Maria Estela Guedes

TRÊS ENSAIOS SOBRE "FINISTERRA",
DE CARLOS DE OLIVEIRA

1. O fim da terra

2. A terra emoldurada

3. Duplicação de personagens

4. Os poupadores da paisagem

5. Criança e adulto: idades do mesmo

1. O fim da terra

"Finisterra" é uma obra que acentua a vocação do autor para a expressão concreta do mundo objectivo e subjectivo. Desde o tempo concreto o bastante para se pôr no prego (maneira de dizer que se deseja cheguem ao fim as horas da burguesia), até à materialização do cuspo legislativo em grãos de areia (provavelmente tão grandes e ocos como aqueles que a criança desenhou), tudo quanto entra na composição da obra se me afigura do mais concreto que há. Se já noutros textos a obsessão do autor pela rigorosa análise das substâncias ia a ponto de decompor o granito em quartzo, feldspato e mica, também em "Finisterra" se tenta alcançar a verdade material das coisas ("Quod est veritas?" - perguntaria a precoce e latinista criança) analisando estrato por estrato, de todos os ângulos e enquadramentos possíveis, o pedaço de terra cuja posse é a obsessão familiar. Com efeito, na impossibilidade de dominar realmente a terra, os habitantes da casa apoderam-se dela simbolicamente, captando-a em desenhoe, na pirogravura, na maquete, na fotografia, em vários tipos de escrita: descrever a terra implica, no fundo, devorá-la com os olhos, última tentativa de apropriação.

"Paisagem e Povoamento" é o sugestivo subtítulo do livro, e mais ainda se informa, na capa, tratar-se de um romance. Tal como acontece na "Casa na Duna", tambem neste "fim de terra" encontramos o desmoronamento de uma f'amília de proprietárioe rurais, mediatizada pela destruição da casa construída nas dunas. Sobre as areias flutuantes não há escudo protector (o halo circundando a casa) que resista: a ameaça paira, flutua a casa, e a criança flutua no dorso do animal marinho.

A onda de destruição aparece logo no início do livro -

O jardim familiar (primeira fase do abandono): montões informes de silvedo, buxo descabelado, urtigas, flores selvagens

- e o último capítulo cerra o ciclo do apocalipse, utilizando simetricamente o mesmo jarrlim como símbolo do lugar edénico caído, e como raccord:

E do outro lado, frente à lagoa e às à dunas, o jardim (agora, na fase final do abandono: as gisandras continuam a emaranhá-lo, a dissolvê-lo)

Tal como na velha fotografia pendurada na parede, a paisagem deixa de mostrar formas reconhecíveis, contornos nítidos. As cores confundem-se, dando-nos a imagem de um mundo informe, precisando de sair do caos para passar à fase de cosmifícação; sépia é a marca da díssolução, do finis terrae. Se quiesermos, a terra acaba do outro lado das águas submersas, sobra o inferno da sede.

Penso, contudo, que a obra se relaciona mais com o trabalho poético (onde encontramos antecedentes para esta agora paisagem e povoamento) do que com a obra romanesca. Não apenas por se tratar de texto em que os aspectos narrativos são bem menos importantes do que o laborioso trabalho complexificador da linguagem poética (a descrição em discurso figurado sobrepõe-se à narração, com sobreposição de sentidos: sobreimpressão de imagens; polivalência do termo poético; montagem das fragmentadas sequêcias narrativas por inserção de textos descritivos de material iconográfico já de si descritivo; frase metafórica ou simbólica - "Durmo sobre florestas de pedra e púrpura" -, mas sobretudo porque o livro se organiza em torno das linhas de força profundas e obsessivas que constituem o universo lírico, imaginário, dos textos do "Trabalho Poético" , patentes por exemplo na "Micropaisagem" .

