiânico como modo de superação transcendente da decadência de Portugal, na segunda metade de Quinhentos, está patente na pastoral de Fernão Álvares do Oriente, Lusitânia Transformada (15). Luís Filipe Thomaz aprofundou recentemente o estudo do complexo mito messiânico do Preste João das Índias, dando-lhe novas e importantes achegas (16).

Os Lusíadas. Luís de Camões em Os Lusíadas aproveita a ideia de catábase não para o interior da terra, mas para o interior do mar, no contexto experimental e geográfico dos navegantes portugueses, os quais, arriscando a vida e suportando dificuldades, estavam a percorrer o desconhecido para além do limite que lhes era vedado pelo saber dos deuses. Trata-se de uma catábase marinha, inovadora na epopeia, por ser a epopeia dos tempos modernos.

As catábases das epopeias greco-latinas e do Orlando Furioso eram intra-telúricas. Em Os Lusíadas, trata-se de uma catábase marinha, não de um herói (como Ulisses, Eneias), nem de Juno a convocar Alecto, nos infernos, para a discórdia (Eneida,VII, 323-341), no espaço intra-telúrico,nem de contacto com as sombras dos mortos, mas de uma catábase marinha, realizada por um deus ligado à terra, ao Oriente e à festa que pede a Neptuno que convoque um concílio dos deuses marinhos para tentar mudar o futuro das viagens marítimas para o Oriente. Camões, no célebre concílio dos deuses marinhos, convocados por Baco, exprime também o reverso da procura de um saber superior. Neste episódio, não é o esforço dos heróis navegantes que é exaltado, mas a reacção do saber superior da natureza, identificada com a família dos deuses marinhos que vem ser provocada por Baco, para tomar consciência de que está a ser ameaçada pela invasão do Homem moderno; do risco que lhe poderá advir de perder sobretudo o estatuto de saber superior e de imortalidade a que os humanos estão a ter um perigoso acesso (17). Por isso, Baco, desiludido por não ter ganho a batalha no concílio dos deuses olímpicos, tenta semear a discórdia entre os deuses marinhos (18). Subjaz, neste concílio, o sentido de rivalidade entre deuses do universo mítico e homens do universo experimental do Renascimento, o que é inevitável, neste poema de “puras verdades” (19), temperado por “versos deleitosos”, consumando a finalidade e intervenção estética dos deuses, segundo a desconstrução que de si próprios fazem na Ilha do Amor – “só pera fazer versos deleitosos servimos” (20).

Ao longo do poema, Baco sente-se ameaçado pela presença dos portugueses a caminho da Índia (21), onde alcançara prestígio. Ao incitar os deuses marinhos à vingança (22), quase desespera de nada conseguir junto dos deuses olímpicos e do Fado eterno que aprovam o desafio dos portugueses ao desbravamento dos oceanos. Baco tem reacções de choro e de emoção, movido pela ira e pela inveja. Segundo Baco, os ventos já estavam decididos a vingar-se, mas Neptuno e os deuses estavam a tardar em dar ordens de vingança a Éolo (23).

Esta ideia de ameaça e vingança já tinha sido antecipada pelo Adamastor que, apaixonado por Tetis e pelo mar, desafiara Vasco da Gama, no plano mítico, para o avisar de que seria castigado por ultrapassar os limites do conhecimento que lhe são vedados e por entrar no domínio dos segredos da natureza (24). Baco e a decisão de vingança dos deuses marinhos significam a movimentação do inferno subaquático, para contrariar a viagem dos portugueses. Neste passo e na consequente tempestade desencadeada por Éolo e os ventos, encontramos ecos das tempestades das epopeias homérica e virgiliana, com a diferença de que a ideia de monstro está ultrapassada.

