O LIVRO INVISÍVEL DE WILLIAM BURROUGHS
FLORIANO MARTINS

INDEX

Livro invisível
When you hear sweet syncopation
Pode repetir?
O que estamos fazendo aqui?
O que sente pelas mulheres?
That's the way

When you hear sweet syncopation

(T‘ ‘AIN’T NO SIN)

When you hear sweet syncopation

And the music softly moans

T' 'ain't no sin to take off your skin

And dance around in your bones

When it gets too hot for comfort

And you can't get an ice cream cone

T' 'ain't no sin to take off your skin

And dance around in your bones

Just like those bamboo babies

Down in the South Sea tropic zone

T' 'ain't no sin to take off your skin

And dance around in your bones

(NÃO É PECADO)

Ao ouvir doce síncope

E a música lamentar-se suavemente

Não é pecado arrancar sua pele

E dançar ao redor de teus ossos

Quando ficar muito quente para conforto

E você não conseguir um sorvete de casquinha

Não é pecado arrancar sua pele

E dançar ao redor de teus ossos

Assim como aqueles agitados garotos

Na área tropical dos mares do sul

Não é pecado arrancar sua pele

E dançar ao redor de teus ossos

(Apaga-se a luz, permanecendo acesa apenas a luminária sobre a mesa. Tem início a primeira parte da conferência. Quando da leitura do trecho entre parênteses, Burroughs 2 se movimenta em seu lugar como se fosse ele que estivesse falando.)

CONFERENCISTA – O que se passa em sua mente? Nada comparável a isso. As idéias distintas que podemos ter acerca do mesmo símbolo. Duas ou mais noções da origem de um mesmo objeto. Descartes havia chamado a atenção para as idéias do sol que podemos ter em nossa mente, ou seja, as idéias acidentais e as idéias conceituais, criadas a partir de algumas noções que trazemos inatas em nós.

(Descobri que quando estou preparando uma página de meu álbum de recortes, quase invariavelmente sonho à noite com alguma coisa relacionada a essa justaposição de palavra e imagem. Na verdade, o sonho não passa de uma certa justaposição de palavra e imagem. Em outras palavras, tenho me interessado precisamente pela movimentação de palavra e imagem em linhas de associação muito, muito complexas. Faço uma porção de exercícios naquilo que chamo de viagem no tempo, tomando coordenadas, tal como o que fotografei no trem, o que eu estava pensando naquele momento, o que estava lendo e o que escrevi. Tudo isso para ver o quanto eu consigo me lançar de volta, completamente, naquele determinado ponto do tempo.)

Segundo a astronomia, não existe matéria nova no universo, estando todas as formas constituídas dos mesmos elementos já conhecidos por todos nós. O que vale para classificar as estrelas talvez possa ser igualmente útil para entender a mente humana.

(Os álbuns de recortes e a viagem no tempo são exercícios para expandir a consciência, para me ensinar a pensar em blocos de associação mais do que em palavras. Recentemente passei um tempo estudando sistemas hieroglíficos, o egípcio e o maia. Todo um bloco de associações… bum!… assim! As palavras – pelo menos do jeito que as usamos – podem ser obstáculos ao que chamo de experiência incorpórea. Já é tempo de pensarmos em deixar o corpo para trás.)

Se retorno a distantes ambientações de minha memória, percebo formas idênticas à que concebo hoje, vibrando em um mesmo ritmo, o que certamente me permite especular sobre as formas que um dia conceberei como aparentemente novas.

(O que quero fazer é aprender a ver mais o que está lá fora, a olhar para fora, atingir tanto quanto possível uma completa percepção do que nos cerca. A maioria das pessoas não vê o que está acontecendo à sua volta. Esta é a minha principal mensagem para os escritores: pelo amor de Deus, mantenham seus olhos abertos. Percebam o que está acontecendo à sua volta.)

A criação artística alcança um estágio além do pessoal, porque depende de um processo de ordenação que é principalmente inconsciente e, portanto, não desejado deliberadamente pelo artista. O fato da criação artística ser um produto do cérebro, isto não significa que deva ser voluntária. O cérebro opera de uma maneira misteriosa que não está sob o controle voluntário. Às vezes devemos deixá-lo em paz para que funcione ao máximo.

