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MARIA ESTELA GUEDES
NAS ILHAS DE MADALENA FÉRIN
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O BARCO DE PAPEL
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Realmente, a obra de Madalena Férin está toda ela vinculada aos Açores, à geografia vulcânica, ao mar, à neblina, às ilhas. Mas é necessário dizer que o processo criativo da autora cresce do sagrado e não do que nas ilhas é passível de descrição científica. Este sagrado inclui elementos católicos, como as procissões, e bebe muito na Bíblia, em especial no demonismo do Apocalipse, mas é mais amplo do que a Igreja no tempo e no espaço. Por isso as ilhas açorianas são como Avalon, estão transfiguradas pela poesia, veladas pelo mistério.

Comecemos então por esse remoto livro de 1957, em que deparamos com um poema intitulado "Meia-noite": as ilhas aparecem logo no primeiro verso de forma indirecta, por alusão às noites de luar "salgadas". Cito a última estrofe:

No silêncio mentiroso de uma ilha,
Na mortalha irrequieta do luar,
Entre o vaivém da espera e o vaivém do mar
Caiu apunhalada uma ilusão vivida!

"No silêncio mentiroso duma ilha", escreve Madalena. Mentiroso porque o bramido das tempestades no mar não deixa ouvir o bramido das vozes humanas.

Um outro poema deste livro é "Descobrimento". O que é que descobrimos nele? Que a ilha é ela, Madalena. É a enunciadora que se remira nas águas e olha para as estrelas, é ela que tem no rosto lagos de lágrimas:

Que terras tão tristes
Estão a despontar?
Que lagos castanhos
Estão sempre a chorar?

E nem as gaivotas
Lá vão pousar?
Que ilha tão longe
Perdida do céu,
Tão presa do mar?
- Só posso ser eu!

Em Meia-Noite no mar, de 1984, foi incluída como prefácio uma carta de Armando Côrtes-Rodrigues sobre a poesia de Madalena Férin, publicada em 1959 no jornal Açores . Escreve ele: "Andam também em todos os teus poemas este sabor de retumbância oceânica, que é sina dos que abriram os olhos à vida na vastidão do Atlântico, que nos cerca".

A cidade vegetal (1987) é um livro em que pululam os elementos marinhos, desde a fantasia das sereias até à materialidade das dunas. São eles que permitem cantar o amor e a maturidade que se vai ganhando à custa dos sonhos desfeitos. A desilusão lança-nos numa situação vivida como um naufrágio: "a virgindade que se perde/ sobre a areia" é exemplo de um sonho de que resta só a imagem de uma ferida.

O anjo fálico (1990) pertence ao mundo apocalíptico de Eros associado ao Demónio, tema que se desenvolve no último livro da autora, "Um escorpião coroado de açucenas". É um mundo tumultuoso, convulsionado, mais terrestre do que marinho. Se é o anjo fálico o que se senta no trono, então ele é tão agressivo na sua energia transmutatória, que vemos "arredados do lugar/ os montes/ e as ilhas". Esse anjo é a razão de uma catástrofe, a de ser mulher neste lado biblicamente ocidental do mundo:

três num só

o trino igual ao uno
excluída a mulher

acima da potência
acima da idade
medonho por grandeza
sem limite nem espaço
assustador
por não compreensível
esmaga-nos do âmago sagrado

na ponta do chicote
solta a ira

A presença das ilhas na obra de Madalena reveste aspectos variados, não se limita à paisagem, à tensão própria de uma terra que a todo o momento pode tremer e cuspir fogo, nem à sugestão de mistério. Pode estimulá-la algo do domínio mais corrente e mais partilhado, como é o linguístico. É assim que " Bem-vindos ao caos " (1996) abre com uma personagem a reflectir sobre o facto de o gerúndio ("estou dizendo isto") ser um modo de dizer das ilhas e do Brasil, já desusado no português continental. Neste livro, a insularidade invade até o arranha-céus no qual se centra a ficção. O espaço assume assim a dimensão de personagem, é uma "casa-ilha".

