CIÊNCIA E SUBVERSÃO: J.V. BARBOZA DU BOCAGE



Cartas de Rosa de Carvalho, em linha no TriploV

Então o meu caro Nimda regressa ao ponto de partida? Já não entende nada outra vez? Pode crer que eu também não. Sabe, é como aqueles eremitas que saem de noite com uma candeia a coligir o orvalho de Maio : quanto mais a luz avança, mais as trevas se adensam sobre o caminho já percorrido. O que sabemos agora exige reformulação do passado. Factos são factos, tão impositivos como pedras numa pedreira. Nesse capítulo já não há nada de novo, tanto faz serem mil como um milhão. Tenham mais ou menos quartzo, feldspato e mica, são sempre as mesmas pedras brutas. Podemos acumular ainda mais, abrir novas pedreiras, e até minas de cobre na Cachoeira da Bahia - sim, mas para quê? Não reside nos números a faculdade de explicar, essa bruxuleia em nós. É preciso afeiçoar a pedra que somos para nos erguermos como... como... como... enfim, como site do destino de quem quer peregrinar.

Ora, porquê?! - pergunta o meu caro Nimda. Porque é que a antiga casa não se aguenta na caneta e necessário se torna redigir outra? Porque antes, quando escrevemos a história da Chioglossa, por exemplo, assentámos os alicerces na crença de que existia ao menos um naturalista inocente, vítima da malícia dos colegas. Um homem poderoso, cujos actos políticos podiam determinar-se contra a sua vontade, mediante chantagem - esse anjo manobrado como uma marioneta. Acreditar nisto ou fazer de conta que sim era mais tranquilizador do que os contos de fadas, nos quais podemos traçar uma linha recta entre maus e bons, na certeza de que esta separação arreda as trevas para um lado e a luz para o outro com maior eficácia do que um cortinado. Sem esse contraste, não há candeia que nos valha, é a porta fechada na cara da nossa questa de conhecimento, esta indiferenciação primordial de que não emerge nenhuma explicação abrangente dos factos.

O meu caro Nimda quer saber se esse homem nunca falou às aves? Mas sim, crocita mais do que um bando de corvos. Simplesmente, o que ouvi de fatídico nos seus textos atribuí-o à subversão dos tipógrafos e dos carbonários colegas. Porque esse naturalista via mal e cegou, continuando a publicar depois de cego, era tão cómodo pensar : coitado, sabotaram-lhe as provas tipográficas, escreveram nelas Tarantula (aranhas) quando ele falava de osgas (Tarentola), e por aí adiante. Deram-no como autor de uma Notícia acerca das árvores de Portugal, quando se trata de ratos e não de árvores - Noticia àcerca dos Arvicolas de Portugal - e por aí adiante. Garantiram-lhe que o Macroscincus coctei só existia no Ilhéu Branco, quando depois apareceu também no Raso, e em Santa Luzia, e por aí adiante até ao Egipto e Mascarenhas, coitado! Como podia ele ler os artigos depois de publicados, para esclarecer tudo com as competentes erratas, se um deslocamento da retina o cegara? E ninguém o avisou, coitado!

Se há motivos para hibridar ratos com árvores? Não confunda híbridos de linguagem com os biológicos, meu caro Nimda! Olhe, no artigo em que isto acontece, e é aquele em que descreve uma nova espécie de rato, dedicada ao seu colector, Rosa de Carvalho, Bocage (1) comete subversões que Rosa parodia nas cartas - escreve só metade do primeiro nome da espécie e com minúscula: "arv. incertus", "arv. Rozianus", aportuguesa o nome do género e grafa a seguir o nome específico latino com maiúscula, para além de que há um "z" onde devia haver um "s", em rozianus. Mas isto são as banalidades dos caracteres alterados que já conhecemos, com a variante de que falta metade deles ao nome do género. A outra metade deve pertencer a fêmeas de um género que eles não dizem qual é. Porque partida ao meio, a palavra refere assim um duplo, uma cara metade ausente. Há porém no texto uma informação mais transcendente do que os duplos e hibridação de ratos com pinheiros, verbi gratia, veja se descobre o que é nesse recorte do artigo.

