O LIVRO INVISÍVEL DE WILLIAM BURROUGHS
FLORIANO MARTINS

INDEX

Livro invisível
When you hear sweet syncopation
Pode repetir?
O que estamos fazendo aqui?
O que sente pelas mulheres?
That's the way

(THAT’S THE WAY)

That's the way the stomach rumbles

That's the way the bee bumbles

That's the way the needle pricks

That's the way the glue sticks

That's the way the potato mashes

That's the way the pan flashes

That's the way the market crashes

That's the way the whip lashes

That's the way the teeth gnashes

That's the way the gravy stains

That's the way the moon wanes

CONFERENCISTA – É assim que a lua míngua

É assim que o molho mancha

É assim que os dentes rangem

É assim que o chicote açoita

É assim que o mercado quebra

É assim que a frigideira chia

É assim que a batata amassa

É assim que a cola gruda

É assim que a agulha pica

É assim que a abelha zumbe

É assim que a barriga ronca

(Apaga-se a luz, permanecendo acesa apenas a luminária sobre a mesa. Luz sobre as duas cadeiras, uma de cada vez, na medida em que os atores retomam a fala.)

BURROUGHS 1 – Isso é um cut-up!

BURROUGHS 2 – Por que esta imbecil fica pulando de um galho para outro da escuridão?

BURROUGHS 1 – Fala, Burroughs, o que é um cut-up?

BURROUGHS 2 – É a droga de uma técnica como outra qualquer. Pode ser útil em alguns casos e em outros, não. Depende do que você está fazendo. Agora, se você está querendo retratar uma consciência urbana confusa, então é uma técnica muito útil.

BURROUGHS 3 – É uma máquina de perturbação da ordem semântica.

BURROUGHS 1 – E de onde tiraste essa idéia de que a escritura leva cinqüenta anos de atraso em relação à pintura?

BURROUGHS 2 – O pintor pode tocar e manipular seus materiais, coisa que o escritor não pode. O escritor não sabe o que são as palavras. Opera com abstrações surgidas das palavras. As possibilidades do pintor para tocar e manipular seus materiais lhe conduziram às técnicas de montagem há sessenta anos. É de se esperar que a divulgação das técnicas cut-ups tornem viáveis experimentos verbais mais terminantes, encurtando esta desfase e dando à escritura toda uma nova dimensão. Essas técnicas podem ensinar ao escritor o que são as palavras pondo-o em comunicação tátil com seus materiais e possibilitando o acesso a uma ciência exata das palavras que demonstrará como combinações concretas de palavras produzem efeitos concretos sobre o sistema nervoso humano.

BURROUGHS 1 – Por que você escreve?

BURROUGHS 2 – Porque é o meu negócio. Escrever é o meu sustento. Eu sei fazer isto. Você pode perguntar o mesmo a um advogado ou a um policial, a resposta será a mesma. Isso é o que eles sabem fazer. O que eles fazem profissionalmente.

BURROUGHS 1 – Para onde estamos indo?

BURROUGHS 2 – No momento, sinto que não estamos indo para lugar nenhum. Quanto ao que tenho escrito, já disse: estou me dirigindo deliberadamente para toda aquela área do que chamamos sonho. Setenta por cento do que escrevo eu obtenho de meus sonhos.

BURROUGHS 3 – Os sonhos são uma coisa necessária, são uma necessidade biográfica. Os deuses são uma necessidade biológica. São parte integral do homem. Vejamos o caso dos faraós. A presença deles era divina. Desempenhavam tarefas notáveis de força e destreza. Conseguiam ler a mente e os corações dos súditos, prever o futuro. Tornaram-se deuses. Ser deus significa por vezes ter de aplicar sanções terríveis: cortar a mão de um ladrão ou os lábios a um perjuro.

BURROUGHS 1 – Escritores são deuses?

BURROUGHS 2 – Um trapaceiro é mais um diretor de cinema do que um escritor.

BURROUGHS 3 – Agora, imaginemos que um acadêmico, intelectual e mau católico, humanista, se tornava deus. Não consegue, pura e simplesmente, infligir sofrimento de qualquer espécie. O que acontece? Nada. Não há acidentes horríveis… Nem sequer uma velhinha morta no incêndio, no seu quarto alugado. Não há furacões, nem ciclones. Não há oposição, nem dor, nem decadência. Nem sequer morte.

BURROUGHS 2 – [dirigindo-se a Burroughs 1 na platéia] Ei, você que fica pulando de um ponto a outro de seu horrível desempenho. O homem perdeu de vez a véspera de sua destruição.

