PENTECOSTES
HOMILIA

Somos todos passantes, mas nem todos somos peregrinos. Peregrinar é procurar um sentido para a nossa passagem nesta vida; é o desejo de conhecer a finalidade da nossa viagem; é atravessarmos um espaço interior e/ou exterior, sabermos que podemos ser como o “peregrinus”, ou seja, "aquele que atravessa campos”, aquele que atravessa espaços fora do seu espaço de origem, o estrangeiro. O “peregrinus” pode caminhar num espaço físico ou humano em que se sinta estrangeiro, pela novidade ou a diferença, o inesperado, a mentalidade, os costumes, os gestos do quotidiano. Como peregrinos, nesta vida, podemos encontrar-nos numa encruzilhada, acender uma fogueira e procurarmos juntos um sentido para o nosso peregrinar. Olhando as línguas de fogo, vemos que elas vão contra as leis da matéria, porque são ascendentes. Ao contemplarmos as línguas de fogo, elas elevam-nos de naufrágios, desastres e procuras, para a consciência de que o fogo é alegria e tristeza. A nossa vida ondula em ritmos roucos, sintonias, dissonâncias, desaires, desintegrações; procuramos o sopro do Espírito.

É difícil discernirmos o nosso espírito, manifestado na nossa inteligência – no sentido de capacidade de ler no interior de -com o intelecto, com o coração e o corpo, do Espírito Santo- gr. “Agios Pneuma”; lat, “Spiritus Sanctus”. Spiritus: sopro; Sanctus: unido- que une o que estava desatado-, o Espírto que sopra onde quer. É talvez possível esse discernimento entre espírito e espírito santo quando a nossa linguagem verbal, gestual, o silêncio, dão espaço à linguagem ou ao silêncio do Outro que se sente feliz por ouvir inesperadamente a sua linguagem mais familiar- a da amizade. A alegria de ficarmos unidos surpreende-nos, porque nos permite ouvir a nossa linguagem, falar a língua dos outros, vivificar a diversidade e a unidade.

Os peregrinos do Pentecostes, vindos de doze nações para Jerusalém, tendo ouvido rumores sobre as manifestações do Espírito Santo aos apóstolos, como sopro de vento violento e línguas de fogo sobre a cabeça de cada um deles, esses peregrinos não tiveram medo do inesperado e, apesar de desconcertados, aproximaram-se dos apóstolos e também receberam os mesmos dons. Compreendiam que a nova linguagem, una e diversa, era relativa às maravilhas; às coisas magníficas- gr. ta megaleia.- de Deus.

Aqui nos fica o convite para, na expressão do filósofo Heraclito de Éfeso, ter a esperança de “esperar o inesperado”[1]; ou, na expressão de Simone Weil “esperar por Deus”[2] que nos reserva maravilhas, ou seja algo que nos espanta, nos surpreende por ser magnífico e inesperado, por vezes escondido em ínfimas sementes, no abismo, na sombra, no quotidiano, neste mar de guerras, na luta pela sobrevivência, para nos encorajarmos uns aos outros a não desistir, a dizer “não” à violência manifesta, latente ou camuflada, a começar pela mentira que é a violação da verdade que procuramos; o abuso, a opressão, a corrupção, a poluição e desintegração, a perseguição religiosa, ideológica ou outra.

Procuramos algo de prático, sem receitas, um sentido, uma direcção, a liberdade como o vento, um sopro que nos mantenha vivos, enquanto passantes aspirando a sermos peregrinos. Procuramos como ouvir e ser ouvido, dando a palavra a todos, num espaço de palavra que é comunicação e esperança e que nos faz crescer juntos e irmos tendo autoridade, porque crescemos juntos. “Auctoritas” (lat.)= autoridade pertence à família de lat. “augere”=aumentar, crescer.