(Se Nova Express é um cut-up de muitos escritores? Joyce está lá. Shakespeare, Rimbaud, alguns escritores de quem as pessoas não ouviram falar, alguém chamado Jack Stern. Há Kerouac. Não sei, quando você começa a fazer essas dobraduras (fold-in) e recortes (cut-up), você perde a conta. Genet, claro, é alguém que admiro muito. Mas o que ele está fazendo é prosa clássica francesa. Ele não é um inovador verbal. Também Kafka, Eliot; e um dos meus favoritos é Joseph Conrad. E Richard Hughes. Quem mais? Espere um minuto, vou checar os meus livros de coordenadas para ver se há alguém que esqueci.)

Haveria então uma lei da causalidade, o que fundamentaria a noção de unidade orgânica do universo. O recorte de um cérebro ou de uma estrela não se distinguiria pela substância de que é feito, mas sim pelo movimento que proporcionaria a tudo que estivesse à sua volta.

(Esse não é o modo como as coisas ocorrem. Sinto que a construção aristotélica é uma das grandes algemas da civilização ocidental. Os cut-ups são um movimento em direção à derrubada disso.)

Os arquétipos que o poeta concebe durante seus sonhos ou estados de possessão provêm de seu próprio inconsciente, e tornam-se conscientes ao perceber, escrever ou recordá-los.

(As pessoas me dizem, “Ah, é tudo muito bom, mas você o conseguiu por cut-up”. Digo que isso não tem nada a ver, como eu consegui. O que é qualquer texto senão um cut-up? Alguém tem que programar a máquina, alguém tem que fazer o cut-up? Lembre-se de que primeiro fiz uma seleção. De centenas de sentenças possíveis que poderia ter usado, escolhi uma.)

Como arrancar de cada coisa o julgamento que lhe afirma um sentido único, uma espécie de dimensão funcional? A suspensão do juízo seria uma maneira pertinente de ver uma coisa sem perceber outra, ou seja, de igualar visão e percepção. No entanto, o homem optou por sobrecarregar cada coisa de um sem número de sentidos, uma espécie de acumulação obsessiva de sentidos. O que pode ser visto como um novo desafio para a imaginação: restaurar o sentido original de cada coisa, soterrado sob demãos e demãos de idéias acidentais e conceituais.

BURROUGHS 1 – Em tudo o que tenho ouvido, há momentos em que percebo a presença de Burroughs. Mas em outros…

