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Estela Guedes:

Diário de Lilith

 

 

 

SEGUNDO DIA - Cenários do Douro

Leva-me pela mão, Dante Alighieri.
Leva-me a ver o teu Inferno, o teu Céu.
No teu Inferno está a maldade, no meu, o desejo do Bem.
Sai de mim, Lilith! Sai de mim, só me atrapalhas!
Para sobreviver dentro do grupo não te posso ter em mim,
a reclamar justiça, a querer a generosidade, a fraternidade, a igualdade,
a invocar a liberdade! Não posso ter em mim ânsia de solidariedade,
de amor aos outros, não posso querer mais alto,
a educação, a instrução, a cultura, os bens intelectuais para todos.
Não posso ter em mim lampejos de arte, essa forma de conhecer
que me faz encontrar-te num esquife de água, Dante.
A tua comédia divina inverteu-se neste mundo,
recebe prémios o mau e o homem probo é condenado.
Sai de mim, Lilith! Sai de mim!
No meu Inferno está o Bem, no meu Paraíso vivem aqueles que querem
que respeite e ame: os ladrões, os perjuros, os traidores,
os que magoam os animais, os que violam crianças,
os que destroem património protegido,
e querem que eu subscreva guerras, e bombardeamentos sobre cidades
e querem que eu diga sim à cobiça, à mais torpe ignorância,
e querem que eu me dê bem com o roubo,
a ofensa, a crueldade, querem que faça como os outros,
que põem a mesa aos trabalhadores e não lhes dão a comer o mesmo
que os patrões comem, e nem direito lhes concedem a guardanapo,
mas a mim, Dante, é que condenam, sobre mim é que recai a cólera
dos invejosos, dos avarentos, dos que nunca dão nada de graça,
nem afagam, nem beijam,
só sabem olhar para o que trago calçado, e para o que digo e para o que
como e trago vestido - e até reparam no que escrevo.
Dante, dá-me o teu Inferno, é melhor que o meu Paraíso.
Sai de mim, Lilith! Vai à tua vida, exila-te na pátria,
esconde-te para que ninguém leia,
quem te lê sofre choques eléctricos
e nos pesadelos é chupado por lampreias.
Eu, que sou esquife de água, este rio de dor,
eu é que estou errada, eu é que transporto em mim as penas infernais,
a mim é que querem coser os olhos com arames
para que não veja,
a mim é que querem entupir os ouvidos com cera,
para que não oiça,
a mim é que querem selar a boca com uma lápide de granito
para que não fale. Sou barco no Douro, Lilith.
Vai-te, para que no porão se faça o vazio
e não sofra.
Aproveita, vai-te embora, não me canses mais com
as tuas corridas para cima, não me canses mais
com os teus acessos de cólera.
Sai-me pela boca, Lilith, vai-te embora para
o céu ou para pátria mais remota ainda.
Sai-me pelo ânus, se preferes os caminhos tortuosos,
mas vai-te embora.
Ou deixa-te vogar como Ofélia entre flores à tona de água.
Não vejas, não cantes, não oiças os lamentos das almas condenadas,
sê pedra, sê tabula rasa, sê como eles, repara: aspiram
apenas a viver bem, a bem vestir e a bem parecer.
Não queiras ser, Lilith! Livra-te da alma, livra-te da identidade e
do sujeito, livra-te do mau génio, apaga a lâmpada, Lilith!
Neste mundo em que o máximo valor é o Zero,
apaga-te, vai para a Argentina discutir niilismo
com o Oscar Portela, Tritão que leu todo o Nietzsche,
e Derrida, e Hegel, e Kant, e Heidegger,
e todos os filósofos desde os pré-socráticos,
vai ter com o teu amigo, embarca no esquife do abismo
 e descanta com ele as maravilhas fatais
da nossa Idade estéril.

 
 
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