BURROUGHS 3 – Muitos sujeitos são vulneráveis à humilhação sexual. Nudez, estímulo com afrodisíacos e supervisão constante para embaraçá-lo e impedir o alívio da masturbação. O barato de hipnotizar um padre e dizer que ele está consumando uma união hipostática com o Cordeiro – e em seguida enfiar-lhe no cu uma ovelha velha e dissoluta.

BURROUGHS 2 – Um escritor pode obter algo de onde outra pessoa nada consegue. Por mais desagradáveis que sejam as experiências. Minha experiência como um viciado foi muito útil para o que sou como escritor. Me deu muito material. A verdade é que o vício nos põe em contato com alguns fundamentos. Nos dá uma sensação de realidade que talvez você não teria sem isso.

BURROUGHS 3 – Já lhe contei a respeito de um homem que ensinou o cu dele a falar? A barriga inteira mexia para cima e para baixo, entende?, peidando as palavras. Era algo diferente de tudo o que já ouvi. Esse papo do cu tinha uma espécie de freqüência visceral. Batia direto lá embaixo, com uma espécie de soco. Sabe quando o velho cólon dá uma cutucada e você sente um friozinho por dentro, e sabe que tudo o que tem a fazer é se afrouxar? Bem, esse papo batia exato ali embaixo, um som embolhado grosso estagnante, um som que você podia cheirar. Esse cara trabalhava em um circo, entende?, e para começar era uma novidade como ventríloquo. Realmente engraçado, no começo. Ele fazia um número chamado “O melhor buraco” que era uma doideira, juro mesmo. Eu me esqueço da maior parte, mas era muito inteligente. Algo como: “Oh, você ainda está aí embaixo, coisa velha?” / “Não! tive que ir me aliviar.” Depois de algum tempo, o cu começou a falar por conta própria. Ele entrava em cena sem nada preparado, e o cu improvisava, respondia às piadas com outras o tempo todo. Aí, o cu desenvolveu uma espécie de ganchinhos curvados e ásperos, à maneira de dentes, e começou a comer. Ele achou isso engraçadinho, e bolou um número em função da coisa, mas o cu abria caminho pelas calças e começou a falar na rua, berrando que queria igualdade de direitos. Tomava porres e tinha crises e choro do tipo ninguém me ama. Queria ser beijado como qualquer boca. No final, o negócio falava o tempo todo, dia e noite, você podia ouvi-lo por quarteirões berrando ao cu que se calasse e batendo nele com o punho, enfiando velas nele. Mas coisa nenhuma adiantava, e o cu disse para ele: “É você que vai se calar no fim. Não eu. Por que nós não precisamos mais de você por aí. Posso falar e comer e cagar.”

(Apagam-se as luzes sobre as cadeiras, acende-se a luminária sobre a mesa. Tem início a terceira parte da conferência. Uma guitarra distorcida acompanha toda essa fala inicial, acentuando-se em cada pausa.)

CONFERENCISTA – Os negócios do sexo são de grande atração em todo o mundo. Os negócios do sexo. Os negócios das drogas. Há uma ideologia insidiosa desvirtuando o desejo, valorizando as ilusões. Uma grande loja de distúrbios. Este é o alcance político que nos une a todos, a verdadeira dimensão ontológica da existência humana: o negócio das ilusões. Não há prestígio maior que o da extrema ausência de valores humanistas. Não há autoritarismo ou repressão sexual como um fim em si. Não mais. O acumulador de orgônios de Reich foi adaptado para acumular desilusões. A energia mais valiosa onde quer que pulse a besta do coração humano. Não há desregramento que convença a máquina a parar de funcionar. Há um olho cínico em sua tez metálica que pisca e revela que a desordem não representa mais nada. Os negócios estão indo bem e compõem uma intrincada rede de relações. Atingem grupos de risco e convertem em veleidade toda forma de misticismo. Não há amor sublime, mas sim desilusão. Os negócios atraem clientes como uma fonte de libertinagem. Os negócios ampliam o círculo de amizades tecidas às voltas com novas oportunidades. Avôs de alguns clientes ainda comentam sobre as leis ideais que foram exterminadas. Há um prêmio especial para aqueles que confessarem desilusão diante das declarações de parentes. Não há nisto o sentido de delação. É muito natural que uma regra nova elimine uma anterior.

[…]

Os negócios dos valores intrínsecos, pequena loja de peças de reposição. Um dissabor gasto pode ser rapidamente restaurado. Uma crise nervosa interrompida pode ser rebobinada sem maior custo. Há empórios que recebem o relato em troca de um pequeno estojo de devassidão. Há campanhas eletrônicas que dão a cada desilusão um destino literário e transmissões diárias de amores impossíveis convertidos em sublimes momentos de resignação pública. Sob um controle tão excêntrico do desejo, não há naturalmente mais vida íntima. São recomendadas ações punitivas contra aqueles que se recusem a divulgar os novos métodos de circulação das desilusões.

