DAR AO PÚBLICO A IMAGEM CIENTÍFICA


À Clara, ao senhor Chainho, à Eugénia Matos,

e a todos os meus outros colegas, reformados e no activo


Foto ATFCUL - Ao centro, os preparadores Maria Eugénia Matos e António Chainho

No Museu Bocage, como certamente nos similares Museus de História Natural, qualquer funcionário pode a dada altura passar pela preparação e pela ilustração: curtir peles, conservar os animais em meio seco e líquido, montar exemplares para exposição e fornecer imagens são tarefas de rotina. Em geral estes trabalhos não são assinados, pelo que a sua autoria, quando a não devoram as chamas ou os parasitas, só tem registo numa memória pessoal carente de tradição, ainda que aconteça às vezes os filhos herdarem dos pais. É assim que me posso lembrar de Eugénia Ferreira, por cujas mãos devem ter passado todas as aves coligidas e estudadas por António Augusto Soares, e não poderia esquecer o filho, António Casanova, a quem se deve a visibilidade maior da colecção actual exposta.

Tradição em Portugal de ilustração científica no ramo da Zoologia, a bem dizer, não existe. No século XVIII, as publicações são parcas em imagens. No seguinte, o principal zoólogo que aparece é J.V. Barboza du Bocage. O mais que se pode dizer é que a sua obra é cega: raras ilustrações contém e, entre as raras, pequena é a percentagem devida a mãos portuguesas. Parece que Teresa Roma, sua mulher, escritora e pintora, lhe fez alguns desenhos. Mas como a sua assinatura não figura nas estampas publicadas, é difícil ir além do "parece". Muitos zoólogos concebem as suas próprias ilustrações, quase sempre assinadas, porém o termo "tradição" implica uma passagem de testemunho com raízes nos confins do tempo. É desse enraizamento que se não pode falar, por não ser detectável na literatura zoológica portuguesa.


Animais montados por António Casanova na galeria do Museu Bocage. A tartaruga-lira, na segunda fotografia, pertence a uma espécie de autoria portuguesa: Dermochelys coriacea Vandelli, 1761.

A relação entre a ciência e o público cria-se a partir de uma obra colectiva, seja a colecção de animais que se exibe no museu, sejam os textos publicados. Entre os que não assinam, mas contribuem para dar visibilidade à instituição e ao objecto da Zoologia, recordo ainda os preparadores e taxidermistas Clara Pinto e António Chainho, e a desenhadora Teresa Lopes. Maria Policarpo também desenhou, e Maria Fernanda Lopes, Eugénia Matos, Maria do Carmo Medeiros e tantos outros, prepararam para colecção. 

Porém já não é do meu tempo o taxidermista F. Mendes que, nas palavras de Clara Pinto, tinha fama de não ensinar o que sabia. O segredo é a alma da arte, e paradoxalmente é ele que funda a tradição, quando há sucessivas gerações de mestres e aprendizes. Por muito que F. Mendes seja um nome que ainda hoje corre no Museu,  a sua arte morreu por todos os motivos, daí que o nome careça de conteúdo historiografável. Não obstante o eventual segredo por parte deste ou de outro criador de iconografia científica, desde sempre houve receitas para conservação, preparação e montagem de exemplares. As mais antigas que conheço devem-se a Domingos Vandelli, que as passou aos naturalistas que partiram em 1783 para a exploração do Brasil (Alexandre Rodrigues Ferreira e Manuel Galvão da Silva[1]), Índia e Moçambique (Manuel Galvão da Silva), Angola (Ângelo Donati e Joaquim José da Silva) e Cabo Verde (João da Silva Feijó) [2]

Estas actividades traçam o contexto em que se apresenta ao público um dado objecto, que não é natural, sim científico, isto é, participante de um dado paradigma, que neste momento o chancela e noutro lhe retira essa qualidade de objecto científico. À luz do actual paradigma, as espécies representadas na obra de Aldrovandi, por exemplo, não são científicas, uma vez que não é possivel reconhecer nelas os caracteres discriminantes instituídos pelas convenções sistemáticas. Eis um dos motivos pelos quais certos autores preferem o desenho à fotografia: a fotografia, por muito realista que seja, nem sempre dá a ver os caracteres discriminantes. Bem instruído neles, o desenhador mostra o que na fotografia não é visível. Mas uma vez que a convenção sistemática elege estes caracteres agora e outros anos mais tarde, quer dizer que o objecto zoológico não é o produto natural, sim a imagem que faz dele certo paradigma científico. A menos, evidentemente, que a imagem do produto natural varie consoante as variações do próprio referente. E uma vez que a convenção varia, quer dizer também que o seu valor oscila no tempo entre zero e um.

