OFÍCIO DAS TREVAS / Terceira cena
Maria Estela Guedes
03-12-2004
www.triplov.org

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CENA 3

Surge um rapaz negro, com muitos cestos.
É preciso ajudá-lo a metê-los no barco.

Pendurado no ombro, traz um tapete, que estende no chão,
orientando-o para Este.
De um cesto tira o Alcorão, que põe no altar.

Yoruba (sentando-se) - Bissmillahi majriha wa mursáha inna rabbi lagafurur rahim. (Passa a mão pela tampa do cesto que guarda a seu lado, afagando). Que Allah vos abençoe, ó suave companhia! (Fala para o que está no balaio) Diz boa noite, Dangbé. (Do cesto sai um Fuuu, um sopro de quem assoprasse brasas). Senhores, tende muito boa noite, sob o estonteante crescente lunar. É esta a piroga para a Expo Matéria Espiritual? Levo a minha criação para expor na galeria da África ocidental.

Lucy - Esta é a canoa, mercador... (senta-se no tapete, face a Yoruba). Não te conheço de outrora, em o país de Noé? Não me é estranha a tua cara. De onde vens com esses balaios, cujo manso assoprar um fogareiro anuncia? 

Yoruba - Eu sou o imã-tala Yoruba, do reino sagrado do Daomé. 

Lucy - Sei muito bem, conheço perfeitamente. Em tempos esse reino foi protectorado português, ainda lá temos o Forte de S. João Baptista de Ajudá... Temos ou não temos? Creio que nunca chegámos a ter nada, só a fantasia... (Fica a pensar, e lembra-se) E o meu invisível companheiro, que já devia ter chegado, e para além de todas as marcas se demora? Pois é, quem pela tua terra andou foi o Francisco Newton. Dizem até as más-línguas que o único interesse de Portugal no reino do Benim eram as quineiras. As boas-línguas contam que a nossa presença era piedosa, urgia modificar os maus costumes dos indígenas.

Yoruba - Oh, paternalismo colonialista, pelo destino! Quem é esse Francisco Newton? Algum espião? 