A ambiguidade dos deuses da mitologia clássica aproveitada por Camões, não atinge o horrível. Quem vive numa gruta maravilhosa é o deus Neptuno, o seu palácio é deslumbrante e o ambiente do concílio está impregnado de beleza insondável (25). Não há monstro marinho a vencer e, em vez de Cila, aparece Glauco, o deus marinho metamorfoseado em monstro semi-peixe, a chorar o facto de Circe, rival de Cila, sua apaixonada, a ter metamorfoseado em temível monstro (26). Baco subverte a noção de monstro e torna-se ele próprio próximo do estatuto de monstro, como o inimigo potencial, o medo a enfrentar e a atravessar, o impedimento, o inevitável, para os nautas portugueses; Baco subjaz ainda nos desafios aos medos, no ambiente festivo que antecede a despedida na praia de Belém e na Ilha do Amor.

Tal como Glauco, o Adamastor também se comove até às lágrimas com a sua própria história de amor impossível por Tétis (27). Assim a beleza, a estética do plano mítico, transcende e ultrapassa o horrível, deixa-se subtilmente ultrapassar pela inteligência e experiência do homem moderno, no universo camoniano. Camões veio dar novas conotações muito profundas à viagem de catábase, não apenas na épica, mas, de um modo geral, ao mito de Orfeu, à metáfora do labirinto, na lírica. Concilia catábase marinha, no início do Canto VI, a meio do poema, com a anábase, no ascenso de Vasco da Gama, com Tethys, na Ilha do Amor, no final de Os Lusíadas; conclia, na lírica, a catábase ou desafio às profundezas do eu-lírico com a anábase, nas redondilhas Sobolos Rios.

Pelo que acabamos de expor, o ascenso a um saber superior, ao conhecimento antecipado do futuro, é conferido aos heróis das epopeias homérica e virgiliana, apenas através da descida aos infernos, onde era possível o contacto com os mortos e os segredos do espírito. A catábase greco-latina está enraizada em complexas concepções do divino e relacionada com os mistérios e o orfismo. Com o aparecimento do cristianismo, a iniciação a mistérios apenas para uma minoria de seres foi assumida pela comunidade dos Essénios e pelos gnósticos, tendo continuado na Idade Média, através do esoterismo, da alquimia e dos ritos das sociedades secretas. A grande novidade da religião cristã é que todos os homens podem procurar Deus, porque o próprio Deus encarnou e teve existência histórica, na figura de Jesus Cristo. Assim tornou-se possível para todos os homens procurá-Lo por via mística ou outra.

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1 Ver Luís de Sousa Rebelo, “Camões e o sentido de Comunidade”, in Camões e o Pensamento Filosófico do seu Tempo, Lisboa, Prelo, 1979, pp. 61-94.

2 Camões, Endechas a Bárbara escrava, Aquela cativa, Rimas, edição de Álvaro Júlio da Costa Pimpão, Coimbra, 1981, nº 105.

3 Homero, Odisseia, XII, 374-453, Ulisses, após ter escapado a um naufrágio provocado pela tempestade desencadeada por Zeus, enfrenta Cila e Caríbdes; consegue não ser destruído por Caríbdes e acaba por não ser notado por Cila, na fase final do seu combate solitário contra Caríbdes. Ulisses consegue ainda resistir ao canto das sereias, monstros cantantes, metade mulher e metade pássaro, que viviam numa ilha próxima dos monstros Cila e Caríbdes e cujo canto prendia os navegantes, desviando-os das suas rotas. Ulisses e os seus companheiros agarraram-se aos mastros, taparam os ouvidos, ao passarem perto das sereias. Ulisses ainda tentou ouvi-las, mas resistiu; a sua resistência terá provocado a morte das sereias, por despeito.

4 G. Roppen, Strangers and Pilgrims: an essay in the metaphor of the journey, Oslo, Norwegian University Press, 1962 (vide nota 1 do presente ensaio).