Bocage (1864) - Notícia acerca dos arbustos (sic) de Portugal

Ó meu caro Nimda, não há nada de transcendente nas quatro mamas! Ainda que fossem supranumerárias, então não sabe que a Ana Bolena as tinha debaixo dos braços? Não, leia outra vez, se faz favor, e abra-me bem esses olhos...

Hehehe:-) Como quer que lhe responda? Se fizer de conta que sou criacionista, digo:

- Quem criou as espécies, todas, e não apenas os arv. certus e incertus de Sélys-Longchamps, foi Deus.

Se fizer de conta que sou evolucionista, corrijo Bocage de outra maneira:

- Quem criou as espécies, todas (tirando algum pombo, e só na Praça de S. Marcos, algum esturjão, e só no Guadalquivir...), e não apenas os Arvicolidae, foi o acaso!

Como é a minha interpretação que o meu caro Vírus Nimda solicita e não a das competentes autoridades actuais, concordarei com quem sabia de experiência feita:

- Quem criou aquelas raças de ratos foi o naturalista Sélys-Longchamps.

Repare que há muitos termos equívocos no naturalismo, como esse criar, apesar de sublinhado, para marcar bem a atenção dada ao criador, termos tão ambiguos como variedade, subespécie, superespécie, etc.. Bocage usa porém um termo que nunca foi equívoco : raça. Raças são o produto da selecção artificial, isto é, da selecção operada pelo homem, quando quer criar aqueles cães tão artificiais que parecem já ter nascido com laçarotes, aqueles peixes garridos que temos nos aquários e mais uma infinidade de criaturas que não acabam nos cavalos de corrida nem nas tulipas negras.

E com tudo isto, meu caro Nimda, fico destroçada, porque é claro que Bocage sabia, e fez, e descreveu o rato rozianus criado pelo Rosa de Carvalho que hoje não é espécie válida (os caracteres desapareceram da Quinta do Espinheiro..........................) - mas se ele não foi enganado, como descobrir a vítima da subversão? Como entender as cartas que Rosa lhe escreve, mais macarrónicas do que a própria Macar(r)onésia?

Ah, meu caro Nimda! Disse eu que os caracteres do Arboricola rosyianus desapareceram da Quinta do Espinheiro! Supondo que Bocage esperava que Rosa os colasse ao corpo dos ratos de modo a fixarem-se em nova espécie para a eternidade?! Mas não, se ele esperasse uma "boa espécie" e tivesse sido enganado com uma "má espécie", não escreveria este artigo na língua das aves...................... Ou sim, para armar aos cágados face à plateia científica internacional? Nós, portugueses, somos tão bons como os franceses, os alemães, os espanhóis, os italianos e os ingleses! Eu sou tão bom como John Edward Gray!

O meu caro Nimda sabia que Bocage tinha em casa um retrato oferecido pelo seu ídolo? Autografado?! Isso não sei, mas não era preciso, eles corresponderam-se. Sim, conheço as cartas, são quase todas sobre a esponja de profundidade de Setúbal, a Hyalonema lusitanica, mas o meu inglês é fraco e a caligrafia de Gray quase ilegível... Pena, sim :-(

Ay, eu, coytada, que não vi antes ou não quis ler os textos da sua estreia internacional, em que não há a desculpa da cegueira, coitada de mim que sabia das duas descrições simultâneas da Chioglossa e por aí adiante... Coitada de mim, que sabia das duplas descrições simultâneas do Macroscincus (Cuvier e Duméril & Bibron; Bocage e Troschel) e por aí adiante... Coitada de mim, que só li agora a descrição do arbust. roziânus!...........

Fazia-nos falta um mártir da ciência! Coitados de nós, que agora não sabemos como lidar com um espaço todo negro. Um homem estava a ser enganado e esta circunstância é inteligível, dá tanta legibilidade ao mundo como a Bíblia. Se todos sabem, se todos subvertem, deixa de haver subvertores e subvertidos. Então como se entende a subversão? Qual o seu objectivo?

