FERNANDO PESSOA . PRIMEIRO FAUSTO

Dois diálogos
I

- Febre! Febre! Estou trêmulo de febre
E de delírio ...

Ancião, não podes tu
Arranjar-me um remédio para a vida?
Quero vivê-la sem saber que a vivo
Como tu vives.

Atordoar-me-á isto a alma toda,
Toda, até dentro, muito dentro, velho?
- Não teentendo, mas se é esquecer
Que queres, bebe...
- Quero, quero, vamos....
Esqueçamos-nos. Tens algo de mais forte
P'ra mais do que esquecer? depressa, diz...
- Mal te compreendo, mas não tenho.

(FAUSTO bebe sofregamente)

Estranha e horrível criatura!

Não é vício
Nem crime, nem tristeza, nem pavor
Propriamente pavor, o que obscurece
Como uma escuridão de dentro d'alma
Toda a vida e expressão de sua face.
E essas palavras de que usou

- "esquecer a vida"; "mais do que esquecer";
"em mim acabará então parte de mim" -
Que significam?
Não sei, mas sinto
Que condizem, secreta e intimamente,
Com esse íntimo ser que eu não conheço;
Qualquer que seja essa desgraça, estranho,
Dorme e ou esquece ou aconteça em ti
Isso que semelhante ao esquecer
Desordenadamente me disseste
Desejar no teu íntimo...
Dorme, e que o filtro opere no silêncio
Da tua alma obra interior de paz
E ao descerrares para mim os olhos
Eu lhes veja a expressão já transmudada
Para compreensível e humana
Expressão de um humano sentimento.
Te adormeça a existência intimamente
E ao escuro desejo que tu tens.
(Vai para o levantar mais retrai-se)
Não; dorme onde caíste ...

Eu sou outro que os homens, ó ancião,
O teu filtro de paz e esquecimento
Não me faz esquecer e só a sombra
De uma possível paz me entrou na alma.
Para a paz que eu queria, isto que tenho
É como archote para a luz do sol.
Intimamente nada se passou.
Paralisaste em mim a engrenagem
Do pensamento e sentimento antigos

Não tornaria, eu sinto-o, a sentir
O que sentia antigamente. Foi-se
Não sei como o interior do meu ser
Com suas intuições, mas não se foi
A memória terrível do horror
Da minha vida antiga ...

Não fales mais. Eu vou...
(pondo-se em pé)
Eu vou, não sei aonde ... Como ...treme,
Com que debilidade e sentimento
De estarmudado o corpo todo. Velho,
Adeus; quisera ter achado em ti
podia ter achado. nada valem. Eu
Deveria ao pedir tê-lo sabido;
Mas... Não tens outro, diz-me... Tu que filtras
venenos mais subtis
Para a existência?

- Há um filtro
Diferente daquele que tomaste;
Diverso na intenção com que obra n'alma,
Mas parecido no fazer esquecer.
- Como diverso na intenção?
- Em vez
De apagar extinguir, adormecer,
Faz - com terrível excitar de vida -
Nascer n'alma um conflito de desejos
Um desejo de tudo possuir,
De tudo ser, de tudo ver, amar,
Gozar, odiar, querer e não querer,
Reunir vícios e virtudes - tudo
Como que na ânsia férvida dum trago
Da taça do existir.

- Tu vendes-mo... Ah! não, que eu nada tenho
Nem sei se tive ou poderia ter.
Tu dás-mo, velho. Não te servirá
De nada ...

Quem o fez?
Por que o fez? Onde o tens? Repete mesmo
O que de seus efeitos me disseste...

Que me decida ou não a beber dele,
Esse filtro que a ti de nada serve
Dá-mo, pois.
- Não to dou.
- O filtro, velho.
Não me enfureças, vá ; o filtro!
- Não to dou.
- O filtro!
- Não to posso dar.
- O filtro...
- Para que avanças? Eu que mal te fiz?
- O filtro; dá-me o filtro.
- Mas não posso
- Velho, repara em mim. Há na minh'alma
Uma ira calma e fria! Foge que ela
Na ação te mostre o que é.
- Não posso dar-te.
Em verdade to digo, o filtro. Eu
Fiz-te o bem que pude; porque então
Avançando assim calmo para mim
No horror de qualquer outra intenção
Te vejo o mesmo sempre. Poupa-me isso
Terrível que há em ti e que não trais
Em movimento ou vaga intimidade
Do olhar... Piedade, piedade...
Piedade, senhor!, Eu dou-te o filtro,
Eu dou-te o filtro. Piedade, eu dou...
(FAUSTO estrangula-o ... )
(após matar)
Nem sinto horror, nem medo, ou dor, ou ânsia,
Nem qualquer forma de estranheza sinto
Pelo que fiz por mais que tente querer
Sentir ...

É uma alma morta ante um corpo morto
Compreendo bem o que sentir eu devo
Mas não consigo mesmo imaginar-me
Sentindo-o ...
quanto é de horror
A morte, um ente morto, e o mistério
Disto tudo. Sim, sinto-lhe o mistério...
Mas este sentimento de mistério
Não se me liga a um sentimento
Que una esse corpo a mim, que fiz
O que de misterioso está ali.
Tremo ao sentir quanto é mistério a morte...

Procuremos o filtro ...

>>>>>>>>>II
 
Página Principal - Fernando Pessoa - Ciberarte - Letras - Alta Venda - Alquimias