Lucy - Então, por Jeová!, não sabes? Era o filho do Isaac, aquele judeu do Porto, naturalista e espião também. Da família O'Kelly... Os O'Kelly fundaram em Lisboa a primeira loja maçónica, isto paredes-meias com a Igreja de S. Domingos. Aliás, o Reverendíssimo Charles O'Kelly era dominicano. Francisco O'Kelly Newton, para aí cento e cinquenta anos depois, andou por todas as colónias africanas portuguesas a apanhar os bichos de Bornéu que os maçons ingleses e italianos iam semeando e a semear o que trazia de Timor, de Java e das Celebes... Custa muito conquistar a liberdade, às vezes é preciso recorrer a golpes de teatro e o teatro pode ser mais cruel do que a vida. Liberdade política, religiosa, fim da escravatura... Com estes homens, há também a liberdade científica, uma guerra aberta com a nova doutrina materialista. A ciência tinha-se arrogado o direito de ser sagrada, mais infalível que uma carabina. O que me lembra os reis, com aquela mania de oferecerem carabinas aos exploradores... Uma chatice, os exploradores até eram republicanos, depois ficavam sem saber como dizer obrigado. Só visto o espectáculo, Gray deu cabo de Bocage com a sementeira de bichos de Bornéu nas colónias africanas portuguesas, e para requinte de malvadez os bichos eram todos x - a grande incógnita, ou o fogo sagrado, não é? Híbridos, em linguagem corrente. Diabólico, Gray era diabólico... E era ele o director do British Museum!... Devia ser por causa da tuberculose. Ah, sim, os tuberculosos diz-se que têm sextos e sétimos sentidos, mais a terceira visão, e tal... Em miúdo, passava oito meses em casa e só o resto nos colégios. Por isso teve tempo para ler e meditar, todos os Gray da família eram alquimistas, escreveram farmacopeias e livros assim. O avô era mercador de sementes em Pall Mall, sabia tudo sobre aclimatação e transporte de espécies. O iate de Gray chamava-se Miranda. Aliás Gray mudava de nome para se fazer invisível quando andava a semear em Cabo Verde e nas Canárias osgas e lagartos, sem contar com rãs e escaravelhos, e o iate também mudava de nome para ele ser ainda mais invisível. Ora se chamava Garland, ora se chamava Miranda. Foi com o nome de Miranda que Gray andou nas ilhas de Hierro e Gomera com o Reverendo Lowe a semear lagartos pretos gigantes, e mais os respectivos fósseis, o que é uma fita de se lhe tirar o chapéu! O Barão do Castelo de Paiva metido também na conspiração. Miranda por sinal era o nome com que o duque de Lafões se fazia invisível quando andava pela Europa nas suas andanças de espião e chefe da maçonaria da futura Academia Real das Ciências de Lisboa. Todos amigos mesmo entre cova e berço, numa eterna correia de transmissão. Foi assim que Gray deu cabo da sistemática e da zoogeografia, ele embirrava supremamente com os lineanos e ainda mais com as teorias de Wallace, porque Wallace não sabia nada de transportes de espécies nem de jardins de aclimatação... Sem falar de Darwin, foi com Darwin que começou o materialismo científico. A ciência tirou os homens do Jardim das Delícias, pôs lá tuataras e mais não sei quê... Nunca mais os iguanóides saíam dali para o homem ter direito a sentar-se um bocado debaixo da Árvore da Vida a gozar a Criação. Gray foi aos arames por se ter expulso o homem da Criação, para mais sendo ele um criador. Ficou pior que uma víbora, mais mortífero que a Naja haje, e eu compreendo. Por isso pegou nos iguanóides do Paraíso terreal da zoogeografia e andou a espalhá-los por aí. Oh! Quanta criação! Gray é um príncipe. Pior que Maquiavel. Fulíssimo, até espumava sangue de drago e não era por causa da tuberculose. O darwinismo é demasiado dogmático para a maçonaria, inimiga de tudo o que cheire a dogma e a infalibilidades. Pensar que Gray vai limpar o sarampo à filogenia!... Que alívio, que satisfação, que felicidade!... Passa-se isto a partir de meados do séc. XIX e ainda há-de ter consequências depois do ano 2051. Newton coleccionou bichos de Bornéu, Índia, Macau e Timor em Cabo Verde, Guiné, ilhas do Golfo, Daomé, Guiné-Bissau e Angola. Não imaginais o que o desgraçado passou no Benim, queria apanhar animais verdadeiramente africanos e retintamente carbonários para o Museu de Lisboa, não lho consentiram, eram todos sagrados... Que fosse a Cabo Verde apanhar a osga borneensis, a cotovia javanica e etc... O que eu aliás acho muito bem... 

Tenebrário - Se os animais são sagrados, então também as árvores são sagradas, a arte é sagrada, os livros são sagrados, e caímos obviamente nessa idiossincrasia universalista de dizer como o Georges Bataille - acho que sim, que a tirada é dele - que o... que o olho do..., perdão!, que também isso é sagrado. Ora é evidente que livro sagrado há só um...

Yoruba - Bissmilahir Rhamanir Rahim!, eu perfilho a mesma opinião. Há só um livro sagrado, o sagrado Alcorão. Independentemente disso, concordo com a Lucy: os animais também são. E toda a arte é sacra, desde que seja caligráfica... 

Coro - Mactub! Tudo é a mesma criação! Mactub! Tudo é a mesma criação! Mactub! Tudo é a mesma criação!

Tenebrário - Mas o que têm de sagrado uns arabescos, explica lá? Cali significa belo... É por ser bela que a caligrafia é sagrada? 

Yoruba - Pelo Sublime, não são arabescos! É a língua litúrgica, a da Revelação! É a Palavra de Deus que tu manuscreves, é a beleza da divina Criação que tu repetes, e quando repetes estás a falar com Deus directamente... 

Tenebrário - Pelo seu Nosso!

Lucy - Pelo Tarejo, a língua é uma teofania! Já assim é desde os hieroglifos... As rubricas do Livro dos Mortos do Egipto, não é verdade? De resto, hieroglifo significa sinal sagrado... As rubricas, ordens litúrgicas, eram desenhadas a vermelho e consignam a primeira Lei escrita! 