O meu caro Vírus Nimda já se fartou deste muro das lamentações e quer saber qual é a categoria de subversão que temos para hoje? Categoria amorosa, que outra podia ser? Então essa carta de Júlio Henriques dentro da carta de Rosa de Carvalho para Bocage não se vê logo que estabelece um triângulo amoroso? Não há nada de mais subversivo do que o triângulo, até subverteria a nossa teoria do duplo, não fosse dar-se o caso de ser um duplo triângulo... Oh, transcreva então primeiro, s.f.f., não se esqueça de que há três duplas de palavras e que o par se posiciona de tal modo que um termo fica por cima do outro. Tanto faz, se os virar ao contrário, ficam à mesma um por baixo do outro. Vá, faça a transcriçãozinha...

águias existem só duas: a trceira morreo
Das águias existem só duas: a terceira morreo
em virtude d'um beijo que lhe deu a
maior.

Uma destas será da deza d'um piru

Uma destas será da grandeza d'um peru


Desculpe, meu caro Nimda, o que precisamos de entender não é a cabala do duplo triângulo, nem qual o significado dos beijos das águias, sim qual o papel do destinatário nesta tramóia. A carta é particular, de dois para um, mas podia ser só do Rosa para Bocage. Por que carga de água até na correspondência privada escrevem eles na língua das aves? Para Bocage não perceber? Mas Bocage também usa a língua das aves, conhece-a bem. Para só ele perceber a mensagem? Neste caso, vejamos:

a. A correspondência particular pode ir parar a mãos estranhas, e é por causa dos estranhos que se escreve em código.

b. Bocage não está a ser enganado.

c. Ou Júlio Henriques usa o código para convencer Bocage de que pertencem à mesma confraria? - Donde, estava a ser enganado apesar de saber?

Sim, cartas híbridas conheço várias, caro Nimda : há duas ou três na história do Francisco Newton, a fazerem chantagem. Está uma, de Paulino de Oliveira para Bocage, com uma falsa localidade no meio redigida por Moller, no dossier "A mamba de S. Tomé". Há muitos tipos de duplos, por exemplo o Dr. Frank de Júlio Henriques a desempenhar o papel de Francisco Newton ou vice-versa, na história deste. A duplicidade é manifesto de hibridação, acasalamento de diferentes, como quando Rosa diz que viu um sapo Pelobates cultripes agarrado à parte de trás de uma rã ordinária, como quando conta que a cabra híbrida montava ovelhas, etc.. Tudo isto são metáforas, porque os animais não são idiotas, reconhecem os parceiros da sua espécie e não andam com qualquer um. Os elefantes só tentam acasalar com as formigas nas anedotas, e anedotas somos nós, humanos, que as contamos. Quem tenta tudo é o homem e o homem faz inseminação artificial, não fica à espera que um milhafre se enamore de uma águia e ainda menos de um piru! Mas não é isto o que me incomoda, veja se entende!

De nós?! Acha então plausível a tese de que o inimigo da ciência é o não-cientista, e que é para defender as experiências dos olhares estranhos que os naturalistas falam em código? Ó meu caro Nimda, basta a tese ser minha para me agradar, mas deixa entrar água por todos os lados, a começar pelo porão : não é preciso ser naturalista nem pertencer a sociedades secretas para falar a língua das gralhas! Qualquer poeta sabe crocitar.

Em que consistem as experiências e práticas já todos o sabemos - miscigenação à escala planetária. Porém qual o seu objectivo? Nem tudo o que se mistura e introduz pertence ao domínio da piscicultura, agricultura ou pecuária, e nestes casos não há necessidade de segredo...

Concordo, não há segredo nenhum, até na correspondência privada a subversão está à vista!... É como lhe dizia, meu caro Nimda : temos muito mais informação agora do que antes, mas sabemos muito menos. Não se preocupe, como diria o bicheiro-mor, mais tarde ou mais cedo o sapo de ventre cor de fogo, Bombinator igneus, há-de aparecer em Coimbra. Mais tarde ou mais cedo, também nós havemos de lá chegar.


(1) BOCAGE, J.V.B. (1864) - Noticia ácerca dos Arvicolas de Portugal. Memoria apresentada á Academia Real das Sciencias de Lisboa. 12 p..