Passamos a uma obra ficcional, O número dos vivos, de 1990. A acção da primeira parte decorre nos anos 40, e a ficção reflecte as mudanças sociais da ilha com a chegada dos americanos. Há como que um jogo de espelhos entre essa abertura ao estrangeiro e o desenvolvimento da protagonista, uma adolescente.

Uma das narrativas de " Dormir com um fauno " tem por título "Recado da ilha". O relato deriva de uma procissão nos Açores para mergulhar em facetas modernas do sagrado. A personagem central é uma vidente, mas o cenário realista do texto é a emigração dos açorianos para os Estados Unidos da América e a sua misteriosa ligação com as ilhas, que faz com que mantenham vivas as tradições, mesmo quando já nem português sabem falar.

Prelúdio para o dia perfeito foi publicado em 1999. A temática da ilha manifesta-se nos elementos marítimos habituais: as gaivotas, os naufrágios, os portulanos necessários para uma viagem certa por caminho errado, em que, cito:

aportámos às docas do infinito
avistámos de longe o não pensado
na elíptica onde o espaço não reside
nem o tempo jamais foi começado

É um belo retrato da utopia, como não-lugar e não-tempo. Daí que, escreve a autora, "não atingimos a ilha prometida". Mas a ilha é o sujeito lírico, por isso, quase no fim do livro, ressurge essa ideia de que a utopia está em nós, pois "a ilha sou eu":

Do oceano trouxe o mito as tempestades
Marés e vento ondinas e sereias
Do oceano trouxe a intensa escuridão
Da Atlântida diluída em minhas veias.

Na apresentação de Quarteto a solo, Paula Cristina Costa anota, citando versos de Madalena, que a poesia da autora é toda ela tecida por uma "mistura de profano no divino, que persiste em tocar o mistério e em desvendá-lo". Ora grande parte desse mistério e desse divino concentram-se na água do mar e seus habitantes. É com uma canção de embalar invocando as sereias, que Madalena abre o seu recital neste livro. Continua com a estranha imagem de "Um barco que navega só de noite", clandestinamente, por não levar só inocentes tangerinas no porão. O bem e o mal não se dissociam, é de ambos que se faz o homem. Mais digno de nota é no entanto esta linha de sentido que humaniza o barco ou a ilha, ou transforma o poema num "barco de papel" cuja missão é a de descobrir a ilha interior, aquela ilha que pelos vistos cada açoriano é.  

Deixei para o fim um livro que não é o mais recente, África Annes. Este romance, publicado em 2001, é uma das obras mais açorianas que eu conheço, e só ele mereceria a homenagem da gente dos Açores a Madalena Férin.

Com ele, a autora regressa mais uma vez a casa, as Ilhas Flamengas, para alimentar o espírito e a literatura com um saboroso pão de mistura, que vai desde o facto histórico ao lendário, passando por tudo o que as ilhas têm conhecido desde os primeiros donatários e seus esforços de povoamento - de um lado a ameaça à vida, com terramotos, erupções vulcânicas, pestes, naufrágios; de outro, o fabrico do pastel e a colheita da urzela, riquezas que permitiram a sobrevivência, e por conseguinte o povoamento.

Entre sepultura e berço, cada criança que nasce é uma bênção dos céus, como é benção dos céus a fertilidade da terra, desde que não sucumba em tenra idade, como a maior parte - o que constitui o pólo oposto na inquietação das gentes, o de pesar sobre elas constantemente a iminência de uma catástrofe, fruto de maldição dos céus. Uma dessa crianças sobreviventes foi África Annes. África Annes, na sua alegria, beleza e juventude, reflecte as contradições das ilhas em que nasceu. Vinda ao mundo em momento singular, na fronteira entre o quotidiano e o sobrenatural, ela estava destinada a grandes feitos. E é sempre entre registos antagónicos que se vai desenvolvendo a teia encantatória. De um lado, a autora sente-se fascinada pelos relatos dos antigos cronistas, de outro selecciona neles o que mais longe parece do verídico, como a história do homem que amamentava os filhos. O que interessa à autora não é tanto a História, no seu inventário realista de acontecimentos e objectos, sim o que nela é tão extraordinário que passa para a zona do mito.