Yoruba - Oh, Lucy, francamente!... Mas o que é isso do Livro dos Mortos?! E mesmo a Bíblia?! Livros escritos por humanos! O Alcorão é uma obra divina, quem nele fala é Deus através do seu mensageiro! Foi assim desde que Jibraíl... Jibraíl, o Espírito Santo, o arcanjo Gabriel... 

Tenebrário - Credo!... 

Yoruba - Al-Hamdo!, por sinal Jibraíl é o nome deste navio... Foi assim desde que Jibraíl mostrou a Muhammad (abençoado seja o seu nome!) um pano coberto de caracteres e lhe disse: "Lê!" E Muhammad (que Deus o cubra de glória!) gemeu: "Não sei ler!" E Jibraíl insistiu: "Lê, em nome de Deus!" E Muhammad (que Deus o sacie com a água do Jardim do Éden!) leu, e essa foi a primeira revelação! Subhanallah, é a sura que diz ter sido o homem criado a partir de um coágulo de sangue! (Mostra o saquinho do colar): Isto é um guarda-de-corpo, podia ter dentro um versículo do sagrado Livro ou o nome do Profeta, mas eu escolhi o de Deus... É só uma tira de couro com o nome Allah escrito em árabe clássico, a língua da manifestação divina, mas por isso mesmo é a verdadeira e única arte sacra... Ando sempre com ela junto do coração, para me iluminar e guardar dos perigos... O coração é a chave que abre todas as portas...

Lucy - É, concordo. Concordo que o coração é a chave, mas as portas que abre dão para o Inferno... 

Tenebrário - Pelo nosso Nosso!, que exagero! À única arte sacra verdadeira pertenço eu, que sou um objecto de culto, participo uma vez por ano nas cerimónias da Paixão! À parte isso, só a Bíblia é livro sagrado. 

Coro - Mactub! Tudo é a mesma criação! Mactub! Tudo é a mesma criação! Mactub! Tudo é a mesma criação! 

Yoruba - Bissmillahir Rahmanir Rahim!, era o que mais faltava! Na última djihad... 

Lucy - Alto aí, pelo Tarejo e pela Urraca! Nem mais uma palavra! Acabou a conversa sobre o que é sagrado, ou daqui a nada temos uma guerra santa ou de novo a Inquisição...

Coro (baixinho) - Ch.... 

Lucy - Se o invisível já tivesse chegado, estas tristes cenas não ocorriam. Onde se terá ele metido, que diabo? Bem, para rematar os desaires de Francisco Newton no Daomé: um dia em que estava só a apontar a caçadeira a um abutre, um eunuco do rei teve a audácia de o repreender em público! Até o Neophron percnopterus era sagrado!... 

Coro (música africana, com tambor) - Allahu Akbar! Aleluia! Aleluia! Oh, que beleza, que beleza, a pitonisa virá! De ouro anelada, entre palhinhas, o pitoniso virá! Oh, que beleza, que beleza é a noite, para ser exposta à luz! Para ser exposta num prato, como iguaria dos deuses, ó noite que és tão gostosa, quando te petisco um bocado! 

Tenebrário - Desculpa que te diga, imã-tala, mas o teu reino sagrado do Daomé tem péssima reputação! 

Yoruba - Não, pelas barbas do Profeta, espero que não acrediteis em tudo o que ouvis contar, isso são costumes de outras eras! 

Tenebrário - Pois... Nunca ouvi assoprar brasas sem ver um pouco de fumo... Mas está bem, vamos admitir que o teu país mudou, que já não existem sacrifícios humanos... Diz, nesses balaios todos, em que se sentem rumores, o que transportas? 

Yoruba - Oh, nada de interdito, pelo Indulgente e Amabilíssimo! Só a minha criação para exibir na Expo Matéria Espiritual: osgas, lagartos, cobras, tartarugas, plantas medicinais... Enfim, o que se distribuía ao longo da rota das plantas e dos animais. Quanto ao que no ouro dos próprios anéis se afaga, acomodando-se no saber de uma longa viagem, é Dangbé, a piton sagrada.

Lucy - Muito bem, gosto disso. Gosto de animais domésticos. Também tenho cágados em casa, mas não são para fins medicinais. Comprei-os eram duas criazinhas, na intenção de estudar por elas o comportamento alimentar da tartaruga-lira de Vandelli, mas uma pessoa mal imagina a responsabilidade com que tem de arcar, quando mete em casa desconhecidos. Os meus hábitos alimentares tiveram de mudar... 

