Vasco Cabral (Farim, 1926-Bissau, 2005)

Onde está a poesia?

A poesia está nas asas da aurora
quando o sol desperta.

A poesia está na flor
quando a pétala se abre
às lágrimas do orvalho.

A poesia está no mar
quando a onda avança
e branda e suavemente
beija a areia da praia.

A poesia está no rosto da mãe
quando na dor do parto
a criança nasce.

A poesia está nos teus lábios
quando confiante
Sorris à vida.

A poesia está na prisão
quando o condenado à morte
dá uma vida à liberdade.

A poesia está na vitória
quando a luta avança e triunfa
e chega a Primavera.

A poesia está no meu povo
quando transforma o sangue derramado
em balas e flores
em balas para o inimigo
e em flores para as crianças.

A poesia está na vida
porque a vida é luta!

In: Antologia poética da Guiné-Bissau, 1990

Pindjiguiti

3 de Agosto
1959

Bissau desperta inquieta
do sono da véspera.

Sopra o vento de morte
no cais de Pindjiguiti!

E de repente
o clarão dos relâmpagos
o ribombar dos travões.

O meu povo morre massacrado
No cais de Pindjiguiti!

Um clamor de vozes
ameaças e pragas
fulmina o espaço
num coro de impotência.

O meu povo morre massacrado
no cais de Pindjiguiti!

Janeiro de 1972
In: Antologia poética da Guiné-Bissau, 1990

África! Ergue-te e caminha!

Mãe África!
Vexada
Pisada
Calcada até às lágrimas!
Cnfia e luta
E um dia a África será nossa!

Quando à floresta chegar o meu grito
e o tantã ritmado do batuque chamar os irmãos à luta,
Quando, como um só homem, nos decidirmos a não vergar a fronte
E fizermos o branco tratar-nos como igual.
Quando, a cada violência, responder o brado da nossa imaginação
E o nosso apelo chegar ao coração e à consciência das massas
E como um fluido electrizante reunir no mesmo «meeting»
O negro estivador e o negro camponês.
Quando cada palavra de ordem for cumprida
E o nosso voto e a nossa vontade forem livres
como um pássaro no espaço.
Quando em cada alma de negro brilhar o sorriso da vitória
E sair de cada fábrica uma palavra de ordem
como um brado de combate e esperança.

Quando ao chicote agressor
Quiser responder a justiça das nossas mãos
E as nossas filhas e as nossas irmãs
Deixarem de ser as escravas do senhor
que é o dono das terras e é o dono das vidas.
Quando cada amigo, seja branco ou amarelo,
for tratado como irmão
e lhe estendermos a mão como se fora um negro
e o aceitarmos lado a lado no combate.
Oh! Quando nos nossos olhos brilhar o fulgor do orgulho
E for inabalável a vontade duma condição humana,
como um rio que inunda sem cessar.
E porque à floresta chegou o meu grito
E acordou os irmãos ao som ritmado do tantã.

Desperta-me Mãe-África!
E serás mais minha mãe.

Desperta irmão negro!
E serás mais meu irmão
porque encontramos o caminho da vitória final!

Mãe África!
Vexada
Pisada
Calcada até às lágrimas!
Confia e luta,
E um dia a África será nossa!

In: Antologia poética da Guiné-Bissau, 1990

Caleidoscópio

Um negro,
um branco
um forte abraço mútuo,
o mesmo alvo sorriso.
O pensamento: bandeiras verdes e brancas.

Um amarelo,
um negro,
destinos que se ligam,
o mesmo rubro sangue.
O pensamento: bandeiras verdes e brancas.

Um branco,
um amarelo,
um aperto de mãos,
a mesma dor humana.
O pensamento: bandeiras verdes e brancas.

Um negro,
um amarelo,
um branco,
o mesmo homem
em cores caleidoscópicas:
o mesmo alvo sorriso,
o mesmo rubro sangue
a mesma dor humana:
O mesmo pensamento: bandeiras verdes e brancas!