[…]

Os negócios de títulos e cerimônias. Uma pedra Beat, negociada no mercado paralelo, deve valer, com sorte, dois brasões cobertos de azinhavre de uma linhagem mística. Tais idéias de contato direto há muito caíram em desuso. Em raros colecionadores encontramos anotações pouco legíveis de uma tradição anarquista. Os negócios tomaram conta de tudo. A memória tornou-se um bem improvável. A desilusão não prevê o deboche. Há um compromisso velado com a seriedade de sua falta de propósito. Daí que os negócios prevejam hostilidade veemente e imediata a toda forma de rejeição frontal ao Grande Dissabor, seu inconfessável patrono. Os negócios da glorificação conduzem a um estado plenamente aceitável de controvérsia. Pequenas gotas de estímulo administradas em concentrada posologia. Os anúncios de rejeição, as notas de suicídio, núcleos de oração, trios elétricos, discretas campanhas publicitárias em defesa da influência implícita, as respeitáveis manifestações de um espontaneísmo induzido. A orgia rimada e metrificada. Não estaria aí o estágio mais elevado da criação?

[…]

Talvez Burroughs tenha pensado, em algum momento de sua vida, que todo este cenário um dia retornasse às páginas de uma fábula pouco lembrada pelos filhos dos filhos dos filhos. Não creio. O velho Bill teimava contra seu tempo, mas antes teimava contra si mesmo. Não importava se por regressão ou expansão, seu diálogo obsessivamente buscado era com o enunciado à entrada de uma zona dada como neutra. A placa dizia: há um monte de safados lá fora. A zona ainda hoje é conhecida como comunidade literária. É bastante visitada. Em seus pardieiros moram gordos zeladores. Muitos deles parceiros discretos nos negócios de caixa, senhores no submundo das desilusões. Artistas. São conhecidos assim. Azeitam as máquinas do paradoxo progressivo. São extensões invisíveis dos estimulantes sexuais e outras formas minúsculas de emoção barata. Houve um tempo em que Burroughs achava que a realidade era uma ilusão criada por insetos monstruosos que dominavam o mundo, controlando as mentes a partir de uma dimensão paralela. Reagiu achando que na eliminação do tema haveria uma chance da narração não conduzir ao umbigo sem saída do tormento que a manipulava.

BURROUGHS 2 – As visões e todas as verdades não podem mais ser consideradas como fatos eternos e objetivos, mas como projeções plásticas do emissor e de sua linguagem. Por isso, ninguém mais pode continuar se preocupando apaixonadamente com efeitos, por mais aparentemente reais que sejam, sabendo que por dentro todas as visões e verdades são, ao final das contas, vazias. Assim, o passo seguinte é o exame da causa desses efeitos, o veículo das visões, o produtor da verdade, ou seja: palavras. A própria linguagem é a matéria prima. Assim, o próximo passo é: como escrever poesia sobre poesia, empregando um método radical que elimine o próprio tema.

CONFERENCISTA – Boa chance. Talvez ainda válida. Os objetivos foram convertidos em nuvens de esgotamento. Toda forma de abismo foi declarada inconsciente. A criatividade é uma percepção diante do vazio. Um estalo diante do nada. Não uma interpretação de fatos externos. Os negócios amaciaram tudo. Em uma mesma prateleira encontramos visões, estimulantes sexuais, manuais de argumentos inverossímeis sobre a nulidade do ser, saquinhos fantásticos e kit de reflexão sobre a percepção comum. Não há como não se sentir bloqueado. No entanto, os negócios do bloqueio faturam milhões. Não são uma ameaça. São a naturalidade. Os negócios deste e de outro mundo. Os negócios da personagem que mergulha na alteridade e dela retorna pioneiro sem uma sombra de si. Suas alucinações são alheias. Seus regozijos, orgasmos, coceiras, embolias. Um merda capado de si mesmo. Este é o modo de conhecer o homem toupeira do homem. O modo de aturar as merdas decorrentes de creditar na arte toda a forma de salvação do homem. Uns bostas se aproveitam disso. É um desgaste decorrente da expulsão do homem do centro de si mesmo. Cuba não tem nada com isso.

BURROUGHS 2/BURROUGHS 3 – Não.

CONFERENCISTA – A CIA não tem nada com isso.

BURROUGHS 2/BURROUGHS 3 – Não.

CONFERENCISTA – O IRA não tem nada com isso.

BURROUGHS 2/BURROUGHS 3 – Não.

