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Estela Guedes:

Diário de Lilith

 

 

 

PRIMEIRO DIA - Palácio do Buçaco

Luxúria verde, moluscos e anfíbios (sapos, rãs, salamandras, tritões) introduzidos no Parque pelos bons naturalistas, em especial Augusto Nobre e Antero de Seabra. Tal como as árvores do Buçaco hão-de ter sido plantadas mais ou menos na mesma época. Portugal era bem grego no passado, bem careca. Um dos mais remotos introdutores de espécies foi o Rei-Poeta, D. Dinis. Ele o canta, de resto: Ay, flores, ay flores do verde piño... No tempo de Salazar a introdução atinge um auge com a florestação da Serra de Monsanto. As espécies introduzidas estão todas marcadas na literatura, para aviso. Consulte-se, v.g., a "Flora Portuguesa" de Gonçalo Sampaio. Leiam-se os artigos de Augusto Nobre sobre moluscos. Num deles, declara que fará a introdução no fim da série de textos. Não há desculpa para a ignorância.

Buçaco - um paraíso! O Éden que imaginamos para núpcias dos pais, tão bom como conveses de navios de proa feita às Caraíbas, Barbados, o imaginário é tão poderoso, e a realidade quantas vezes fica aquém das Berlengas. Um dia comentaste isso com a tia Manuela, que já morreu, e morreu de morte estúpida, esmagada por um camião enquanto conversava com a Dora ao portão da casa, a tia Manuela que tão boas compotas fazia, de melão, cereja, abóbora, a tia Manuela corrigiu, espantada:

- Lilith, os teus pais, quando casaram, não foram passar a lua-de-mel a parte nenhuma, ficaram em casa!

E tu não mentias, Lilith das calças tontas! Por qualquer motivo, real ou imaginário, estavas convencida de que os teus pais tinham passado a noite de núpcias no Palácio do Buçaco!

O Buçaco, antes da florestação, com a correlata introdução de espécies, devia ser um monte de calhaus ou um deserto, em que só searas havia, à maneira de Monsanto. Tudo o que nele é hoje paradisíaco resulta da acção do homem.

Os jardins são humanos, ou são divinos, naturais é que não, se por natural entendermos o que é original, espontâneo, não trabalhado por nós.

A tia Manuela, que te ensinou a jogar canasta, a dizer que os teus pais não tinham passado a lua-de-mel no Palácio do Buçaco! Que vergonha, Lilith, que desencanto... Onde tinhas tu ido buscar tão mirífica ideia?

Buçaco das salamandras pretas.
Buçaco dos caracóis e lesmas.
A salamandra entre as pernas, ardente,
o fogo ateado de S. João
com tojo e rosmaninho, no tempo das
maias.
Essa labareda que titila o corpo
e te põe escarranchada sobre as pernas do teu filho,
bom ou mau, bem ou mal, isso está para além de Nietzsche,
é uma potência incontrolável.
Pensar que todos passaram por aí, que todos a têm,
mesmo os que não devem, Lilith.
Pensar que o dever nada é contra o poder da salamandra,
quando a salamandra crepita entre as pernas e
todo o corpo é uma árvore tremente que arde.
Pensar que o poder é incontrolável
e portanto não foi controlado.
Buçaco, o monte dos mitos.
Buçaco, a revelar as grandes hipocrisias da História.
Apenas porque a salamandra ali deixada pelos naturalistas
não pode ser controlada.

 
 
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