Tomando apenas em consideração os títulos de poemas que formam a "Micropaisagem" , notamos, em "Finisterra" , a tendência para metaforizar a partir do reino mineral: "Estalactite", "Vidro"; a fascinação pelo elemento ígneo, na sua dimenslo prometaica e poder eventualmente destruidor: "Fogo" , "Debaixo do Vulcão" ; a paixão pelas combinações espaciais (os enquadramentos), geradoras das micro-rigorosas figuras geométricas: "Aresta" , "Puzzle" , "Mapa" (em "Finisterra" terá importância a figura do ângulo recto, enquanto base de construção - da casa, de molduras várias - e maneira de o sujeito se inscrever centralmente no espaço arquitectado; medir a casa, desenhá-la, estabelecer-lhe o plano arquitectónico, significa conhecê-la) ; a visão do mundo, quase sempre indirecta, filtrada através de lentes, de outros olhos, de mapas, de grafias: "Vidro", "Filtro"; a polarização de volumes, quando as lentes aumentam ou diminuem o tamanho real dos objectos: a paisagem é micro- ou macroscópica consoante o filtro utilizado: "Micropaisagem" , "Vidro" , "Mapa" .

Filtro será também o desejo de quem descreve; quando se tem sede, a água parece sempre pouca, donde a lagoa transformada pela criança em gota de chuva. A terra altera-se segundo o olhar absorvente que a examina (a paixão pelo rigor leva a que as coisas sejam mais examinadas do que vistas: "A criança (...) examina a paisagem. Olhos piscos, mas minuciosos, na violência da luz exterior"), sendo justamente a infância o mais poderoso f'iltro transfigurador. Mas o desejo de possuir a terra vem sobretudo da impossibilidade de a tocar intimamente: a casa é um aquário através do qual as personagens observam o mundo exterior (a tensão entre interior e exterior é constante, conduzindo por vezes a indirerenciação entre, por exemplo, paisagem física e paisagem imaginária, paisagem física e paisagem emocional), não lhes sendo possível estabelecer a ligação entre os dois espaços. Nessas circunstâncias de tão curiosa alienação, acabam por se dissolver no líquido que as conserva precariamente. Assim o feto anómalo dentro do frasco de formol.

Inversamente, poderá dar-se o caso de a paisagem mergulhar dentro do aquário (da fotografia, da garrafa em que as imagens fluem) onde se dissolve. Também aí o mundo flutua e desaparece, sendo sempre intangível.

De um modo ou de outro, a fronteira instala-se entre a paisagem e o povoamento familiar da casa.

Se a família burguesa de proprietários rurais desaparece com o desmoronamentp da casa na duna, e se degrada geneticamente (o feto escondido atrás do armário), até se frustrar nas tentativas de sobrevivência (os filtros da fertilidade fabricados pela mãe com a gisandra mágica não surtem quaisquer efeitos; o tio não chega a descobrir fórmula alquímica da porcelana, gorando-se a quimérica tentativa de reacender a antiga prosperidade familiar), a situação dos camponeses mostra-se mais difícil de analisar.

Para já, todas as paisagens (sempre a mesma, mas descrita por várias personagens e de maneiros diversas) são desertas, à excepção da infantil. Só a criança povoa a terra com homens e animais, pelo que a questão dos camponeses se nos apresenta segundo o ponto de vista da criança (falsa, pois memória do adulto). De particular, no desenho infantil, as cabeças ardentes de pessoas e animais. A criança lança fogo aos povoadores, contribuindo dessa maneira simbólica para levar o inferno às aldeias. Não co)ntente com isso, obriga-os à errância em busca de áagua, concedendo-lhes uma gota de chuva para saciar tão enorme sede.

Os peregrinos seguirão viagem, mas a criança instaura entre eles um espaço de separação, gerador da destruição dos vínculos familiares, por isso desintegrador da família: os homens partem para o Norte, as mulheres e as crianças para o Sul. Se chegam a algum lado sãos e sealvos, ou se ficarão pelo caminho carbonizados, não se sabe. É possível que s8e carbonizem, transformando-se naquelas "florestas de pedra e púrpura" sobre as quais dorme a casa na duna.

