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Estela Guedes:

Diário de Lilith

 

 

 

PRIMEIRO DIA - Ribeira de Agudim

Atravessámos agora a Ribeira de Agudim.
As ribeiras de Agudim
que na vida atravessamos sem saber
e sem nada conhecermos da sua história!
E como magoam, às vezes! Como as dores são agudas!
Lilith, as lições que perdeste e que te deram...
Menina, tu tiveste tão bons mestres
e ficaste sempre essa incivilizada
que nem sabe comer à mesa!
Olha para o papelinho que encontrei aqui,
dentro do teu cartão de identidade
da J.E.C.F. - sabias que em 1962,
tinhas tu 14 anos, pertenceste à
Juventude Católica Feminina? Pois é, pertenceste!
Associada nº 23703, reza o cartão de identidade.
O que será aquele "E"? - Escolar?
Também tu foste escoteira, Lilith,
mas em vez de Baden Powell,
devias receber instruções do Cardeal Cerejeira.
Olha o papelinho, Lilith, escrito pelo teu punho,
em duas estrofes pequeninas:

Rezar sempre as minhas
orações de manhã e
à noite.

Fazer os possíveis para
ser delicada com todos
mesmo para aqueles
que o não forem para mim.

Eras então interna do Colégio da Imaculada Conceição, em Lamego, e andavas no 4º Ano. Adoraste o internato, vias cinema e ias passear para o parque da Senhora dos Remédios, mas também foi lá que recebeste o maior vexame da tua vida! Uma bofetada da Irmã Francisca, por não teres preenchido o mapa mudo com o nome dos acidentes geográficos! Em vez disso, numeraste-os no mapa, e fizeste legenda em papel à parte. "A menina é uma extravagante!", cuspiu a freira, injuriosa, descarregando-te um zero na pauta e uma chapada na cara.
As pessoas que nunca apanharam porrada na vida!
As pessoas! Pessoa!
As que nunca foram capacho de sandálias
italianas, as que nunca limparam os sapatos
em tapetes de pensões baratas
e albergues de juventude
em Barcelona, com os seus vitrais vermelhos,
instalação azul de obras à porta, encimada pelo número 33,
ao lado da Boutique Hermes, que vendia acessórios da moda
para moças elegantes.
Que pessoas nunca apanharam porrada da vida, Álvaro?
Vem-me isto ao pensamento, Fernando, as humilhações
que sofremos e calamos,
os pontapés que recebemos e aos quais reagimos,
- Afasta de mim esses horrendos modelos! -
as cadeiras que nos tiram de debaixo do rabo
e rimos, rimos,
que não foi nada, fingimos.

Ou então como vendaval
levanta-se em nós uma cobra cascavel
os guizos num frenesi e a cabeça disparada
dois dentes em gancho
mordem até à última gota de mortífero veneno.

Fazer os possíveis para
ser delicada com todos
mesmo para aqueles
que o não forem para mim.

A transmissão do modelo, assim se torcem de pequenas
as pepinas, para se tornarem salsichas do paradigma,
ideais para consumo burguês à sobremesa.
Subir acima da agressão, Lilith, não precisar de língua,
dentes nem  punhal.
Guardar apenas um olhar manso e com ele demover rochedos.
Usar somente a voz, uma voz doce, que convoque os animais dos
bosques e aos regatos mude o curso para as águas a teus pés
escutarem.
E terás tu na língua o poder de Orfeu?
Consegues sair do Inferno com Eurídice?
Subir acima da dor e das contrariedades sem ripostar e sem sofrer.
Mas subir todos os degraus da civilização
sem ir parar ao Nirvana, conservando o desejo, o desejo
de uma boa refeição, de uma boa foda, o desejo de uma boa cama.
Pessoa, tu que foste capacho de quem nada valia
em frente de ti, como fizeste?
Alimentaste a dor, dormiste com ela?
A obra quase toda deixaste no baú
para que outros um dia esse tesouro descobrissem
e a elas ele em ouro transmutasse?
Não publicaste quase nada em vida, tiveste medo da porrada?
Como fizeste?
O ET reproduziu-se em mil e uma
personagens, entre as quais, homem de Deus!,
até a Maria José entalaste!
Maria José! E porque não Jesus Maria José?
Jesus, pequenino, quiseste sê-lo?
Foi assim que fizeste para subir os degraus
da secreta escada
que levam do raso onde nos fere a porrada
ao alto onde se deseja mas já não existe dor
por sermos maiores do que ela?
Jesus, Fernando, quiseste sê-lo?
Assinaste com esse nome?

 
 
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