Esta variabilidade põe em cena a estreita ligação, ou cumplicidade, entre as várias categorias de profissionais que ao público oferecem um objecto de saber. Como em Portugal não chegou a existir uma função ilustradora sistemática semelhante à que encontramos, entre outras revistas, nos Proceedings of the Zoological Society of London, em que se estabelece uma união perfeita entre a arte de pintar ou desenhar e a arte de classificar, susceptível de legar histórias à História da História Natural, recorro por isso aos Proceedings para dar um exemplo da ligação entre artes, ciências e técnicas. Trata-se da espécie Macacus lasiotus Gray, 1868[3], criada a partir de um exemplar vivo, sem cauda, falta esta que Gray garante ser uma deficiência. Gray considera natural a falta ou déficit, isto é, identifica acaso com natureza, de acordo com o conceito darwinista de selecção natural, e só essa carência por selecção natural lhe permitiria criar uma nova espécie. Note-se que o artigo é posterior à publicação de "A Origem das Espécies".  Escreve ele: “in its general appearance it is more nearly allied to the Rhesus (Macacus rhesus) of Asia. Indeed it is very like a very fine large specimen of that group of Monkeys that has accidentally lost its tail; but the want of the tail is evidently a natural deficiency”. Na descrição, o primeiro carácter discriminante que aparece é naturalmente a natural falta de cauda: “Tail none”.

Três anos mais tarde, Sclater vem comentar a novíssima espécie Macacus lasiotus Gray, 1868, asseverando, com provas oriundas da Anatomia, que a cauda do macaco não fora cortada rente. Ficamos assim a saber que nestes três anos a ciência discutira o caso, inclinando-se para a provável mutilação. Afiança Sclater: ...”the animal had not been mutilated by the removal of its tail. There can be no longer any doubt on this point”.  O animal não fora mutilado. Linhas adiante, no mesmo artigo, Sclater deixa ainda mais claro o problema: “but is simply, what it looks so very much like, one of the Rhesus group with its tail cut off”[4].

Neste caso singular, podemos erguer variadas hióteses para explicar o sucedido, desde a cauda cortada rente, apesar de não ter sido mutilada, até - quem sabe? - uma experiência de hibridação entre o macaco Rhesus e o macaco sem cauda africano (Iunnus ecaudatus), só não podemos pensar que Gray tenha cortado a cauda rente ao macaco para criar uma nova espécie, pois essa está definitivamente posta de lado pela ciência, como o comprova Sclater, ao afirmar que a a cauda não fora mutilada pois o macaco era só um Rhesus "with its tail cut off". 

Como dizia no início: a divulgação da imagem científica é obra colectiva, na qual todos, desde o bibliotecário ao tipógrafo, desde o cientista ao contínuo que lhe leva o correio, participamos. Podemos não assinar a nossa parte, mas não é por isso que deixamos de ser responsáveis perante o público.


Post scriptum 1

Gray é um dos naturalistas do século XIX com mais trabalho publicado. Devem ser milhares as descrições de espécies da sua autoria. Não precisava de cortar o rabo a um macaco para criar mais uma, ainda que tratando-se de uma paródia. A paródia é mais complexa do que isso.

Post scriptum 2

A Biologia tem meios para gerar um macaco sem cauda (cortada), pertencente a uma espécie com cauda, se, por exemplo, retirar a cauda ao embrião. O animal desenvolve-se e acasala; mesmo com parceiro a que também tenha sido extirpada a cauda em embrião, a prole nasce sem cauda? Este é um dos grandes desafios de Lamarck - o da hereditariedade dos caracteres adquiridos.

Macacus lasiotus Gray, 1868 (J. Wolf lith.)


[1] Ensaios e documentos inéditos relativos à “Pedra de Cobre” cuja mina Galvão da Silva fora encarregado de descobrir na Cachoeira (Bahia). Veja o dossier "Pedra de Cobre", neste site. 

[2] VANDELLI, Domingos (1779) - «Viagens filosóficas ou dissertação sobre as importantes regras que o flósofo naturalista nas suas peregrinações deve principalmente observar, por D.V. ». Cópia de Frei Vicente Salgado. Ms. azul, Academia das Ciências de Lisboa.   

[3] GRAY, John Edward (1868) - Notice of Macacus lasiotus, a new species of Ape from China in the collection of the Society. Proceedings of the Zoological Society of London (1): 60-61, estampa de Macacus lasiotus, não assinada.

[4] SCLATER, P.L. (1871) - Notes on rare or little-known animals now or lately living in the Society's Gardens. 1. Macacus lasiotus, Gray, P.Z.S., 1868. Proceedings of the Zoological Society of London, Part I: 221-222.  

 

 
PARA ILUSTRAÇÃO CIENTÍFICA, SOBRETUDO NO SÉCULO XIX, VEJA O ZOO-ILÓGICO