Yoruba - Comes comida de tartaruga? Por Muhammad (que a paz e as bênçãos de Allah estejam com ele!), de que te queixas?

Lucy - Da despesa... Marisco uma ou duas vezes por semana, sim, porque não posso ir ao mercado e pedir: Por favor, queria dois camarões... Não saio para lado nenhum sem ficar raladíssima, e depois dão-me cá umas saudades... Não é ridículo? A matulona é a Urraca, e Tarejo é a testuda mais pequenita. Pobrezito, andei dois meses a tratá-lo de uma conjuntivite... Quinze dias passou completamente cego, sem poder descolar as três pálpebras. Para não apanhar frio, quando ficava fora do aquário até o colírio fazer efeito, tinha de andar com ele ao colo, mesmo juntinho ao peito. Adormecia logo, o pequenino... Agora para conseguir que comesse alguma coisa, era um inferno! Fazia-me birras, fugia da comida, ameaçava-me - Fuuu!, soprava o criaturinho... Dava-lhe banhos de leite morno, a ver se ao menos o bebia... Num dia em que já não aguentava mais, fui pedir socorro ao veterinário... 

Yoruba - E o que é que ele disse, ó soberana da formosura?

Lucy - Ficou a olhar para mim com ar espectral, depois confessou, envergonhado: Lamento muito, mas de tartarugas não percebo nada... O que eu me afeiçoei ao Tarejo! Já nem ligava nada à Urraca, essa nunca teve falta de apetite nem problemas de salvação, cresceu para aí dez vezes mais que o Tarejo. A Urraca?! A Urraca já quase nem cabe no aquário. Agora o Tarejo, tão criancinho, tão indefeso... Ah, sim, já está bom, muito obrigada... (fala com Yoruba). E a Dangbé? Não a queres apresentar? 

Yoruba - Lucy, minha ladina lâmpada, devo dizer que Dangbé é deus-macho, deixou em Ajudá duas esposas mulheres...

Tenebrário - Eu não dizia, eu não dizia?! Esse sagrado reino do Daomé tem péssima reputação! É que não é só a antropofagia, é ainda o pavoroso culto da serpente!... Se vos contar que num país onde se idolatra a Python sebae, tal espécie nem existe oficialmente para a zoologia!... Nunca a vi citada em nenhum catálogo! Os cientistas até têm medo de andar nesse tal reino sagrado!

Yoruba - Pelo Senhor do Trono glorioso, ó Ilustríssimo e Reverendíssimo Tenebrário! A captura é interdita no Benim, só por isso a espécie não é para ali chamada. E isso que interessa? É citada para todos os outros países, e além disso nenhum animal é mais viajado... Sabeis qual é a terra típica da Python sebae? Sabeis onde foi capturado o animal a partir do qual Gmelin fez a descrição da espécie? 

Tenebrário - Bah, algures, a sul do Egipto... Só a Norte ela não aparece, de resto é uma espécie africana de larguíssima distribuição... 

Yoruba - A terra típica da Python sebae é a América... Outra, sua sinónima, foi descrita a partir de um espécime do Cairo...

Lucy - Oh, pelo Tarejo! Isso é gralha, nitidamente. 

Yoruba - Ó meu sândalo inebriante, que gralha?! Erro nenhum, tudo certíssimo! Foram os escravos do sagrado reino do Daomé que a aclimataram nas Antilhas para os ritos vudu, foram os meus antepassados que a levaram pela rota dos animais para o Egipto e para a América! 

Lucy - Diz: por acaso a serpente a que o Povo do Livro atribui poderes maléficos não é Dangbé, a piton sagrada? A serpente da Bíblia e do Alcorão, o Demónio...

Tenebrário (pontapeia o balaio, encolerizado) - Tolice!

Yoruba (não ouviu bem a palavra) - Iblis?!... Iblis é Lúcifer, achas que Dangbé é Iblis? Oh, não, gracioso Tenebrário!... A piton é um animal inofensivo...