1957

In: Antologia poética da Guiné-Bissau, 1990

 

Aos poetas

Poetas! A vida é o melhor poema.
Faz do verso a charrua de mil braços.
Queremos ver a terra fecundada!

In: Antologia poética da Guiné-Bissau, 1990

A luta

A luta é a minha primavera
Sinfonia de vida
o grito estridente dos rios
a gargalhada das fontes
o cantar das pedras e das rochas
o suor das estrelas!
a linha harmoniosa dum cisne!

A luta é a minha primavera, 1981
In: Antologia poética da Guiné-Bissau, 1990

O último adeus dum combatente

Naquela tarde em que eu parti e tu ficaste

sentimos, fundo, os dois a mágoa da saudade.

Por ver-te as lágrimas sangrarem de verdade

sofri na alma um amargor quando choraste.

 

Ao despedir-me eu trouxe a dor que tu levaste!

Nem só o teu amor me traz a felicidade.

Quando parti foi por amar a Humanidade

Sim! foi por isso que eu parti e tu ficaste!

 

Mas se pensares que eu não parti e a mim te deste

será a dor e a tristeza de perder-me

unicamente um pesadelo que tiveste.

 

Mas se jamais do teu amor posso esquecer-me

e se fui eu aquele a quem tu mais quiseste

que eu conserve em ti a esperança de rever-me!

A luta é a minha primavera, 1981
Em: Manuel Ferreira, 50 Poetas Africanos. Lisboa, Plátano Editora, 1989

Anti-delação

A noite veio,

disfarçada em dia,

e ofereceu-me a luz,

diáfana como a Aurora.



Mas eu disse que não.



Depois veio a serpente

disfarçada em virgem

e ofereceu-me os seios e os braços nus.



Mas eu disse que não.



Por fim veio Pilatos,

disfarçado em Cristo,

e numa voz humana e doce

disse: "se quiseres eu dou-te o paraíso

mas conta a tua história..."



Mas eu disse que não,

que não, não, não!



E continuei um Homem!

E eles continuaram

os abutres do medo e do silêncio.

A luta é a minha primavera, 1981
Em: Manuel Ferreira, 50 Poetas Africanos. Lisboa, Plátano Editora, 1989

Os poetas gostam de alinhar

Os poetas gostam de alinhar

Versos e mais versos

E construir Universos

De palavras.

Se o Universo

Se o Universo

coubesse

na linha de um verso

e se pudesse

transformar-se em prado

seria

uma felicidade

e também uma alegria

para a Humanidade



E em vez da guerra

só haveria a Paz

para todos o homem na terra!

Progresso

Quantas vezes eu fico meditando
à hora em que há silêncio e tudo dorme
em como a Vida é uma batalha enorme
onde se uns perdem outros vão ganhando.

A luz do Pensamento foi brotando
dum ser, de início animal disforme.
Moldou o homem a matéria informe,
a têmpera do ferro a mão foi forjando!

A alma humana fez-se multicor.
Os que aprenderam a pugnar na vida
gritam ao tempo um brado, sem temor.

Se nunca a Esperança for perdida
Homem! a Vida — esse grão de amor —
será seara da terra prometida.
 

A luta é a minha primavera, 1981
Em: Manuel Ferreira, 50 Poetas Africanos. Lisboa, Plátano Editora, 1989

Liberdade

Que vento sopra no coração dos homens?
Que angústia é
a pomba branca cruzando o espaço?
Que dor esmaga
a dor da alma dos oprimidos?
Que lágrimas
que ferida
que sangue escorre
tão lentamente
do leito infindo do mar da vida?
Em cada vento tu estás.
Em cada angústia a tua expressão clara.
E nas lágrimas
e nas feridas
e no sangue
e nos corpos
e nos êxtases
e no grito das virgens desfloradas
e a tua face vermelha e bela
espçeita a esperança como um rosto de lua
O Liberdade!
 

