REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
ISSN 2182-147X
NOVA SÉRIE

 

 

 

 
 

A.M. GALOPIM DE CARVALHO

Há 60 anos, na Vendinha 

Entre Évora e Reguengos de Monsaraz, a Vendinha era, há mais de meio século, uma aldeia com muita gente pobre amarrada às fainas agrícolas sempre eventuais e precárias. Os dias sem trabalho somavam-se ao longo dos meses, e as contas, no livro dos fiados, na venda do Ti Zé Calado, cresciam, na esperança solidária de que a ceifa ou a apanha da azeitona saldassem ou, pelo menos, reduzissem os atrasados.

Servindo ao mesmo tempo de taberna, como, aliás, ainda é regra, este estabelecimento era frequentado pelas mulheres e raparigas, quase só para as compras necessárias ao governo da casa, das mercearias, às drogarias e aos precisos para as costuras caseiras. Pelos homens, a venda era frequentada ao fim da tarde, ao serão e ao Domingo todo o dia, para conviverem, cantando, comendo e bebendo. Sardinhas fritas, linguiças e farinheiras assadas num prato com aguardente, queijo e muito pão, comido à navalha, faziam lastro ao branco e ao tinto, segundo o gosto de cada um. Muitos deles jogavam ao corno. Este jogo de azar, de braço dado com a bebida, dizimava a magra féria de uns tantos, para grande arrelia das mulheres e constantes discórdias entre casais.

As famílias mais desafogadas, uma meia dúzia se tanto, eram, por isso, consideradas ricas. Era tudo gente de bem, simples e solidária. Nesses anos, no seio desta pequena comunidade, todos os vendinhenses, os pobres e os tais ditos ricos, se ajudavam entre si. Todos se tratavam por igual e a única diferença estava nas idades de cada um. Os mais velhos tratavam a todos por tu e recebiam, dos mais novos, o “vossemecê” que lhes era devido. Neste cenário rural havia, ainda, os seareiros, lavradores sem terra própria, mas que a alugavam a quem a tinha para nela semearem, sobretudo, trigo. Os grandes senhores da terra não viviam ali. Tinham por lá os feitores, nas suas herdades, mas residiam na cidade e um deles, até, em Lisboa. Frequentavam o Grémio da Lavoura, em Évora, e ali tratavam dos seus negócios, bem como no Café Arcada, às terças-feiras.

Não é surpresa para ninguém que a religiosidade dos alentejanos fica muito aquém da dos seus irmãos do Centro e Norte do país. Do mesmo modo, deixa muito a desejar a veneração que dispensam à figura do padre. Anos muito duros na vida dos camponeses desta vasta região do sul, mostraram-lhes que a Igreja e a generalidade dos seus ministros sempre estiveram mais do lado daqueles que os exploravam e oprimiam. A pequena propriedade rural e a notória religiosidade das gentes das Beiras, do Minho e de Trás-os-Montes sempre iam abastecendo a despensa do pároco com tudo o que a terra dá, do azeite ao vinho, da galinha ao cestinho com ovos, das batatas e das couves à fruta, da broa aos bolos e ao anho, pela Páscoa, proporcionando-lhe uma vida bem mais confortável do que a dos poucos padres resignados a permanecer nas aldeias do Alentejo. Isto numa visão que, diria, estatística, porque excepções sempre as houve. Serve esta reflexão para dar sentido a um dos episódios mais inesperados que me foi dado presenciar.

Num desses anos fui convidado para assistir às festas em honra de São Vicente do Pigeiro, o taumaturgo português cuja imagem se encontra na pequena igreja matriz local, de finais do século XVI.