5 Helder Macedo, Camões e a viagem iniciática, Lisboa, Morais Editores, 1980.

6 Mircea Eliade, Initiation, rites, sociétés secrètes, Paris, Gallimard, 1968.

7 Ver Homero, Odisseia, XI, 90-149.

8 Ver Virgílio, Eneida, VI, 752-805.

9 Ver Chrétien de Troyes, Lancelot ou le Chevalier de la Charrette, traduction, introduction et notes par Jean-Claude Aubailly, Paris, GF – Flammarion, 1991.

10 Idem, Le Conte du Graal ou le Roman de Perceval, édition du manuscrit 354 de Berne, traduction critique, présentation et notes de Charles Méla, Paris, Le livre de Poche Lettres Gothiques, Librairie Générale Française, 1990.

11 Dante, La Divine Comédie, L'Enfer – Inferno, texte original, traduction, introduction et notes de Jacqueline Risset, Paris, GF – Flammarion, 1985.

12 Ver Dante, La Divine Comédie, Le Purgatoire – Purgatorio, texte original, traduction, introduction et notes de Jacqueline Risset, Paris,GF – Flammarion, 1988. Dante, La Divine Comédie, Le Paradis – Paradiso, texte original, traduction, introduction et notes de Jacqueline Risset, Paris,GF – Flammarion, 1990.

13 Ver Ludovico Oriosto, Orlando Furioso, translated with an introduction by Barbara Reynolds, 2 vols., Penguin Classics, 1981 (1) e 1977 (2).

14 Os Lusíadas, I.

15 Fernão Álvares do Oriente, Lusitânia Transformada, obra publicada postumamente em 1607, escrita em prosa e em verso, romance bucólico construído através de diálogos de pastores que, após uma peregrinação, chegam ao Templo da Poesia, que se encontra em ruínas, onde apenas se encontra de pé a estátua de Camões, todavia ameaçada pelos inimigos invisíveis –“que com muitos tiros pretendiam danificá-la” (69v)-, invejando o poeta por não conseguirem escrever um poema épico. Vide Fernão Álvares do Oriente, Lusitânia Transformada, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1985

16 Ver Luís Filipe Thomaz, «Entre l’histoire et l’utopie : le mythe du prêtre Jean», in Les civilisations dans le regard de lAutre, Actes du Colloque International, Paris, Unesco, 2002, pp 117-142 ; notas, pp 369-279. Caracteriza o Preste João Asiático, o Preste João Africano, para concluir sobre o significado da lenda e a sua posteridade. O reino do Preste João seria um reino messiânico e utópico, sem mentira e sem roubo, na fronteira entre o mito e a utopia, não no sentido de utopia de Thomas Moore ou Campanella – como uma nova sociedade organizada- mas como uma disposição misteriosa da providência. Está ainda próximo do conceito de idade do ouro, entre os autores antigos, como Hesíodo e Ovídio. Harmoniza a ideia de paraíso original com o futuro reino messiânico do milenarismo da Ásia Menor antiga, (vide p. 138) reino sem mentira, sem roubo, imune perante o diabo, e na plenitude de bens temporais (ibidem).

17 Ver Os Lusíadas, VI, 29-30.

18 Apesar de ser conhecido, na tradição clássica, o tema da discórdia nos infernos intra-telúricos, semeada por Alecto, uma das Fúrias, convocada por Juno, não entre deuses, mas entre os mortos, a catábase de Baco, n’Os Lusíadas, é a de um deus ligado às energias da vida e da terra que desce ao inferno subaquático para semear a discórdia entre os deuses marinhos. Esta é uma das grandes novidades da imaginação e da mimese fantástica da epopeia camoniana.

19 Os Lusíadas, V, 23, 8.

20 Os Lusíadas, X, 82, 5-6.

21 Os Lusíadas, VI, 28-30.

22 Os Lusíadas, VI, 31-32.

23 Os Lusíadas, VI, 31.

24 Os Lusíadas, V, 41, 5; 42, 1-4.

25 Os Lusíadas, VI, 9-14; 20-25.

26 Os Lusíadas, VI, 24.

27 Os Lusíadas, V, 52-59.