OFÍCIO DAS TREVAS / Primeira cena
Maria Estela Guedes
03-12-2004
www.triplov.org

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CENA 1

Altar com candelabro de 15 velas.

Todas acesas.

Mais nenhuma luz.

Coro (gregoriano) - Cantamos nas trevas, vivemos nas trevas, ancorámos nas trevas. 

Lucy - Luz, dá-me um jarro de luz. Nesse céu equatorial, observas-me, ó Cruzeiro do Sul! E não, não me basta a tua, preciso de mais, mais luz. Aguardo um invisível passageiro (apaga a 1ª vela). Para o revelar, fecho-me na câmara escura.

Coro - Tens completa a lotação, mar, o rio Níger, a nós por faroleiros. Tens barco, mapas e objectivo. Que te falta? Larga a Costa dos Escravos e faz-te ao largo, ó marinheira!

Lucy - Falta-me Destino além do objectivo. Uma porta no horizonte aberta para outro reino. Sem ela, um dia direi adeus profundamente comovida por ter vivido, ignorando que nunca soube o que era a vida (apaga a 2ª vela). 

Coro (gregoriano) - Dizem que no universo não há projecto nem destino, que a vida é incidente do acaso...

Lucy - Como pode a ciência dizer isso, se nem a biologia sabe o que é a vida? Sei eu que viver assim é intolerável, sei eu que já não aguento mais ser esta coisa. Preciso de uma causa, um fim, uma porta para sair do nada...

Coro (gregoriano) - Vivemos nas trevas, ancorámos nas trevas, não conseguimos sair das trevas... Lucy!...

Lucy - Invoco a noite primária, ó Darwins, ó sábios para quem já não há mistérios, mostrai-me o pim-pam-pum do big bang! Quero ver a molécula dar à luz um ramalhete de criaturas diferentes dela (apaga a 3ª vela). Mostrai-me a vossa varinha mágica, essa que o Bufo regularis em príncipe transfigura. Beijarei o sapo, se me demonstrardes que não há nada de metafísico na evolução. Porque determinais que é irrefutável a filogenia? Deixai-me tocar as vossas chagas com estes cinco dedos que não pedem mais do que a verdade para nela acreditar, ó sábias catedrais! (apaga a 4ª vela). Tenho sede, muita sede. Mas em que biblioteca há aquedutos de águas liberais?

Coro (gregoriano) - Cantamos nas trevas. Se a filogenia é irrefutável, então não passa de magia... Ancorámos nas trevas.

Lucy - Quero ver a vossa árvore da vida, saber em que instante irrepetível em sua copa fui criada (apaga a 5ª vela). Apontai-me o lugar único onde a vida surgiu de uma única raiz do caos. Mostrai-me os vossos diagramas e metáforas, para que vos diga que tudo isso é mito sem a beleza dos mitos das origens (apaga a 6ª vela) e que tudo isso é contrafacção do sagrado.

Dizei, constelações bem-amadas, que tendes escrito em vosso bestiário, cujo imperceptível movimento a Testudo sulcata reinventa? Ensinai-me de que Stabat Mater nasce a Lua, e em que Sol da meia-noite a espécie divina em meu sentimento se fez carne (apaga a 7ª vela). De qual das cosmogonias saiu a bactéria, o dragoeiro e o gorila, de que coágulo evolutivo saí eu? (apaga a 8ª vela).

Coro (falado) - De teologia não percebemos nada. Porque não perguntas à Igreja?

Lucy (apaga a 9ª vela) - E eu não havia de perguntar logo?! Já perguntei, e a Igreja respondeu que de filogenia não percebia nada. Sabe que não acredito se me der a Criação na bandeja da escolástica. Estive duas vezes em Santa Sophia para só aprender que tal santa não existe.

Coro (gregoriano) - Cantamos nas trevas. Onde a Palavra? Vivemos nas trevas. Qual dos livros diz a Verdade? Ancorámos nas trevas.

Lucy - Invoco-me, ó noite transgaláctica, mãe de todas as noites que se seguiram, absoluta matriarca...

Oh, quem na biosfera nos cogita, observa, que Gaia com os nossos desacatos uiva de dor, se protege, com vírus que não escolhem alvo fulminando? (apaga a 10ª vela). Quem é essa Magna Mater Sulfurosa que se auto-regula matando, não uma fé, não um clã, não uma classe, mas entre todos vai ceifando, como quem governa a partir de um quarto reino da Natureza, cegamente democrático?

Coro (gregoriano) - Cantamos as trevas. Anilhámos as trevas. Amamos as trevas. 

Lucy - E quem sois vós? Trazeis-me a resposta ao como para aqui viemos e em que horto foi plantada a mística Rosa? (apaga a 11ª vela)

Coro (falado) - Somos jardineiros, filósofos naturais, investigadores em caríssimos projectos da big science. Vamos a Lisboa expor-nos à consagração mundial. Corremos os sertões de Benguela, a floresta do Amazonas, coámos ouro em Minas Gerais. Subimos ao Pico de Santa Isabel, trepámos as encostas do Monte Chela. Da cratera do Pico do Fogo, o Feijó até mandou amostras de sulfato de soda a Domingos Vandelli. Pergunta, ó incrédula: como é possível que no séc. XVIII já se conhecesse ao natural este composto fabril da pólvora? Levámos a Victoria regia à Exposição Universal de Londres, para que os elefantes pudessem saltitar de nenúfar em nenúfar; ensinámos-te o segredo da Welwitschia mirabilis, essa outra planta gigante, que vive no deserto de Moçâmedes... Tanta criação, ó Deus! Não basta?

Lucy (apaga a 12ª vela) - O meu coração é uma caixa de fósforos. Eis o que resta. Em que fogueira me assas, ó flamingo ruber roseus? Que lume queres tu que ateie por onde os meus passos correm? Eis o meu coração, sublinha nele a rubrica e apaga a palavra que não presta.

Coro - O coração é o navio. Eis o que resta. Oh, a invisível presença! Uma aorta de fogo exposta na festa. Que lucidez é a nossa? No coração, está tudo o que sobra... Tanta criação, ó Deus! Não te basta? Olha, Lucy, aproxima-se um castiçal da tua escuridão...