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A.M. GALOPIM DE CARVALHO

"ONDE A TERRA SE ACABA E O MAR COMEÇA"
(O LITORAL PORTUGUÊS NOS ÚLTIMOS 18 000 ANOS)(2)

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Exclusão feita à intervenção antrópica, em qualquer continente ou porção de terra, mesmo na mais pequena das ilhotas perdidas no oceano, a fronteira terra-mar define-se naturalmente numa dialéctica ditada pelas leis naturais, isto é, as da geologia e da biologia que são, em última análise, as da física e da química. Sempre que a sedimentação é mais intensa do que a erosão, e não havendo outras interferências, estabelecem-se linhas de costa de acumulação, em crescimento sobre o mar. É o litoral anamórfico, geralmente arenoso, às vezes cascalhento, bem exemplificado pelas praias. O recuo da costa verifica-se no caso inverso, resultando daí arribas alcantiladas ou falésias, se se quiser utilizar o termo aportuguesado do nome francês falaise. É o litoral catamórfico.

Uma praia pode crescer, recuar ou, até, ser varrida pelo mar em função do balanço que aí existir entre a erosão e a sedimentação. No geral uma praia representa uma situação de equilíbrio instável, em que a quantidade de areia que lhe é fornecida pela terra ou pelo mar compensa a que lhe é retirada pelo mesmo mar (para realimentar outros sectores do litoral), na manutenção de um processo de migração dos sedimentos, ao longo da costa, a que chamamos deriva litoral. A praia comporta-se, pois, como um "rio de sedimentos", no geral areias, que corre ao longo da costa. Por exemplo, na costa ocidental portuguesa, a tendência geral desta deriva é de norte para sul. Em sentido figurado, poderá comparar-se uma praia a um troço de um grande "rio de areia", que corre ao longo do litoral, com uma parte emersa (praia emersa) e outra submersa (praia submersa) e que só se mantém assim enquanto houver a "montante" areia que a realimente.

Não é por acaso que o litoral entre Espinho e o Cabo Mondego é rectilínio, com uma orientação NNE-SW, e que o troço a sul deste cabo até à Nazaré, igualmente rectilínio, têm idêntica orientação. Tal deve-se à sua exposição face à orientação dominante da vaga nesta fachada litoral. Também as curvaturas regulares da Costa da Caparica e do areal entre Tróia e Sines se explicam em termos de dinâmica do mar e de certos acidentes da costa que ali condicionam o trabalho das vagas e da deriva litoral. Sabemos hoje explicar, praticamente, todos os recantos da nossa costa desde as pequenas praias nas reentrâncias rochosas da Costa Vicentina, aos grandes areais a norte da Nazaré, ao complexo sistema das Rias Formosa e de Aveiro, aos assoreamentos dos nossos portos, à bela forma em "conha" de São Martinho do Porto, às saliências alcantiladas de Sagres, do Espichel, da Roca, de Peniche e do Mondego.

Os deltas, os estuários e as lagunas são na grande maioria formas geográficas e ambientes hidrodinâmicos e ecológicos situados na fronteira ou na transição entre as terras e os mares. Neles se fazem sentir, simultaneamente, as acções dinâmicas, químicas e biológicas destes dois grandes domínios.

Deltas e estuários, como entidades morfossedimentares que são, de facto, representam, em geral, duas situações opostas da dialéctica que se estabelece entre a erosão e a sedimentação, na foz de muitos rios. Se domina a sedimentação da carga sólida transportada fluvialmente, forma-se o delta, entidade que cresce enquanto se mantiverem essas condições. Se, pelo contrário, domina a erosão e a energia do mar for suficiente para remobilizar e evacuar (para o largo) esses sedimentos, desenvolve-se o estuário.

Igualmente na interface terra-mar, as lagunas constituem ambientes hidrodinâmicos e biológicos na fronteira dos dois referidos domínios. Estas bacias, apelidadas de parálicas, são entidades deprimidas, geralmente pouco profundas e parcialmente fechadas ao mar por uma barreira arenosa, rochosa ou recifal (nos litorais intertropicais). As nossas lagunas (geralmente referidas por lagoas) de Óbidos, Albufeira, Santo André, Melides são antigos estuários fechados por cordões de areia. A ria de Aveiro, igualmente uma laguna é um vasto corpo de água confinado por uma barra de areia com a particularidades de conter, no seu interior, o delta do Vouga. Igualmente laguna, a ria de Faro-Olhão ou Ria Formosa é um sistema complexo de ilhas-barreiras. Embora pequenas são ainda lagunas a Ria de Alvor e a Barrinha de Esmoriz. Ria é um termo antigo da língua portuguesa, que significa esteiro ou grande rio, aplicado a estes corpos de água. Num texto datado de 1416, lê-se "... na Ria que há deante dicta cidade..." [ de Faro ] e, ainda hoje, os habitantes da Ilha de Faro chamam rio à laguna. Os nomes das nossas rias (Faro-Olhão, Aveiro e Alvor) são muito anteriores ao sentido que F. von Richthofem, em finais do século XIX, deu ao termo ria aplicado às rias galegas (depressões tectónicas de tipo graben). Por influência deste geógrafo alemão e seus continuadores, as nossas rias passaram, então, desnecessariamente, a ser designadas por alguns autores, como Haff deltas ou simplesmente Haff, termo germânico que quer dizer, precisamente, laguna.
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