A luta é a minha primavera, 1981
Em: Manuel Ferreira, 50 Poetas Africanos. Lisboa, Plátano Editora, 1989

A floresta pariu de novo

A floresta pariu de novo
Não os frutos
Não os ramos
Não os troncos
Nem as árvores gigantes.

A floresta pariu de novo
o cimento duma alma nova
a sinfonia da patchanga
e um cântico de liberdade!
Não os troncos
Nem as árvores gigantes.


A luta é a minha primavera, 1981
Em: Manuel Ferreira, 50 Poetas Africanos. Lisboa, Plátano Editora, 1989

É este o meu destino

Caminhar
caminhar sempre
caminhar num caminho aureolado de espinhos

Que importa?

Abre-te ó alma à criação de sóis
para a Primavera da vida!
uma vida pujante
como um mar em revolta!
Caminhar
caminhar sempre
para criar humanidade
para criar a Humanidade!


(22-6-1972)
A Luta é a Minha Primavera

In: Aldónio Gomes & Fernanda Cavacas, A literatura na Guiné-Bissau. Lisboa, Grupo de Trabalho do Ministério da Educação para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1997

Saudades dos que dizem adeus

Saudades dos que dizem adeus:
lágrima
voando, voando
como asa de brisa.

E longe
mas perto
o coração a bater, a bater...

Saudade dos que dizem adeus:
grito com eco
repercutindo no peito
em silêncio, em silêncio...

É dor
sem ser dor:
fogo que queima na alma.

Presença inefável
do vago.
Murmúrio da onda
que chega e parte
sem se mover.

Saudade dos que dizem adeus:
lágrima
voando, voando
como pássaro triste!


(1957)
A Luta é a Minha Primavera

In: Aldónio Gomes & Fernanda Cavacas, A literatura na Guiné-Bissau. Lisboa, Grupo de Trabalho do Ministério da Educação para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1997

Desabafo

Oh! Que bom seria transformar

Os falcões em pombas

E fazer as pombas sorrirem na Primavera

Oh! Como gostaria eu

De beijar na boca a madrugada


E afagar com os meus dedos

os cabelos do futuro

para que a paz e a liberdade

fossem universais.

VASCO CABRAL . Vasco Cabral faleceu em Bissau, no passado dia 24 de Agosto [de 2005]. Tinha 79 anos de idade.

Estudou em Portugal. Onde se formou em Ciências Económicas e Financeiras pela Universidade Técnica de Lisboa. Onde foi militante do MUD juvenil, movimento unitário de oposição à ditadura fascista, fortemente influenciado pelo PCP. E onde foi preso político, no Aljube e em Caxias.

Na guerra contra o retrógado império colonial que a ditadura fascista portuguesa insistia em tentar manter, Vasco Cabral tornou-se um dos principais dirigentes do Partido Africano pela Independência de Guiné Bissau e Cabo Verde (PAIGC) e foi comandante político da guerrilha de libertação nacional.

Foi um próximo companheiro de armas de Amilcar Cabral, líder da luta pela independência da Guiné Bissau e de Cabo Verde - com quem não tinha nenhum laço familiar, ao contrário do que sugere o facto de terem um apelido idêntico.

Com a independência da Guiné Bissau, desempenhou funções no Governo (ministro da Economia e Finanças, coordenador de Economia e Planeamento, ministro de Estado da Justiça e membro do Conselho de Estado). Foi vice-Presidente da República e fundador da União Nacional de Escritores da Guiné-Bissau.

Luís Carvalho
IN: http://estudossobrecomunismo.weblog.com.pt/arquivo/209096.php

Poesia no Didinho
http://www.didinho.org/poesia.htm

http://www.prof2000.pt/users/jdsa03/olho/0304/marco/sp.htm

http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_africana/guine_bissau/vasco_cabral.html

 

http://senegambia.blogspot.com/