GUADIANA ANTES DE ALQUEVA / Texto
A.M. GALOPIM DE CARVALHO
10-11-2004
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GUADIANA ANTES DE ALQUEVA

 
Dizem que havia um pastor
antre Tejo e Odiana,
que era perdido de amor
per ua moça Joana.
(Bernardim Ribeiro,
Écloga de Jano e Franco)
 

Grande rio do sudoeste ibérico, de importância capital na estruturação do território peninsular, foi usado pelos Romanos como divisória entre duas das grandes províncias administrativas do império, a Bética, a oriente, e a Lusitânia, a poente, confrontadas ao longo do troço que hoje corre a jusante do Caia. Designado até ao século XIII por Rio Ana, os Árabes respeitaram-lhe o nome, antepondo-lhe uadi, que significa rio, o mesmo elemento composicional que nos ficou nas designações de alguns rios no sul do país, como Odeleite, Odemira e outros mais, termo que está igualmente em uso nos uedes do noroeste africano, os vales secos correspondentes aos rios temporários característicos das terras semiáridas do Magrebe.

Uadiana ou Odiana foi o nome deste importante curso de água, eixo do al Garb al Andalus, que em árabe quer dizer o ocidente da Hispânia, englobando, grosso modo, a Andaluzia, hoje na Espanha, e os nossos Alentejo e Algarve. Odiana sobreviveu à reconquista, no século XIII, e assim se manteve, por mais três centenas de anos, na linguagem dos portugueses. Antre Tejo e Odiana era o nome da grande comarca e da circunscrição administrativa meridionais, ao tempo em que este rio foi fronteira entre os reinos de Portugal e de Leão, isto é, entre 1271 e 1295. Por seu lado os castelhanos transformaram o uadi, radicado na região ao longo de cinco séculos de ocupação islâmica, em guadi, elemento que ainda hoje compõe o nome de muitos rios do sul de Espanha, como Guadalimar, Guadalupe, Guadojoz e o mais conhecido de todos, o grande Guadalquivir. Guadiana é, assim, um nome importado que se impôs em virtude da sua posição raiana e que, a partir do século XVI, substituiu o antigo Odiana, perpetuado na Écloga de Bernardim Ribeiro, influência que não se verificou com os nomes Odeleite, Odiáxere e outros com a mesma raiz, correspondentes a rios mais afastados da influência castelhana.

A determinação da nascente de um qualquer rio é quase sempre uma discussão académica. Com efeito, um rio não nasce num só local a que se convencionou chamar nascente e que, regra geral, corresponde à cabeceira mais afastada, normalmente aquela que permite atribuir-lhe a maior extensão. O Guadiana não foge a esta visão e é por isso que se diz que nasce nas lagoas de Ruidera, na Mancha (Espanha) onde, de facto, se situam as suas cabeceiras mais recuadas, a pouco mais de oitocentos quilómetros da foz (1). Também se diz que este grande rio ibérico brota nos "Olhos do Guadiana", a cerca de 600 m de altitude, na zona de Villarrubia (Ciudad Real), todavia trata-se aqui de um regresso à superfície de águas da sua bacia a montante que, infiltrando-se em terrenos calcários, muito propícios à circulação subterrânea, ressurgem mais a jusante. Caminhando de início para sudoeste, o Guadiana percorre a Mancha, serpenteia depois, vigoroso, entre margens alcantiladas dos Montes de Toledo, perde ímpeto nos campos de Mérida e Badajoz, atitude que conserva como rio internacional até Monsaraz, onde se encaixa, meandrizando por entre os concelhos de Reguengos, Mourão, Vidigueira, Moura, Beja, Serpa e Mértola, tornando-se, a partir daí, navegável, condição em que serviu e ainda serve este e os concelhos de Alcoutim e Castro Marim.

O Guadiana é um rio antigo que, como dizem os geógrafos, está na sua fase senil. Os terrenos que atravessa, tanto em Espanha como em Portugal, são o que resta de uma vasta e imponente cadeia de montanhas que da Alemanha se dirigia para ocidente, pela França e sul de Inglaterra, de onde encurvava para sul, pelo que é hoje a Península Ibérica, continuando-se por Marrocos e pelos Apalaches, na América do Norte, hoje separados pela abertura e alastramento do Oceano Atlântico. Esta antiga cadeia elevou-se há mais de 300 milhões de anos por enrugamento de terrenos ainda mais antigos originando num grande mar que aqui existiu em vez das terras que hoje pisamos, como sejam os xistos e outras rochas observáveis na região, entre as quais as massas mineralizadas da Faixa Piritosa que, vinda das proximidades de Grândola, passa por Aljustrel e Neves-Corvo, atravessa a fronteira em S. Domingos e se prolonga até Huelva. O trabalho da erosão, na imensidade do tempo que se seguiu à formação deste colossal relevo, acabou por o arrasar, reduzindo-o à quase planura peninsular que dá pelo nome de Meseta Ibérica, de que o Alentejo é continuação para sudoeste. Nestes terrenos aplanados podem ver-se as raízes da dita cadeia, testemunhadas pelas camadas rochosas intensamente pregueadas, sendo o Guadiana, tal como o conhecemos, uma das últimas expressões desse longo e persistente trabalho de erosão.

