Na altura, eu tinha 11
para 12 anos e ela era uma senhora na casa dos 25 ou 26 anos, mas mais
parecia uma menina, bonita, alegre e bondosa como uma santa, mas firme.
Foi uma luz que entrou na minha existência e na dos outros rapazes
daquela classe, uns quinze, ao todo, cada um com os seus problemas. Uns
bem comportados mas burros como uma porta, outros mal comportados como
eu. Eu era o pior de todos. Era o que se pode dizer, um “corrécio”, com
castigos vindos de todo o lado, uns atrás dos outros, em casa, na escola
e na polícia. Toda a gente me afastava ou se afastava de mim, uns porque
me desprezavam, outros porque me temiam. Os meus amigos, ou melhor
dizedndo, os rapazes com quem andava, eram outros desgraçados como eu.
Formávamos um bando de pequenos malfeitores caminhando a passos largos
para a criminalidade. As prisões estão cheias de homens que foram
rapazes que cresceram marginalizados como nós.
Eu usava o cabelo cortado
à escovinha, o que deixava ver as cicatrizes das pedradas que apanhei em
guerras de rua com outros rapazes da mesma condição de abandono. Por
isso, no grupo, eu era o “moças”. Fazíamos asneiras de toda a espécie e
roubávamos o que estivesse ao alcance da mão. De todos, só eu encontrei
o caminho certo que fez de mim o homem que sou, e isso devo-o, repito, a
esta minha professora e ao patrão que ainda hoje me dá emprego.
Cresci pobre e sem
carinho de mãe que se limitou a dar-me de comer e de dormir. Mas, nem
sempre. Foram muitas as vezes que tive de me “desenrascar” para matar a
fome, pedindo ou roubando. Sempre vesti roupas usadas que me davam e,
sempre que a minha mãe precisava da minha cama para uma das amigas
receber a visita de um cliente, eu ia dormir na escada, mal enrolado
numa manta. Nunca conheci o meu pai mas conheci muitos homens que iam lá
a casa. Alguns davam-me porrada, outros, mais simpáticos, davam-me uns
tostões, o que me permitia comprar um bolo e, algumas vezes, cigarros
“Provisórios” ou “Definitivos”, que eram os mais baratos e dos quais se
vendiam um, dois ou três, conforme o dinheiro que a gente tivesse na
mão.
Foi assim que cheguei aos
11 anos, reprovando ano após ano, fazendo gazeta, batendo nos colegas,
atirando tinteiros aos professores, dando pontapés nas contínuas,
dizendo palavrões. Foram muitas as vezes que a minha mãe foi chamada à
escola e, nesses dias, depois dos castigos que lá me davam, já sabia
que, quando chegasse a casa, levava uma sova de criar bicho e não
jantava.
Quando esta nova
professora chegou à minha escola, eu e uma porção de companheiros mal
sabíamos ler e escrever e as contas eram uma dor de cabeça. Foi por isso
que criaram ali uma classe especial e eu passei a ser um dos seus quinze
“atrasados mentais”, como muitos diziam. Mas eu não era burro. O meu
problema era odiar a escola e os professores, que me enchiam de reguadas
e de outros mimos. Esta raiva que eu sentia e o meu mau comportamento
não me deixavam aprender. Com esta professora tudo mudou. Foram três
anos que deram uma volta completa à minha vida. Passei a gostar de
aprender e aprendi muito com ela. Passei a gostar da escola e era, quase
sempre, o primeiro a chegar. E fazia questão de ir bem lavado e
penteado.
Um dia, estando eu a
brincar com o meu companheiro de carteira, vi, pelo canto do olho, a
professora ao meu lado e, de imediato, fiz aquele gesto automático de
pôr o cotovelo à frente da cara para a proteger do tabefe do costume,
mas em vez disso ela passou-me a mão pela cabeça, dizendo:
- Eu não bato em meninos. Nunca bati e não é agora que vou começar a
bater. Nunca esqueci este «eu não bato em meninos», nem o tom daquela
voz, nem a festa que me fez na cabeça. Por muitos anos que eu viva não
vou esquecer. Nunca ninguém me tratara assim. Nunca ninguém me chamara
menino ou me fizera uma festa. Quando a gente falava a gritar ela dizia
sempre:
- Não oiço
nada. Só oiço quando se fala baixinho. E temos de andar como os gatos.
Sem fazer barulho. Quando um menino quiser ir à casa de banho,
levanta-se, não precisa de pedir licença. Só precisa de não fazer
barulho. Sai devagarinho e volta como saiu.
Um belo dia, o Milton, um
alarve como eu, mais ou menos da minha idade e com uma história
igualzinha à minha, danou-se por não conseguir fazer o trabalho que lhe
tinha sido mandado e, esquecendo-se que estava na aula, largou um
palavrão dos mais ordinários, que se ouviu em toda a sala. Ainda me
lembro qual foi. Ficámos todos parados e calados, à espera da reacção da
professora, reacção que recordo como se fosse hoje. No mesmo tom de voz
de quem ensina, só disse:
- Eu conheço
esse nome e muitos outros e sei escrevê-los todos. Quem os diz tem de os
saber escrever. Anda, Milton, vai escrever no quadro isso que disseste.
