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Estela Guedes:

Diário de Lilith

 

 

 

PRIMEIRO DIA - O castelo de Leiria

A Rainha Santa Isabel tinha mandado fazer a igreja de Nossa Senhora da Penha, lá no Castelo, onde moravam, na qual trabalhavam muitos alvanéis. Muito caridosa, dava generosas esmolas aos pobres, o que às vezes contrariava o Rei, bom administrador do reino e da sua fazenda, tanto mais que as esmolas da sua mulher eram grandes e repetidas.
Um dia, levava a Rainha, numa abada do seu manto, boa quantidade de moedas para distribuir pelos mais pobres, quando lhe apareceu, de surpresa, seu marido e Rei, que, conhecendo demasiado bem o espírito de bem–fazer da Rainha e calculando o que ela levava na aba do seu manto, lhe perguntou:
“Que levais aí, Senhora?”
Ao que a Rainha Santa, abrindo o manto para que visse, lhe respondeu:
“Rosas, Senhor!”  (Disponível na Internet)

A obra vai-se construindo com materiais vários, e não apenas com cedro do Líbano ou mármore de Estremoz; a obra vai-se construindo em planos vários, e não apenas no diálogo com uma entidade designada por Lilith; a obra vai-se construindo em estratos, e não apenas o da cronologia de três dias no Douro que de resto não chegaram a ser três. Três dias completos, não.

Vamos chegando à área de serviço de Leiria, e o motor rosna, manselinamente: Grrrooommmm.... Brrraaaakkkkk..... Grrrooommmm.... Brrraaaakkkkk..... Peças de metal chispam, umas de encontro às outras, ciciando: Uniiiiimmmmmmmm.... Vrrrrriiiiiinnnnnnnnk............ Zliiiiiiittt........ Trazem à memória imagens auditivas do "Manucure", de Mário de Sá-Carneiro, e com elas chega à mente o Lar Alentejano, onde viveste no primeiro ano de Faculdade, ali para os lados do Rock Rendez-Vous, que decorria aos domingos numa sala de cinema que já não existe, na Rua da Beneficência. O Lar Alentejano, de freiras talvez franciscanas, crês que ainda funciona, na Rua Veloso Salgado, número 33 aproximadamente, e salvo maior erro.

As partidas que a memória nos prega! Conseguires lembrar-te tão exactamente de um local onde mais jogavas King do que estudavas, e por isso chumbaste aparatosamente! De nada serviu vires com boas notas da Guiné e beneficiares de uma bolsa de estudo da Gulbenkian! Onde já iam as notas razoáveis sacadas em Latim da D. Anita Ribeiro e Silva, que já morreu? Da D. Clara Schwarz da Silva, professora de Francês, mantiveste os resultados agradáveis. Ainda vive, tem mais de noventa anos, recebeu uma homenagem dos antigos alunos no ano passado, na Sociedade de Geografia de Lisboa. Contou que a sua vida não tinha sido um mar de rosas: era uma judia fugida às perseguições nazis, e de uma vez a PIDE tinha prendido o marido, em Bissau, sob acusação de actividades comunistas.

A D. Clara já não se lembra de ti. Lembra-se de poucos, está muito velha. Mas nós gostámos de a ver. É reconfortante viver tempos antigos, o passado acoplado ao presente, simultâneo dele, e não como se a vida fosse um calendário em que dias passados e futuros estivessem fora de uso, e nós já e ainda nada tivéssemos que ver com eles. Como se tu, Lilith das calças frouxas, não fosses eu. O António Júlio Estácio é muito bom a organizar estes eventos.

O Lar Alentejano não abrigava só filhas-família de ricos latifundiários do Alentejo. No teu quarto, de três, vivia também uma jovem de Leiria, cujo nome esqueceste. Madalena, por suposição. A Madalena intrigava-se e ralhava contigo por passares tantas vezes na estrada de Leiria e nunca teres visto o castelo, com uma linda varanda, de que se tinham debruçado dois dos nossos mais lendários governantes, a Rainha Santa Isabel e D. Dinis, o Rei-Poeta. Era de Leiria a Madalena, com aqueles olhos muito azuis e cabelos escorridos de cor clara, queria que brilhasse a sua terra, e tu não tinhas consciência de já teres visto um castelo que viras tantas vezes, sem o relacionares com a cidade de Leiria. Ofendida, a jovem mostrava postais ilustrados, os olhos a brilharem muito à tona de uma pele lisa, sem poros abertos, de brancura árdua:

- Nunca viste o castelo de Leiria?! Olha para ele!

Que fazemos aos amigos? Em que recantos da vida e da consciência os vamos deixando? Que vergonha, nem do nome dela te recordas... Gostava de te ver, Mariana. Ou Milú, tanto faz. Gostava de saber como foi o teu caminho, se tiveste muitos obstáculos ou nenhuns na jornada. Tens filhos? Que fazem? Com quem casaste? Com aquele estudante de Engenharia que vivia no Colégio Pio XII?

Gostava de conhecer um pouco da tua narrativa de vida. Como é, Alexandra? Tens sido feliz? Foste dar aulas de Inglês e Alemão para o liceu de Leiria? Oh, Joana, que alegria! Estás na mesma, só essas rugas de expressão, de resto, quarenta anos ou pouco menos em cima não te fizeram mossa nenhuma!

O castelo de Leiria vê-se da estrada? Nunca reparei, confesso. Já lá fomos, já passeámos na varanda de que a Rainha nascida no Reyno de Ys deixava cair rosas-cruz, mas vê-se da estrada?!

Tal como na juventude, passaste pela região de Leiria e não viste nada, nem castelo nem cidade, mas hoje tens o desconto de ser já muito diferente o plano director das estradas.
Vês sempre outra coisa, não é, Lilith? Vês abelhas a emitirem raios de luz nos dedos miraculados de Ysabelys.

 
 
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