Não obstante tratar-se de um grande rio drenando uma extensa área, a faixa do Alentejo que lhe corresponde está marcada pela secura, que se acentua de norte para sul e onde a azinheira predomina sobre a sua congénere corticeira, mais carente de humidade e, portanto, de distribuição mais virada ao Atlântico. A maior parte do seu caudal vem de Espanha, depois de represado nas barragens ali implantadas, perdendo-se no oceano, após um percurso de cerca de duzentos quilómetros num vale relativamente encaixado, marcado pela mais baixa pluviosidade do país, menos de 500 mm por ano, só igualável em terras transmontanas. Neste troço, e por duas vezes, o Guadiana faz fronteira com a vizinha Espanha, do Caia a Monsaraz e do Pomarão à foz, em Vila Real de Santo António. Aí, como dizia Bulhão Pato, há pontos em que se pode conversar de Portugal para Espanha. (Paizagens , 1871).

Como suas particularidades, a mais espectacular é, sem dúvida, o Pulo do Lobo, uma rotura no seu velho e mais ou menos regularizado perfil que, a cerca de oitenta quilómetros da foz é perturbado por uma espectacular queda de água, com 13 a 14 metros de desnível, onde a água, feita espuma, corre veloz e plena de energia. Água mole em pedra dura... O Pulo do Lobo é o estado actual de uma vaga de erosão desencadeada no último período glaciário, há uns vinte mil anos, durante o qual o nível geral do mar baixou mais de cem metros, o que aumentou a energia dos rios, obrigando-os a reescavarem os respectivos leitos. O Guadiana sofreu este efeito, tendo vindo a fazer recuar tal desnível, numa luta que só terá fim nas suas cabeceiras, daqui a muitos, muitos anos. Outra particularidade deste rio é a existência, a montante de Mértola, de abundantes terraços, geralmente marcados pela existência de cascalheiras fluviais em vários patamares de altura, entre 10 a 90 m acima do leito do rio, ricas em seixos rolados, testemunhado, de cima para baixo, os sucessivos níveis a que o rio correu no passado e que abandonou sempre que se encaixou no seu próprio vale. Os seixos rolados destes terraços são idênticos aos do leito actual. São de quartzito, uma rocha muito dura, e foram trazidos rio abaixo desde os Montes de Toledo, conjunto de relevos residuais formados pelo dito quartzito que, assim, por serem mais resistentes à erosão, sobressaem da planura da Meseta. Rio de grandes contrastes, o Guadiana, antes da implantação dos seus "embalses", no país vizinho, alternava as grandes estiagens com cheias desastrosas de que ficou célebre a de 1867 que, em Mértola, subiu 28 m acima do nível da preamar.

Desde sempre, como qualquer grande rio, o Guadiana foi pólo de atracção das populações. Os mais antigos testemunhos datam do Paleolítico, representado por abundantes utensílios em pedra lascada jacentes nos seus terraços. Tal atracção percorreu toda a Pré-história e os tempos históricos até aos nossos dias, sendo de assinalar, entre outros, os vestígios da ocupação romana, deixados nas minas de pirite de S. Domingos, a presença islâmica, hoje bem conhecida em Mértola, os vários castelos e praças fortes edificados nas suas margens e cercanias, o porto mineraleiro do Pomorão e as muitas dezenas de açudes construídos no seu leito a fim de lhe represarem as águas e com isso mover as respectivas azenhas.

Na continuidade da relação do Homem com a terra, a barragem de Alqueva representa o mais recente e talvez o mais grandioso e esperançoso abraço entre o Alentejo e o grande Rio.

 
(1) Como em qualquer bacia hidrográfica, todas as cabeceiras de todos os vales correm os seus subafluentes e afluentes não são mais do que rasgões na superfície do relevo, produzidos pela erosão das águas pluviais e de escorrência, escavando e fazendo recuar barrancos e torrentes que depois convergem em vales cada vez mais importantes que canalizam até ao rio principal as águas de toda a bacia e montante, quer as que escorrem em superfície, quer as que se infiltram no solo, para reaparecerem e aí, sim, em múltiplas nascentes ao longo desses vales. E é assim que o Guadiana alimenta e engrossa o caudal à custa de toda a pluvisosidade que cai na sua enorme bacia.