Ele contava, depois, que
nunca sentira tanta vergonha. Já o tínhamos escrito muitas vezes com
carvão nas paredes da rua e feito desenhos a condizer, mas escrevê-lo
ali na aula, à frente da professora, é que era mais custoso. Não teve
outro remédio senão cumprir aquela ordem. Todos leram calados, só com os
olhos, sem mexer a boca, e ninguém se riu. Mas a verdade é que nos
serviu de lição. Nunca mais se disse uma obscenidade dentro da aula.
Na nossa classe só um
rapaz vivia numa família como devia ser. Era um franzino, muito magrinho
e com pouca saúde. Todos os dias ia uma empregada levá-lo e buscá-lo.
Ela é que lhe carregava a mala e o saquinho com o lanche. Quando, no
recreio, ele começava a comer, a malta nem queria olhar. Eram só coisas
boas. Carcaças com manteiga, fiambre, marmelada ou queijo, bananas e
outras frutas. Ele, às vezes, repartia com um ou outro e nunca ninguém
lhe fez mal. Todos o protegiam.
No último dia antes das
férias do Natal, do ano em que a conhecemos, a Dona Aurora, assim se
chamava, chegou à aula e, para nossa grande surpresa, trazia para cada
um dos alunos, um pente desses de trazer no bolso, novinho em folha, e
um frasquinho com água-de-colónia. A malta começou logo, mesmo ali, a
pentear-se a perfumar-se e foi, então que ela disse:
- Assim,
ainda gosto mais de vocês.
Foram muitos os dias que
eu e mais uns dois ou três, igualmente pobres, íamos para a escola sem
ter comido o que quer que fosse. Ela saía, mandava-me a mim, que era o
mais matulão, ficar a tomar conta aula, ia a um serviço da tropa que
havia ali ao lado e lá arranjava maneira de nos trazer de comer.
No fim do primeiro dos
meus três anos de classe especial, mercê da sua maneira de ensinar, do
carinho que nos dava, a mim e aos outros, eu já lia no livro da terceira
classe, já fazia contas e problemas. E os anos que se seguiram foram
sempre a descobrir coisas novas.
Naquele ano houve as
eleições em que o Humberto Delgado só não ganhou porque a trafulhice nas
urnas foi muita. Ganhou o Américo Tomaz e ficou tudo na mesma. Durante a
campanha os ânimos andavam exaltados e a polícia, quando era preciso,
arriava forte e feio, fosse homem ou mulher. Neste estado de coisas, eu
e mais dois ou três, dos mais grandalhões da aula, tínhamos medo que
fizessem mal a esta nossa segunda mãe. Pendurávamo-nos num primeiro
eléctrico que ela apanhava, ficávamos com ela na paragem, à espera de um
segundo, que a levava casa, no Príncipe Real. Esperávamos na rua que ela
assomasse à janela e nos fizesse adeus. Depois, correndo e à pendura,
voltávamos ao bairro. A malta sentia-se no papel de guarda-costas e ai
de quem lhe fizesse mal. Púnhamos-lhe as tripas ao sol.
Por duas vezes, uma em
cada ano, levou-nos a visitar a Favorita, onde vimos fazer chocolates e
outras guloseimas. Um dos donos da fábrica era seu conhecido e no final
da visita dava a cada um de nós um saco com muito do que lá se fazia.
Era uma festa a encher a barriga de coisas boas.
No dia da primeira visita
que fizemos, o director da Escola entrou na nossa aula, estava ela a
explicar o que íamos ver e a dizer como nos tínhamos de comportar.
- A senhora
vai sair com esta malta? – Começou por dizer aquele sacana que me encheu
porrada em criança, numa voz que deu para ouvir. - Nem sabe no que se
vai meter!
- Sei muito
bem. – Respondeu ela. - Fique descansado. Eu tomo a responsabilidade.
E lá fomos e voltámos
todos, na maior, sem sobressaltos. Ela pagou os bilhetes dos que não
tinham dinheiro para o transporte. Hoje eu sei, pelos meus netos que,
nestas saídas, as crianças têm de apresentar um papel com a autorização
dos pais e que se faz um seguro para o que der e vier. O que me parece
bem. No meu tempo não havia esse cuidado. Mas felizmente nunca tivemos
quaisquer problemas.
Comportámo-nos igualmente
bem nos dias em que visitámos a fábrica de bolachas da Nacional e quando
fomos ao Jardim Zoológico. Neste dia, a professora conseguiu que o mesmo
serviço da tropa arranjasse um farnel para cada um.
Ainda me lembro do que
vinha no saquinho que nos deram: Uma carcaça com manteiga e mortadela,
outra com marmelada, meia dúzia de bolachas, uma maçã e uma garrafinha
com um sumo. Grande professora! Foi o melhor dia em todos os anos de
escola. Vimos a bicharada toda, corremos, cantámos e enchemos a barriga
de coisas boas. Tudo na maior.
Um dia, terminada a aula,
já na rua, a professora ia a caminho da paragem do eléctrico que a
levava de volta a casa, e três ou quatro de nós, como de costume, uns
metros atrás dela. Nesse tempo ainda havia padeiros, de cesta à cabeça,
a distribuir pão, porta a porta, pelos fregueses. A dada altura, o raio
do homem começou a meter-se com ela, e não te digo nada. Corremos o gajo
à pedrada com as pedras soltas do passeio, que são sempre muitas, que
ele pôs a cesta no chão e largou a fugir. Depois fomos nós que nos
pirámos, mas só depois de gamarmos uma porção de carcaças. |