Cheguei à aldeia na véspera, ao fim de um dia de muito calor, e fiquei hóspede de um dos “meus compadres”. A alvorada do grande dia foi assinalada pela chegada da banda, vinda de Montoito, contratada pelos festeiros. Tocando e marchando, com o mestre à frente, os músicos percorriam as ruas principais, detendo-se, por momentos, frente à Junta de Freguesia e à Casa do Povo. Seguiam-se, depois, os cumprimentos às famílias tidas por mais importantes, os tais ditos ricos, onde, como era costume, havia sempre um “mata-bicho” à sua espera. Em frente de cada uma destas residências, a banda parava, interpretava uma curta peça, finda a qual os seus elementos eram convidados a entrar e a regalar-se com bolos caseiros, vinho doce ou aguardente. Cumprida esta primeira fase das cerimónias e eventos programados, o povo começava a debandar a caminho da igreja matriz, a uns quilómetros de distância da aldeia. Eles a pé, nos seus fatos escuros, domingueiros, meio cobertos pelo pó do caminho, e elas sentadas em cadeirinhas, em cima de carros puxados por parelhas de mulas. Esperava-os a procissão da bênção às searas seguida da missa, a única a que assistiam por ano. De acordo com os termos apalavrados, a banda abrilhantava a procissão, logo  a seguir ao padre e ao andor do orago. Com o povo atrás, a pequena imagem, em madeira dourada, de São Vicente do Pigeiro, levada ao ombro dos homens mais destacados da freguesia, percorria um dado itinerário por entre o restolho ressequido de um campo de trigo já ceifado, e regressava ao seu altar para a celebração da santa eucaristia em sua honra.

À missa assistiam, sobretudo, mulheres e raparigas. As crianças ficaram a brincar, correndo em volta da igreja, e os homens concentravam-se no adro, confraternizando frente a uma banca de comes e bebes, ali improvisada pelos festeiros com o fim de conseguirem mais alguns fundos para a festa. Foram, assim, passando o tempo à espera que o padre subisse ao púlpito. A prédica era a única parte da missa que, mal ou bem, podiam entendiam. Ao sinal de um rapaz, mandado estar atento ao começo da dita, entraram no templo, de chapéu na mão, silenciosos e em postura de muito respeito, permanecendo à entrada, junto à porta. Porta que transpunham sempre que se enfadassem ou lhes apertasse a sede.

A Vendinha não tinha padre e, como em anos anteriores, era preciso ir buscá-lo a Montoito. Mas, naquele ano, o pároco desta aldeia vizinha não era o mesmo a quem estavam habituados, pelo que tiveram de se haver com um desconhecido. A curiosidade de o ouvir e conhecer era, pois, grande. Com música de Bach, de permeio, tocada por dois ou três dos metais da banda, a cerimónia decorreu normalmente até ao momento em que o celebrante iniciou o sermão. Aí, do alto da sua importância face ao rebanho a seus pés, em vez da prédica que o povo esperava, o pastor teve a infeliz e mal pensada ideia de, num discurso muito fundamentalista e desagradável, comentar as roupas de algumas das raparigas e a sua falta de pudor, ao vestirem-nas, mandando sair da igreja aquelas cujos decotes e cavas, segundo ele, ofendiam a Deus e à Virgem. Indignadas por um tamanho atrevimento, estas e as suas mães não se contiveram, começando a invectivá-lo, de baixo para cima, e ele a responder-lhes, na mesma moeda, de cima para baixo. Os ânimos exaltaram-se, as imprecações subiram de tom, de parte a parte, e os homens aproximaram-se em defesa das suas mulheres e filhas. Nesta peleja de palavras, uma das mães desabafava, para quem quisesse ouvir.

- Estive eu a fazer o vestido à rapariga, para ela estrear hoje, e o estupor do padre a mandá-la sair da igreja!? Padreca de merda! Nunca mais cá põe o cu!

Recuando na sua intransigência e amainados os ânimos, o celebrante lá conseguiu dar por finda a missa. A caminho da aldeia, as conversas do pessoal, ainda acaloradas, tinham por mote o insólito acontecimento. Durante a tarde, em pleno arraial, ainda se ouviam, aqui e ali, relatos da ocorrência. Nunca o padre, que ninguém mais viu, sonhou as rodas de “filho dum…” e de “filho duma…” que lhe foram dirigidas, à distância e ainda a quente, pelo pacato povo da Vendinha.

 
 

A.M. Galopim de Carvalho. Professor jubilado da Universidade de Lisboa. Geólogo e escritor. Foi diretor do Museu Nacional de História Natural de Lisboa.
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