CONFERENCISTA – Não se trata apenas de uma mudança deliberada de estilo. Estamos tendo sempre que rastear todos os casos em que se perdeu o contato com o autor. Mas quem é de fato o autor? Com que profusão sangra sobre um texto o espírito do autor? Com que intermitência? Eu lhes digo, rapazes, já ouvi muito papo furado, mas ninguém pode se aproximar de um autor iludido pelo conhecimento de sua obra? Diante da abundância da vida, não se pode mais considerar as noções de roubo e autoria. Em certa ocasião nos disse John Cage: “muitas coisas, onde quer que se esteja, o que quer que se faça, acontecem ao mesmo tempo. Elas estão no ar. Pertencem a todos nós.” E em outra oportunidade, disse ainda: “nossa poesia agora é a consciência de que não possuímos nada”. então alguém indagaria: o que teria Burroughs com Cage, tão distantes, segundo se pensa. Mas que ligação possuía ou queria possuir Burroughs com os beatniks? Acaso seu desconstrucionismo não o identificaria mais com o poeta e compositor John Cage? Ou seria um absurdo ver em ambos uma confluência? O próprio Burroughs chegou a considerar a experimentação musical de Cage a mais radical utilização do cut-up dentro daquela linguagem. Em outro momento disse não haver afinidade estética entre sua obra e os integrantes da Beat Generation. Mesmo que The soft machine seja, no dizer de Burroughs, uma expansão de suas experiências sul-americanas, com prolongamentos surrealistas. Mesmo assim. Montado e remontado obsessivamente, este romance deixava claro que Burroughs não se interessava pelo espontaneísmo isolado que cultivava Kerouac. O autor de On the road rejeitava o uso da técnica, considerando apenas a emoção. Defendia que a única coisa que ele e sua arte tinham a oferecer era a verdadeira história daquilo que viu, e como viu. Kerouac não achava que Burroughs houvesse produzido algo de atraente, exceto por The naked lunch, embora este livro o colocasse na condição de o maior escritor satírico desde Jonathan Swift. Para ele, Burroughs abusava da fragmentação. Dizia que o cut-up não passava de um velho truque Dadá, um tipo de colagem literária. Dizia Kerouac: "Apesar disso, ele consegue bons resultados. Gosto dele quando é elegante e lógico, e por isso não gosto do cut-up, que tenta nos ensinar que a mente é fragmentada." Sim, e também considerava Junkie um clássico. Segundo ele, melhor do que Hemingway. Junkie não era bem um livro, dizia Burroughs, que via como insatisfatórios os resultados de sua escrita. A Burroughs interessava, tanto quanto a Cage, a introdução de elementos ao acaso, desde que ensaiados à exaustão. Pensavam igual no que diz respeito à necessidade de se sugerir um certo desmazelo. É o que se verifica nos escritos de Cage ou na música de mister Frank Zappa, por exemplo. Um desmazelo elegante e lógico, se me permitem. E não haveria também um desmazelo elegante e lógico nos improvisos inseridos nas partituras de Duke Ellington? Uma mescla de ritmos periódico e aperiódico, desde que observado que este pode incluir aquele e nunca o contrário. Era o que defendia Cage, ressaltando que o que importa não é desligar o relógio, mas sim eliminar a forma como usamos. Não há, portanto, cerebralismo excessivo em Cage em relação a Burroughs. Todos os espaços preenchidos com sua arte são conseqüência de um método semelhante. Anotações sobre ritmos, proporções, sonhos, simetrias, percepções. Corte, montagem, edição rigorosa dos elementos constitutivos. Arte combinatória. A virulência poética de Zappa tem a mesma origem, basta ver como combina música erudita, jazz, fragmentos do teatro do absurdo. Segundo Zappa, a arte afirma-se na citação, na referência, na maneira de abordar realidades preexistentes. Em todos eles, verifica-se uma mescla eficaz de invenção e provocação.

BURROUGHS 1 – E os beats?

CONFERENCISTA – (Não me associo com eles. Trata-se de uma simples justaposição, mais do que de uma verdadeira conjunção de estilos literários ou de objetivos gerais. Kerouac, Ginsberg e Corso são três bons amigos meus, há muitos anos, porém não fazemos a mesma literatura nem compartilhamos os mesmos pontos de vista. Eu diria que a importância literária do movimento beatnik não é talvez tão determinante como sua importância sociológica, que certamente mudou o mundo e o povoou de beatniks. Derrubou todo tipo de barreiras sociais e converteu-se em um fenômeno mundial de terrível importância.)

BURROUGHS 3 – Ouçam as batidas de meu coração.

CONFERENCISTA – Evidente que Burroughs não queria que sua obra fosse confundida com uma estética beat ou surrealista. Sentia a necessidade de individualizá-la, destacando-a entre a de seus pares. Também não participava do idealismo messiânico de Allen Ginsberg, ao qual opunha seu corrosivo niilismo. De qualquer maneira, não se mostrava interessado nessa polêmica entre escritores. Ao contrário, recriminava que Breton tivesse dedicado parte de sua vida às cartas de insulto a outros escritores, considerando perda de tempo as discussões literárias, polêmicas, manifestos etc. O mesmo em relação ao que Kerouac havia chamado de abuso da fragmentação. Burroughs estava consciente de seus riscos e acreditava manter controle absoluto da situação. Recorria ao exemplo do Finnegans Wake , de Joyce, quando queria abordar a armadilha em que pode cair a literatura experimental quando se converte em puramente experimental. Tal observação é válida sobretudo para aqueles que pensam que toda a obra de Burroughs, a partir de The naked lunch , se encontra definida unicamente pelo cut-up , ou seja, que tenha recorrido tão-somente a essa técnica. Burroughs soube mesclar a costura aleatória de imagens à narrativa linear convencional, aplicando vários métodos e técnicas, em um processo experimental consistente.

