FERNANDA DE CASTRO
(1900-1994)

O VENENO DO SOL (citação do cap. XVII)

Lisboa, 1928, 1ª ed.
Lisboa, Círculo. Leitores, 2006

[...]
O arrozal vai ficando para trás. A estrada, agora, é lisa e direita, com tamareiras bravas e cibes aprumados como sentinelas à porta da floresta.

O perfume doce das acácias espalha na atmosfera pesada o eterno sortilégio dos trópicos.

Papaeiras coroadas de papaias, bananeiras de cachos maduros, calabaceiras de troncos enormes e raízes minúsculas erguem majestosamente para Deus as suas copas sem fim. No coração da floresta, a graça de Maria Luísa é como a duma flor perdida em que os olhos repousam, exaustos de subir tanto. Dez, quinze, vinte gazelas descansam na lala em atitudes graciosas de convalescentes. Uma fritambá preciosa destaca-se do fundo verde do arrozal com a graça dum desenho vivo. Colibris, duma pequenez inverosímil, tingem de cores risonhas a paisagem brutal. Foliotocolos de penugem verde e metálica, fazem pensar em esmeraldas vivas. E os grandes pavões dos trópicos, de papo azul e popa castanha, abrem lentamente, sob os leques das palmeiras, os leques azuis e vermelhos das suas asas. Um perfume intenso a flores e a frutos espalha no ar uma frescura sumarenta. A sombra dos poilões e das palmeiras, multiplicam-se os frutos; há bananas carnudas, pintadas de castanho; cajus amarelos com nódoas vermelhas; ananases sumarentos de perfume selvagem; goiabas de sabor amargo; mangas a escorrer sumo; manípulos, implacáveis para os Europeus; manjanjas vermelhas que tombam da árvore logo que amadurecem; e além destes, a variedade infinita dos que não têm nome, dos que os Brancos ignoram, dos que têm uma forma bizarra e um sabor estranho, o sabor da própria floresta. O sol, através das árvores, chega à terra empalidecido. Dir-se-ia que todo o seu oiro ficou na pele dos cajus, nos papos dos foliotocolos e nas corolas da mancarra.

O automóvel segue, segue ao longo dum rio de águas turvas, onde os crocodilos esperam as pirogas instáveis que balouçam sobre a água, e às vezes sobre a morte, o seu carregamento vivo. Hipopótamos pesados repousam nas margens, como troncos ao sol, e pequenas lontras esquivas descansam à sua sombra. Macacos, macacos de todos os feitios, de todos os tamanhos, saltam de ramo para ramo, formando cachos, meadas, colónias, aldeias, no sétimo céu das árvores mais altas.

Uma frescura húmida, perigosa, perversa... Formigas enormes, pequenos animais rasteiros, toda a fauna subterrânea da floresta vive a sua vida sem brilho aos pés da grande família vegetal que se multiplica sobre o solo demasiado rico. Os leopardos e as onças, escondidos nas tocas, esperam o crepúsculo equívoco, a meia sombra propícia, para estenderem, sobre o corpo submisso da floresta, as suas garras poderosas de eternos senhores feudais.

E sobre as feras, sobre os frutos e sobre os rios, o jardim suspenso das borboletas.

Chão de Fulas e Mandingas. Bafatá. A casa europeia da Administração, meia dúzia de pequenos edifícios banais, e mais além, onde acaba a civilização, o deslumbramento de tudo o que se ignora... [...]

Poetisa, romancista, dramaturga e tradutora Fernanda de Castro estreou-se aos 19 anos com o livro de poesia Ante-Manhã. Vence nesse ano (1919) o Primeiro Prémio no concurso de originais do Teatro Nacional, com a peça Náufragos. Com o romance Maria da Lua (1945) foi a primeira mulher a obter o prémio Ricardo Malheiros da Academia de Ciências de Lisboa. Em 1969 é-lhe atribuido o Prémio Nacional de Poesia. Foi também tradutora de Rilke (Cartas a um Poeta), de Katherine Mansfield (Diário), de Sófocles, Pirandello, Maeterlinck e Ionesco.

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