Esta leitura do apocalipse geral parece demasiado pessimista. Vendo as coisas de outra maneira, a criança atribui aos camponeses o fogo purificador e prometaico, instigando-os a peregrinar de Norte a Sul com a missão repovoadora. O fogo que transportam é outro saber, susceptível de desencadear um ab initio terrae sobre as cinzas do finis terrae. Caminhar sobre a terra signif'ica dominá-la realmente, coisa que não f'izeram os habitantes da casa, circunscritos aos limitee do jardim. Se no caso da familia burguesa a vida se reduzia à domesticidade dentro das paredes do seu aquário, os peregrinos organizam-se diferentemente (na ausância de laços parentais falsamente protectores), unindo-so solidariamente com a terra, a mãe procriadora que não precisa de recorrer aos ritos de fertilidade para fornecer alimentos repovoadores.

Temos, então. um romance preocupado com o devir da sociedade, pondo em confronto duas classes com características bem diferentes. Parece concreto o problema de que parte o autor: a luta pela sobrevivência e pela posse da terra. Para lá de tal questão, presa a um contexto histórico bastante preciso, haverá muitos outros centros de interesse na obra, alguns dos quais vamos comentar.

Seria pouco dizer que "Finisterra" é a obra narrativa mais importante publicada no ano de 78. Será provavelmente a melhor do autor, e recordamos que Carlos de Oliveira nos tem proporcionado sempre textos de grande qualidade. Para contentamento ou descontentamento de quem esperava as obras-primas da revolução, supondo que a data 25 de Abril de 74 equivalia a uma espécie de primeiro dia da Criação, haverá alguns pontos a considerar: antes dessa data existia boa literatura em Portugal, continua a existir depois dela. Tal data nada significa do ponto de vista da criação literária, pois a arte não se regula pelos relógios politicos. Por outro lado, não vejo como se possa lamentar que a revolução não tenha tido uma arte à altura; mesmo sem considerar a imensa produção artística mural, sobra ainda a quantidade enorme de papel impresso que desde o início tem acompanhado a evolução revoluciánaria. Eu lamentaria, sim, que as obras políticas não tenham chegado aos calcanhares das duas ou três obras literárias mais directamente empenhadas em intervir socialmente. Então, concluo que existe uma literatura medíocre à altura da revoluçao feita, e algumas obras brilhantes à altura da revolução desejada, adiada, talvez impossível. No segundo caso incluo "Finisterra".

Para al ém disso, há também uma medíocre literatura divorciada das razões políticas, assim como dois ou três livros brilhantes que ignoraram soberanamente tais revoluções.

"Finisterra", manifestando directas implicações históricas e sociais, e empenhando-se na intervenção segundo o espírito da esquerda, não me parece estar muito longe das intenções neo-realistas. Todavia, no que diz respeito às caracteristicas estritamente literárias, a obra nada tem a ver com a estética neo-realista, perdendo-a até de vista. Certamente, não é a problemática da propriedade privada, nem a referencia metafórica à emigração, nem o confronto de classes sociais que fazem de "Finisterra" uma obra de qualidade. Mas se o autor achou por bem tratar assuntos que são concretos e importantos na vida actual dos portugueses, será pertinente evidenciá-los. Estamos longe, porém, de considerar "Finisterra" a obra-prima da revolução (pela razão de que não temos conhecimento de nenhuma revolução em Portugal); para nós, trata-se de uma obra brilhante, e é tudo.

Resumindo: os aprendizes de feiticeiro vão prosseguindo a sua obra transmutatória e alcançam de facto a pedra filosofal; não parece que os alquimistas da política estejam perto sequer de descobrir a fórmula da porcelana, operação salvadora desta casa sem escudo protector, construída sobre as dunas atlânticas. Se não sabemos bem como sair das ruinas, impedir o despovoamento, e dar aos camponeses a água bastante que os dispense de partir em peregrinação pelos quatro cantos do mundo, é porque o livro não dá a tal respeito quaisquer esclarecimentos. Tolo seria esperar do poeta as soluções que os profissionais da política não conseguem encontrar.

 
Publicado originalmente no Diário Popular (Lisboa), a 16, 23 e 30 de Outubro de 1980