CONFERENCISTA – O serviço secreto dos negócios da desilusão é, de fato, uma instituição. Porém não se encontram seus membros filiados aos quadros moralistas de nenhuma dessas casas de tolerância. Os governos já não existem. À porta da velha noção de pluralismo encontramos o aviso de “não perturbe”. Não há expansão de consciência em praças de alimentação em shoppings. Todas as regras de identidade são forçadas. O homem impele a si mesmo ao hediondo crime de existência comum. Não há mais escândalo em seduzir rapazes ou comprar governos. Os negócios da dúvida são a única certeza posta ao alcance dos mortais, em taxas de financiamento de ocasião. Não há o que ser respeitado ou cumprido. Não há decreto. Não, não há decreto. Há um cinismo encorpado que nos leva a crer que prosternamos diante de uma realidade incontornável. Não fizemos nada, nem faremos. Passeatas, denúncias, shows de protestos. Um exorcismo patético. Nos livramos de nós mesmos, sem que interfiramos na rotina específica do hospedeiro cretino que nos prepara para os negócios latentes da perda de sensibilidade. Estamos caindo em anotações. Burroughs tinha alguma razão. Nada é tão específico quanto a perda de caráter. Estamos nos enganando. Não somos mais nada. Estudantes, carteiros, drogados, prostitutas. Não somos mais nada. Não há manifestações pacifistas. Os jornais estão tomados de violência. Os negócios da violência. Todos os sentidos estão sob patrocínio. Não há mais a fala real que Kerouac perseguia. A linguagem perdeu o som. O homem perdeu a respiração. Já não cai sequer em si. Burroughs fala em uma comprida colher feita de jornal, receptáculo para se aquecer a noção fraudada da existência. Idealizar queda é o mesmo que idealizar ascensão. Ritos do passado são apenas métodos revistos. Ninguém lançará um clamor de protesto sem patrocínio. Todo e qualquer vício obedece a formas básicas de manutenção. Não importa falar em frio ou qualquer salão de restrições. O prazo expira em um peido. Um barato termodinâmico, pum. Pronto. Lá se foi a existência. Não somos o negócio. Nem seu efeito. Mas somos levados a crer que o trazemos tão grudado como o farfalhar das tripas. Foda-se então a velha ordem do saca-rolha. Já temos o demônio sentado no sofá. Somos agora o negócio famélico e audaz. A transa do bueiro. Uma rolding de aspergentes que garantem nível zero de percepção diante do metabolismo anômalo da realidade. Um líquido que não indaga. Uma velha carta dando sinal da queda de um império, chegada com grande atraso. É como aumentar a dose de ilusão. Olhem bem. Olhem bem. A palavra é um espirro. O vírus é um espírito. O que sai fácil não entra como se em férias. Nenhuma gravação modificará a espontaneidade do que falo. Porém a espontaneidade perdeu todo o crédito.

(Burroughs 2 dirige-se ao caixote onde está a máquina de escrever e começa a teclá-la, como se estivesse redigindo a fala de Burroughs 3.)

BURROUGHS 3 – Escutem minhas últimas palavras, não importa que mundo. Escutem, conselheiros de sindicatos e governos da terra. E vocês, potências poderosas detrás de seus negócios sujos realizados em banheiros, a fim de segurar o que não lhes pertence. Para vender a terra sob os pés dos que ainda não nasceram. Escutem. O que tenho a dizer é para todos os homens não importa onde. Ninguém é excluído. Que tudo seja gratuito para todos aqueles que pagam. Gratuito para todos aqueles que seguram o trabalho duro. O que lhes fez temer tanto entrar no tempo? O que lhes fez temer ao corpo retornar? Agora escutem minhas últimas palavras, as palavras do velho Bill. Escutem, olhem ou se caguem para sempre. O que é que lhes amedronta entrando no tempo? Entrando em seus corpos? Na merda? Eu lhes direi. O verbo. O você-verbo. No você-princípio estava o verbo. Vocês amedrontaram a todos entrando na merda para sempre. Saiam para sempre. Saiam do tempo-verbo-sempre. Saiam do você-verbo-sempre. Saiam do verbo merda sempre. Saiam todos do tempo e entrem no espaço para sempre. Alguma coisa não é um temor. Alguma coisa no espaço. É tudo o velho Bill. Algum verbo não é temor. Não há verbo. É tudo todos o velho. Se vocês me anulam as palavras, as suas palavras também serão anuladas para sempre. E os verbos do velho Bill também me anulam. Através de todo o céu vejam a escritura silenciosa do velho. A escritura do espaço. A escritura do silêncio. Escutem. Escutem. Escutem.

(O som da máquina de escrever de Burroughs 2 começa a ser mesclado com o som gravado de outra máquina de escrever, que vai se tornando ensurdecedor. No decorrer da audição, o Conferencista recolhe seus papéis, apaga a luz e se retira. Seguem-no Burroughs 2 e Burroughs 3. Silêncio. Acendem-se as luzes da platéia.)

 

FIM

 
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