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Estela Guedes:

Diário de Lilith

 

 

 

PRIMEIRO DIA - Hotel Régua Douro

Fica longe afinal a Residencial Dom Quixote. Deixei de lado a ideia, estás cansada, querida Dulcineia, trazes um capacete pesado na cabeça há muitos meses - será stress, perversão ou neura. Voltas, a maleta e os pés a reboque, para junto do Largo da Estação.

Fui comprar fruta depois de um duche que não refrescou. Mas ah, o rio todo à frente, e o Sandeman empoleirado no monte a vigiar-te, chega com a sua negra capa alguma frescura e o trinado melancólico das rãs.

Onde estão elas, as rãs? As protegidas Rana - perezi, iberica e outras -, onde cantam? Eduardo, Eduardo Crespo, onde cantam as rãs e a que espécies pertencem elas?

Nem os bucólicos poetas alguma vez se interessaram por sapos e rãs. Os alquimistas, sim. E pelas salamandras, então… Agora os poetas interessam-se é pelos rapazinhos, é aos jovens pastores que Virgílio adula com flores, derretidas palavras e frautas de Pã.

Na outra margem, aos pés do monte em que se ergue o Homem de Sande - devia ser Homem da Areia -, pois é nessa que existe vegetação ribeirinha. Deste lado, só vemos cascalho e pedras gordas, nada de plantas, fica deste lado o cais e há barcos atracados. Fortes sacos vocálicos têm estas criaturinhas... É como as aves, cantam alto e ouvem-se a boa distância, por muito que sejam mínimos verdilhões ou delicadas andorinhas.

Serão rãs verdes ou castanhas? Se calhar coabitam, apesar de congenéricas. Está-se bem aqui, na varanda, com a noite cadente, as luzes dos barcos, os reflexos ondulantes no rio e o canto de rãs dispersas na outra margem.

A água cobra vê-se latejar aos últimos clarões do crepúsculo.

São 21 horas, 13 de Julho, e escreves sem luz eléctrica. Daqui a nada precisas de descobrir o interruptor para iluminares a varanda. Lilith! Lilith, vai chover! Que agradável, uns chuviscos caem no corpo quente, aliviam por instantes os pés magoados. Que boa, a chuva, se não correr connosco da varanda... Gostava que chovesse forte e feio, que uma tempestade rachasse com a faca dos relâmpagos o céu em duas metades, desde que não nos obrigasse a sair da varanda... E se nos deixássemos dormir aqui, ao relento? Entre dois planos de água, a chuva a cair mansamente sobre as inferiores, a reduzir as dores à brandura de uma toalha...

Não descubro aqui nenhuma referência, para falar com toda a franqueza. As referências criam-se. Crias lugares, Lilith, crias agora esta referência maior que é o rio lancetado pelos reflexos dos candeeiros da estrada.

Em Bruxelas tens mais referências e não são apenas literárias. Apesar de nem um nome de rua conheceres. Lembras-te vagamente de uma praça rodeada de edifícios majestosos, alguns de arquitectura bem fantasiosa. Place de la Mairie? Que importa? Em Bruxelas tinhas uma amiga, a segunda a suicidar-se… não, a terceira, esquecias-te da Paula, que se matou a tiro feita uma Medeia desalmada, a terceira a deixar-te com isso um lanho na alma. Se outros amigos se mataram, já não sabes, não recordas, não viviam no teu coração. Essas três, sim, residiam nele, por isso à sua volta há um mapa recamado de referências. A Bruxelas da política, as toneladas de papel gastas por dia em textos e traduções, com relatórios, pareceres, notas, decretos e leis, que ninguém lia. Salvo os directamente implicados na redacção.

Tereza Coelho Lopes, uma escritora fora da escrita, que mal entrou nela, para se enterrar nas escriturações da política. Deixou-nos um livrinho com poemas de Camilo Pessanha, o roubador de água: Clepshydra.

A dirigir uma equipa de tradutores de textos que ninguém lia. Que ninguém lê. Tereza, eis o centro do mapa. Tinha tudo o que qualquer uma podia invejar: beleza, bom nascimento, cultura, educação, brilho, inteligência e um opíparo ordenado.

Chove no rio, Tereza. Nada daquilo tinha valor para si, foi aguentando o desencanto, até se partir toda por dentro, se julgar a mais no mundo, se julgar de menos em si. Que queria? Os pais vivos, irmãos, uma família, amigos em cadeia de união perfeita? Queria ser feliz, Tereza? Uma mulher só num apartamento mobilado, em Bruxelas. Uma mulher a quem nada faltava.

- Não tenho nada, não era isto o que eu queria, errei completamente o discurso da vida!

Errara o discurso, a escritora transformada em escrevente.

Faltava-lhe a Escrita.

Escreves, Lilith. Há anos que não escrevias assim, num fluxo, como essa Douro menstrual, à mão, encharcando os dedos em sangue, rubricas, Lilith das calças brancas. Escreves como no tempo dos dinossauros, quase às escuras, na varanda do hotel, e respinga-te a água das lavadas regiões superiores, tão calma, tão boa.

 
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