Procuramos um espaço de esperança e de palavra que cura, que nos faça vibrar de ardência, “estarmos atentos como antenas”[3]. Procuramos pararmos juntos no presente, olhando meditativamente para o fogo. Esta nossa entrega ao presente alivia-nos do passado, fazemos uma pausa no tempo, alivia-nos da preocupação perante o futuro com alguns horizontes de catástrofe. Somos livres de crescermos juntos e de procurarmos ser receptivos aos dons não contabilizáveis do Espírito Santo. Paulo convida os Coríntios a darem importância à presença do Espírito, do Senhor, e não às manifestações espectaculares que designa como “pneumatika”[4]. Constitui um convite ao discernimento para a procura do espírito. Paulo afirma que os dons da graça- gr. charismata, da família de “charis”=graça, caridade, o dom gratuito- são diversos, mas o importante é o mesmo espírito- gr. “auto pneuma”, o Espírito Santo que faz tudo em todos – gr. “ energon”-. Há que viver de dentro e não do espectáculo.

Este convite tem sempre actualidade na nossa época, pois viver do espírito é das áreas em que mais podemos errar e mais podemos acertar, na passagem da vida. Há que nunca esquecermos a graça, o dom gratuito que vem até nós pela palavra de um amigo que nos surpreende no quotidiano, pelo inesperado. A nossa procura de discernimento, de educação interior, do que é menos brilhante, do que é meditado, interiorizado, à escuta de Deus e do Outro nos outros, partilhada com os nossos companheiros de caminho, se os tivermos, com atenção, prudência e intrepidez. Há que distinguir o que é manipulação própria e alheia – já São João da Cruz aludia às “raposas del alma”[5]- daquilo que vem do Espírito. Urge que a inteligência deixe de ser uma arma de manipulação e se converta, se transforme em dom de nós próprios, transformada pelos dons da graça, do Espírito. Jesus Cristo, no Pentecostes, insufla o Espirito Santo aos apóstolos para lhes fortificar a inteligência, na sua missão apostólica, depois de se ter dado a reconhecer, após a sua ressurreição num espaço inesperado e fechado onde os apóstolos se encontravam[6].

Que o Espírito nos faça descentrar de nós próprios e nos faça falar a língua do respeito, da atenção ao outro, no sofrimento ou na alegria. Que desça ao mais íntimo de nós, na fidelidade ou fé prolongada. Sem a força do Espírito, nada é inocente, destituído de prejuízo para nós todos e as experiências de vazio poderão tornar-se excessivas. Precisamos de nos deixar renovar regularmnete, mesmo sem nos darmos conta. Se a solidariedade de cada um de nós actuar no momento exacto e se confiarmos no dom do amor e da amizade que é o mais identificável com os dons do Espírito, a água correrá no deserto interior.

Urge tornarmo-nos receptivos, maleáveis ao Espírito, deixando mudar em nós o que é rígido, deixando acalentar o que é frio, indiferente, excessivamente fraco, tíbio . O fogo é alegria e esperança, é vida a partir da madeira morta. Que o nosso espírito suba como uma chama e que o Espírito tudo transforme em alegria, nesta passagem peregrina. Que a sabedoria que é a ternura do espírito nos torne livres como o vento que sopra onde quer.

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[1] Heraclito, fragmento 18 :” Sem a esperança não encontraremos o inesperado que não é encontrável e é inacessível “ Trad. Helena Langrouva, de Les Penseurs Grecs avant Socrate, Paris, Garnier-Flammarion, 1964, p. 75
[2] Simone Weil, Attente de Dieu, Paris, La Colombe, 1961
[3] Esta expressão é de Sophia de Mello Breyner Andresen,: “A Poesia pede-me... que viva atenta como uma antena”, in Arte poética II, Obra Poética III, p.95
[4] Paulo, 1 Cor. 12, 3b-7.12-13
[5] San Juan de la Cruz, Cantico Spiritual, in Obras Escogidas, Madrid, Espasa Calpe, 1964
[6] Evangelho de João, 20, 19-23