Lucy - Há para aí quatro mil anos, o Sara começou a desertificar. Os povos do sul tiveram de abandonar o seu chão e dirigir-se para onde havia água, a Grande Serpente do Nilo... Nas suas margens construíram uma das mais fabulosas civilizações! Os primeiros faraós eram negros, foram os negros que levaram os deuses animais para o Egipto. Depois as religiões monoteístas acabaram com a idolatria mas conservaram lembrança dos ídolos, transformando-os em demónios. O cristianismo foi beber muita coisa à religião egípcia... A confissão, a comunhão, a ressurreição de Jesus... Jesus, vocês chamam-lhe Iça... 

Yoruba - Oh, Lucy! Ressurreição dos mortos, sim, no Dia do Julgamento! Máliqui Yaumi' ddin! Agora ressurreição de Iça, não! Jesus não ressuscitou porque não morreu na cruz! 

Tenebrário (dá outro pontapé ao balaio) - Por mim, mandava essa encomenda para a fogueira! Jesus não morreu na cruz?! Esse homem é um herege, onde é que eu deixei os fósforos? (procura inutilmente no altar).

Yoruba (levanta-se, ergue um punhal) - Ó Profeta, o infiel incita-me ao combate! Iça, um dos nossos profetas mais queridos, não morreu na cruz, Jibraíl levou-o para o céu! Quem morreu em seu lugar foi Judas! Deus castigou Judas dando-lhe o semblante e a voz de Jesus; quando foram buscar Jesus para o crucificar, ele já estava no Jardim do Éden! Quem foi crucificado foi o traidor! E vocês puseram Judas no altar, e fizeram dele um ídolo, e de Iça fizeram filho de Deus, quando Deus é único, insubstancial e absoluta transcendência, não foi gerado nem gerou, portanto não tem filhos! Os cristãos, com a Trindade e a carradinha de santos que adoram, não só são politeístas como mais idolátricos que o povo do Benim! E depois queixam-se de que a arte deixou de ser religiosa e que Deus morreu! Al-hamdo Li-lháhi! Deus está bem vivo no islamismo! Oh, sinceramente! Eu só levo Dangbé à Exposição, nada mais! Quanto ao resto, Allahu Akbar!, não há deus a não ser um Deus único e Muhammad é o seu Profeta! Bissmillahir, o Alcorão respeita a Tora, o Livro dos Salmos e o Evangelho, agora o Reverendíssimo não aceita Palavra que não seja a sua! 

Tenebrário (agitado, procura nos bolsos) - Pelo nosso Nosso, eles estão todos contra mim! Mas onde é que eu pus os fósforos? 

Lucy - Pela Urraca! Vamos por partes, meninos! Aqui, quem manda sou eu. Se vocês não se comportam como deve ser, mando-vos pela borda fora... Nem fogueira nem punhal, é aguinha mesmo!... Benditas sejam as religiões secretas, irreveladas e analfabetas!... Porque é que vocês não se entendem, hem? Finalmente, a maior diferença entre cristianismo e islamismo nem é a questão do Deus único, sim o clero. Esse clero sem corpo real, plantado entre Deus e os crentes, a falar de um amor absurdo, impraticável, clero que no Islão não existe! 

Coro - Allahu Akbar! Só há uma Criação! Aleluia! Aleluia! Só há uma Criação!

Tenebrário - Agora, sim, acertaste... A Igreja não sabe o que é o corpo, e ainda menos o que é o amor... O nosso corpo é só palavra, representação... 

Yoruba - Só teatro, só fita... Oh, minha delícia, a abelha depositou mel na tua língua... Eu posso dar-te todo o amor que tu quiseres...

Tenebrário - Fico para ver... 

Lucy - Muslims!... Encantadores de serpentes é o que vocês são! 

Yoruba - O meu coração é a minha língua e a minha língua é o meu coração...

Tenebrário - Deita-a de fora, quero ver... 

Lucy - O que me intriga, Yoruba, é nem sequer imaginar o que acontece entre as mulheres e a piton, durante os esponsais... 

Yoruba (sorrindo) - Virgens, têm de ser virgens... E filhos de homem que venham a ter são para todos os efeitos filhos de Dangbé, a piton sagrada...

Lucy - Nossa Senhora!... É que não consigo conceber, a imaginação não chega lá... E ainda hoje são virgens, tens a certeza de que os costumes não progrediram nada? Ora mostra, abre-me aí esse balaio, preciso de ver para crer...