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A.M. GALOPIM DE CARVALHO

"ONDE A TERRA SE ACABA E O MAR COMEÇA"
(O LITORAL PORTUGUÊS NOS ÚLTIMOS 18 000 ANOS) (1)

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O litoral, em geral, e o traçado da linha de costa, em particular, são o resultado de um vasto conjunto de factores naturais a que, nos tempos mais modernos, se têm vindo a associar outros, próprios da acção do Homem. Entre os factores naturais, por serem mais visíveis, sobressaem a natureza e estrutura das rochas, bem como a sua maior ou menor resistência à erosão, a latitude e, consequentemente, o clima, que se manifesta na pluviosidade, na temperatura e nos ventos, o relevo, a orientação da costa face à incidência dominante da vaga e, outros, de natureza hidrográfica, como sejam as marés, a agitação marítima e as correntes marinhas.

A este conjunto devem associar-se outros factores particularmente importantes, de âmbito mais alargado, à escala regional e/ou global. Um deles relaciona-se com a existência de movimentos verticais da litosfera, de consequências no litoral mais ou menos sensíveis. Com efeito, ao contrário de certas áreas continentais, de há muito estabilizadas, outras há que se afundam ou elevam, numa espécie de flutuação da litosfera sobre o manto, em procura (extraordinariamente lenta) de um equilíbrio gravítico, dito isostático, resultando daí, em termos relativos, subida ou descida do nível do mar e, portanto, recuo ou avanço da linha de costa. As rias galegas são o resultado de um afundamento deste sector da Península, o que permitiu a inundação dos troços terminais dos vales fluviais aí existentes. A planície do Pó, em Itália, situada a sul do bloco franco-germânico, continua a afundar-se, o mesmo sucedendo à região de Veneza. Pelo contrário, certas regiões da Escandinávia sobem (à razão de 1cm/século) uma vez aligeiradas da cobertura de gelo que as afundou durante a última glaciação quaternária (referida por Würm, na Europa, e por Visconsin, na América do Norte), o que não deixa de se reflectir na evolução do traçado do seu litoral no pós-glaciário.

Um outro factor liga-se à dinâmica global, reflectindo a estabilidade tectónica das margens passivas, quando estas se situam no interior de uma mesma placa, ou a sua instabilidade, no caso das margens activas, situadas na fronteira de duas destas grandes unidades litosféricas. Relacionados com estes dois tipos de margem são exemplos, respectivamente, os litorais americano, africano e europeu virados ao Atlântico e os que definem o contorno do oceano Pacífico, constituindo o chamado Anel de Fogo, associado a grandes cadeias montanhosas (Andes, Rochosas) e a intensos vulcanismo e sismicidade.

Ainda um terceiro factor de âmbito global, entre outros mais complexos, relaciona-se com o glácio-eustatismo, isto é, a variação do nível médio das águas do mar decorrente dos fenómenos glaciários que caracterizaram os últimos tempos da história geológica do nosso Planeta. Às grandes retenções de gelo nas calotes polares e nas montanhas, durante os períodos glaciários, determinando o recuo dos mares (regressão), opunham-se períodos de degelo, marcados pela subida do nível marinho e consequente invasão das terras (transgressão).

Entende-se por litoral uma faixa de terrenos, na fronteira das terras (continentes e ilhas) com os mares, formada por uma franja bem visível, exemplificada pela parte emersa das praias ou pelos troços de costa rochosos, e uma outra, temporariamente submersa, em relação com o regime e a amplitude das marés.

O litoral pode ser definido como a interface entre a litosfera emersa e a hidrosfera, sem esquecer a interactividade que aí se estabelece também entre cada um destes domínios, a atmosfera (1) e a biosfera, a que pertencem os chamados recursos vivos do mar, tão do interesse das economias das populações e dos Estados. Mas o interesse do litoral como fonte de riqueza não se limita à actividade piscatória, cuja gestão, em termos de recursos (de renovabilidade discutível), nos ultrapassa. A actividade portuária, certos tipos de indústria, o urbanismo e o turismo são alguns entre os muitos recursos que o tornam grande atractor das gentes, com a consequente desertificação do interior. Um outro interesse, ainda, ligado ao litoral reside nos recursos não vivos, ou seja, os recursos geológicos, nos quais se incluem as consideráveis reservas de hidrocarbonetos naturais (petróleo e gás) em "off shore", de inertes (areias e cascalhos) e de outros produtos mais valorizados, de que são exemplo os diamantes, na Namíbia, ou a ilmenite, no Japão.

O litoral é uma entidade geográfica complexa, não só como paisagem física, mas também como expressão de ocupação humana, instável, em equilíbrio aparente, sempre frágil e precário, mesmo à dimensão temporal da nossa condição humana.

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(1) Comprovam-no, por exemplo, a ondulação marinha induzida pelo vento que é, afinal, o ar em movimento, e a meteorização das rochas, não só da franja litoral como das terras em geral, pelas implicações deste processo geodinâmico externo na erosão e na sedimentação.