Não se trata então de romance histórico, nem de reconstituição verosímil do passado, antes de uma aventura poética pelo que na História, se não é ficção, com ela rivaliza - o maravilhoso popular que povoa os relatos dos cronistas. A aventura é também da linguagem, ao regressar a modulações por vezes tão estranhas que já não sentimos a língua como materna, sobretudo porque nos seus conteúdos começou a agir um elemento destruidor da ligação do homem à terra, a ciência. Se na arte o vínculo perdura, tão espesso como o leite que todos os dias bebemos, o discurso científico em que hoje se descreve uma erupção vulcânica, um terramoto, já não consente o antropomorfismo da metáfora intestinal ou gástrica, em que tão nítidas chegaram até nós as primeiras descrições.

A humanização da Terra, que fornece momentos de leitura tão espantada aos que nos nossos dias folheiam fontes primárias para elaboração de algum ensaio de História e Filosofia das ciências, é também uma das fontes de atracção da autora pela História das suas ilhas. Em "África Annes", constitui os laços mais fortes com a verdade e a realidade histórica. Não sendo então um romance histórico, nem preocupado com verismos, antes inclinado para o maravilhoso, o livro é um documento poético do drama insular, em dois campos diversos: o da antropologia do imaginário e o da instabilidade geológica dessas ilhas açorianas, nascidas no que ao tempo de África Annes se chamava o Mar Ocidental.

Para terminar, é um mundo muito forte, emocionalmente, o de Madalena Férin. A sua poesia é magmática, tem as emanações de enxofre e as águas ferventes das ilhas açorianas. A sua poesia merece a pátria inspiradora, e a pátria ganha em ter Madalena Férin como sua cantora. Porém a pátria de Madalena Férin é Portugal, e a sua obra pertence ao mundo, como a de outros artistas. Por isso não só Madalena Férin, mas todos nós devemos sentir-nos felizes com a homenagem promovida a um poeta por esta casa portuguesa chamada Casa dos Açores.

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OBRAS DE MADALENA FÉRIN
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POEMAS. Arquipélago. Edição subsidiada pelo Instituto Cultural de Ponta Delgada. Prefácio de Eduíno de Jesus. Coimbra, 1957.

MEIA-NOITE NO MAR . Edição do Instituto Cultural de Ponta Delgada. 1984.

A CIDADE VEGETAL E OUTROS POEMAS. Colecção Gaivota, nº 55. Edição da Direcção Regional dos Assuntos Culturais, Secretaria Regional da Educação e Cultura. Capa de Nuno da Câmara Pereira. Angra do Heroísmo, 1987.

O ANJO FÁLICO . Edição da Direcção Regional dos Assuntos Culturais, Angra do Heroísmo. Açores. Prémio Antero de Quental. 1990

O NÚMERO DOS VIVOS. Instituto Açoriano de Cultura. Colecção Ínsula, 1990.

BEM-VINDOS AO CAOS . Colecção Garajau. Edições Salamandra, Lisboa. 1996.

DORMIR COM UM FAUNO. Colecção Garajau. Edições Salamandra, Lisboa 1998. Edição patrocinada pela Direcção Regional da Cultura dos Açores. Ficção

PÃO E ABSINTO . 1998

PRELÚDIO PARA O DIA PERFEITO . Edições Salamandra, Lisboa, 1998.

QUARTETO A SOLO. Com Teresa Zilhão, Manuela Nogueira e José Núncio. Hugin Editores, Lisboa, 2000.

ÁFRICA ANNES . Edições Salamandra. Lisboa, 2001. Publicação patrocinada pela Direcção Regional da Cultura, Açores.

UM ESCORPIÃO COROADO DE AÇUCENAS . Hugin Editores, Lisboa, 2003.