NATURALISMO E HISTÓRIA MILITAR


Duas perguntas se fazem face à obra do Capitão Francisco Proença Garcia, “Guiné 1963-1974: Os Movimentos Independentistas, o Islão e o Poder Português” (Lisboa, 2000). Primeira: em que pode uma obra de índole militar interessar à  Alquimia, isto é, à História e Filosofia das ciências? Segunda: em que consiste o seu vínculo ao poder militar?

Em relação à segunda, o próprio autor declarou que o seu livro se enquadra nos serviços de informação militares, usando de resto muita documentação secreta e confidencial.

Quanto à primeira pergunta, podíamos tergiversar, declarando que a obra, ao estabelecer o contexto em que se insere a independência da Guiné, e ao traçar a História de África que a ela conduziu, em especial a partir da Conferência de Berlim, fala dos exploradores. Os exploradores e os naturalistas são personagens-chave para a História e Filosofia das Ciências Naturais, eles andaram pelas colónias a reunir colecções de minerais, plantas e vegetais, que permitiram a formação de museus, e quanto lhes está ligado como desenvolvimento científico e instrução científica dos povos. Porém, só um militar poderia com tanta singeleza e claridade declarar que os exploradores e naturalistas andaram por África e por outras partes do mundo a cumprir missões militares, ao omitir o lado científico da espionagem, no caso de Francisco Newton, J.J. Monteiro, Andersson, José de Anchieta e tantos outros, ou manifesta missão militar, caso das de Stanley, Serpa Pinto, Capelo e Ivens. O autor omite informação sobre actividades científicas, tal como os autores que historiam actividades científicas omitem informação sobre operações militares e subversivas. Este espaço de omissão, a que se subtraem parcelas coladas a especialidades, é o do interdito.

O naturalista é o indivíduo que, pelo menos desde o século XVIII, dispõe de instrução suficientemente abrangente para prestar serviços de informação que permitem aos governantes saber o que governam, quem governam e como governar. À preparação científica acresce muitas vezes o facto de o naturalista ser militar de carreira. Para o desempenho da função, o naturalista tem ainda a vantagem da cobertura discreta. Que suspeitas pode levantar um eremita que apanha ervas e conchinhas? Mas foi assim que Link e Hoffmansegg (Voyage en Portugal, 1805) correram Portugal de norte a sul, e entre o registo de ervas e caracóis também registaram o tipo de fronteiras, quais os caminhos por onde se podiam atravessar, quantos quartéis existiam, quantos soldados neles se albergavam, qual o armamento, como eram as estradas, etc.. De  tal relato alguém salienta um aspecto que para o Capitão Francisco Garcia seria pícaro: o facto de Link falar do bloco de cobre conservado no Real Gabinete da Ajuda teria sido o acicate para Napoleão mandar o seu exército invadir Portugal. Provavelmente, um historiador militar, face à obra de Link, era bem capaz de omitir esse extraordinário achado, ignorar quanto a obra comporta de botânica, zoologia e mineralogia, para atentar apenas no essencial: ela enquadra-se no âmbito dos serviços de informação militar.

Ao livro do Capitão Miguel Garcia não faz falta o conhecimento das missões científicas, porque das missões científicas sabem mais os serviços militares de informação do que a História das ciências. Para responder então à primeira pergunta, confrange a ingenuidade com que a ciência se considera neutra e desinteressada e ignora que é um instrumento para o exercício do Poder. O Congo Belga formou-se sob a camuflagem de uma associação com fins exclusivamente científicos e humanitários, cuja missão prioritária era a abolição da escravatura. Se a ciência não conhece a sua história fica desarmada, o que é contrário ao próprio conceito de ciência: conhecimento. Por isso o livro do Capitão Miguel Garcia, ou Francisco, como ele prefere assinar, interessa e muito à História e Filosofia das ciências, pela razão simples de que a História Militar e a História das ciências é a mesma História, pode é ser contada de acordo com diversos interesses.

De outra parte, para a Alquimia em particular, o capítulo 3 da obra é sumamente interessante. No capítulo 3 fala-se das confrarias islâmicas, a propósito do apoio que mandingas e fulas dispensaram ao poder colonial português. Ficamos a saber, por exemplo, que o rosários adoptado por uma das confrarias compõe de 99 grãos (graus ou graais), divididos em três séries de 33, o que é tão merecedor de registo por parte dos serviços de informação como o facto de qualquer confraria funcionar como poder paralelo. Os serviços de informação militar sabem como é importante para a defesa ou ataque saber de quantas contas se compõe o rosário, porque o seu número é uma comunicação. Pena que estas contas se desfiem em intermináveis orações nos textos dos naturalistas e a ciência contemporânea não saiba ler os comunicados.