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A.M. GALOPIM DE CARVALHO - CIÊNCIA E SOCIEDADE


A propósito do belíssimo livro recentemente editado em Coimbra - LITOLOGIAS – de Helena Paiva Henriques e Rui Pena dos Reis, escreveu a autora, dirigindo-se a mim, “o livro, inspira-se muito na sua forma de estar na Geologia: fora de portas e para o público em geral”.

Não encontro melhor forma de expressar a minha maneira de estar, ao mesmo tempo, na Ciência e na Sociedade. E é nesta óptica que me proponho deixar aqui o meu contributo neste colóquio como testemunho pessoal de quem conheceu por dentro não só os subterrâneos, as salas e salões, os corredores, as escadarias e as torres de marfim do mundo da ciência e dos cientistas, mas também e de muito perto um dos sectores mais desprotegidos da nossa sociedade.

Tudo começou há mais de meio século que, como adolescente, curioso de saber, mais amante dos campos e de suas gentes do que da instituição escolar que então tinha, desinteressante e rígida. Foi no meio rural que despertei para o gosto da divulgação científica, gosto que me ficou e procurei desenvolver a par de uma intensa actividade igualmente gratificante de ensino na Universidade e de investigação científica, documentada em comunicações, artigos e livros na linguagem que lhes é própria. Com alguns destes meus conterrâneos troquei ensinamentos dos livros com saberes fruto da experiência sentida e vivida na natureza. Eu explicava-lhes a diferença entre fanerogâmicas e criptogâmicas, angiospérmicas e gimnospérmicas e eles davam nomes a todas as ervas, arbustos e árvores das redondezas, distinguiam os cogumelos comestíveis dos venenosos e conheciam os ritmos fisiológicos de plantas e animais induzidos pelas variações climáticas decorrentes das quatro estações do ano. Descrevia-lhes a fermentação e eles abriam-me os sentidos aos odores e ao calor exalados nos montes de estrume. Ensinava-lhes a composição do ar e o papel do oxigénio na oxidação e eles levavam-me a ver a combustão lenta dos fornos de carvão.

Foi no contacto com os camponeses que vi, na prática, a transformação da rocha em solo. A terra solta e as raízes que se lhe arrancavam, as folhas mortas e a microfauna desse fantástico ecossistema estavam ali ao dispor de quem quisesse observá-lo, cheirá-lo, esfregá-lo na mão e sentir e ver os grãos de areia e o pó barrento associado. Do pó da terra à lama, ao barro e à argila ia um passo e, com mais outro, falava-se de cerâmica, dos tijolos e das telhas, quer das actuais quer das tégulas que os romanos cá deixaram e ainda da loiça ou da chávena de faiança.

Falar da penicilina, das milagrosas qualidades germicidas deste então novíssimo antibiótico, explicando-lhes o significado deste e de outros termos do jargão dos cientistas era o começo de uma conversa que ia dar ao bolor do pão, de todos conhecido.

Dois anos de serviço militar obrigatório, a meio de uma licenciatura em Biologia, deram continuidade a esta preocupação de trocar conhecimento e, sobretudo, de despertar o gosto pelo saber. Levar os soldados do meu grupo de instrução, na maioria iletrados, a partilhar comigo os saberes deles e os meus foi algo que valorizou o tempo que tive de quartel como artilheiro.

Divulgar, ou seja, espalhar ou tornar comum entre o vulgo, pressupõe formas de comunicação acessíveis ao comum das gentes e, assim, a linguagem a usar, falada, escrita, audiovisual ou outra tem de ser simples, sem perda de rigor, apelativa e agradável. Facultar e receber conhecimentos são acções que devem ser entendidas como actos de prazer.

O conhecimento científico, cujo desenvolvimento nas últimas décadas registou progressos consideráveis, afirma-se, cada vez mais, não só como área do saber indispensável à preparação escolar e profissional, mas também como parte importante da formação global do cidadão. Nesta óptica, a divulgação científica interessa-lhe como elemento potenciador da sua capacidade de intervenção consciente, por exemplo, nas políticas de desenvolvimento e de ambiente, quaisquer que sejam as suas funções ou vocações no tecido social em que se insere.

A pouca atenção ainda dada à divulgação da ciência, por muitas sociedades do presente, tem razões culturais, sociais e políticas de todos conhecidas. Neste quadro, cabe aos cientistas uma responsabilidade acrescida na qualidade de vida dos seus concidadãos.

Nesta convicção, radica o facto de, ao longo de quatro décadas de vivência intensa entre a comunidade científica, ter mantido como actividade constante divulgar, a todos os níveis, o ramo da ciência que cultivei.

A. M. Galopim de Carvalho
Coimbra, 4 de Março de 2004