BURROUGHS 2 – Se vamos demasiado longe em uma direção, o que ocorre é que não se pode voltar e então ficamos ali em perfeito isolamento, como aquele antropólogo que desperdiçou os últimos vinte anos de sua vida na controvérsia sobre as batatas, que consistia em saber se as batatas eram originárias do Novo Mundo ou se haviam chegado da Indonésia flutuando ou vice-versa. Isto durou vinte anos, durante os quais escreveu cartas mordazes a várias publicações antropológicas especializadas atacando aqueles que se opunham a seu ponto de vista na controvérsia sobre a batata. Quanto a mim, acabei esquecendo qual era sua tese sobre a batata!

BURROUGHS 3 – Nunca refutar ou dar resposta às afirmações da crítica, por mais absurdo que seja o que se escreveu nela. Nunca dar ao crítico azo a ensinar-nos a nós, vigários, o padre-nosso. Ou, como se diz em gíria tauromáquica, não deixar a crítica ensinar ao matador como se faz uso da muleta. Em circunstância nenhuma se deverá investir contra o casaco da crítica, mesmo que ele tenha sido tecido com o fio das distorções desmoralizadoras e das falsidades. A arte de escrever críticas desmoralizadoras é um exercício de magia negra aplicada. Quem as escreve pode perfeitamente provocar à toa associações desagradáveis que comprometam o livro, ao insinuar que ele não é importante, mas sem dizer exatamente porquê. E, ao fazê-lo, evitar muito cuidadosamente a evocação no leitor de quaisquer imagens ou idéias claras e distintas que possam, essas sim, captar toda a sua atenção.

CONFERENCISTA – São truques em trânsito, recorrentes, esgueirando-se para dentro da percepção atrofiada do leitor. Não constituem um exercício crítico, mas antes um equívoco construído.

BURROUGHS 3 – A lei de Poetzel diz que o imaginário onírico exclui a percepção consciente enquanto favorece a percepção pré-consciente. A hipótese freudiana de que o caráter neutro da percepção pré-consciente a permite disfarçar material que, em condições normais, não escaparia à atenção do organismo censor dos sonhos leva a que os afetos desagradáveis sejam atraídos pela percepção pré-consciente. Há de fato uma correlação entre evocação pré-consciente e cume do desagradável. Charles Fischer afirma que os sonhos têm tendência para escolher os pormenores insignificantes do estado de vigília.

BURROUGHS 1 – Entendida a criação artística como um sonho involuntário, não haveria aí um risco de tornar interessante todo e qualquer sonho, toda e qualquer escolha de pormenores insignificantes à luz da vigília? O que seria arte? E o que não seria?

CONFERENCISTA – Mas não se trata de definição. Pode-se até dizer que a arte é a concentração das dissimilitudes conceituais do que seja insignificante à luz do sonho e da vigília. Porque a arte é irredutível a uma maneira pela qual o mundo é percebido. Ela é a soma de todas as percepções.

BURROUGHS 3 – Completamente perdida está a noção de tempo.

CONFERENCISTA – Não importa que esteja completamente perdida a noção de tempo.

BURROUGHS 3 – Completamente.

BURROUGHS 1 – Não importa que o homem tenha sido quebrado em sua maneira de ver, ler, enfim, de perceber o que está à sua volta?

CONFERENCISTA – Não no sentido de uma temeridade de encarar o que se tem pela frente. O homem é também o porteiro do Inferno que idealizou. Na verdade, um inferninho de subúrbio.

BURROUGHS 3 – É óbvio que o porteiro, irlandês de gema, fica ressentido com a insinuação de que alguém possa sequer admitir que ele tenha deixado entrar no prédio um cão sem licença. Afinal, ele é o porteiro.

BURROUGHS 1 – Não entendi. O que isto tem a ver?

CONFERENCISTA – O que?

 
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