MARIA ESTELA GUEDES
Morrer, sim, mas devagar

"Morrer, sim, mas devagar" - eis uma frase com carácter, com significados vários e sentido móvel, um deles similar ao dessa outra, de Camões, ao referir aqueles que se vão da lei da Morte libertando.

Costumo usá-la, remetendo-a para Almada Negreiros, que a emprega sem lhe denunciar a origem, e por isso julgava eu que lhe pertencia. Descubro-a agora, no romance cuja personagem central é Lisboa, de Suzanne Chantal (A caravela e os corvos. O romance de Lisboa. Lisboa, Portugália, s/d). Ora a sua paternidade é bem mais antiga do que o Modernismo, remontando pelo menos a D. Sebastião.

No meio da batalha em que paradoxalmente encontrou a morte e a imortalidade, o jovem rei terá incentivado os cavaleiros que o rodeavam, e desafiado os fados, como lemos a páginas 92:

"É em vão que o rei e os seus jovens cavaleiros se defendem desesperadamente. A coragem individual não pode salvar uma tentativa tão louca. Os combatentes lançam-se sobre os corpos dos moribundos, a cavalaria moura rasga e dispersa as alas portuguesas.

D. Sebastião sente-se perdido.

- Que nos resta, senhor? grita um dos companheiros.

E ele responde: - Morrer.

Depois, lívido e resoluto, no meio do combate, a camisa manchada de sangue e de poeira, a espada na mão, acrescenta:

- Morrer, sim, mas devagar."

Imagens actuais de Alcácer-Quibir, em Marrocos. No lapso de duas ou três horas morreram aqui três reis, daí a designação de "Batalha dos três reis". Agradecemos as fotos a José Casquilho
É preciso dar luta à Morte, não podemos cruzar os braços, em desistência e submissão. E é neste ponto de não retorno, em que a tragédia já não pode ser evitada, que na mente de quem a vive surge um espelho, representação do texto mortífero. Ora a representação, diferentemente da vida, já é capaz de se subtrair à lei da morte.

Suzanne Chantal é uma boa romancista, que em romance transforma a História, mas não é uma autora romântica, e ainda menos mística. Por isso o seu D. Sebastião nada tem de messiânico: é um ser débil, de físico deficiente, nascido "de uma raça gasta e de uma união duplamente consanguínea. Um lado do seu corpo é mais desenvolvido do que outro e tem seis dedos no pé direito." Mais acrescenta Chantal, que o rei fizera voto de castidade para ser digno da sua missão, pois adivinhara que o seu povo esperava nele um messias.

Este homem, que outros dizem ter sido repetidamente vítima de abuso sexual, desde a infância, pelo jesuíta a quem fora confiada a sua educação, em cuja vida quase nada existe que inflame a criatividade, ou que constitua água plana em que nos remiremos de narcísico amor, veio a tornar-se um dos nossos mitos maiores.

"Quase nada", disse acima. Que estará por detrás desse "quase" e desse "nada"?

Um outro autor antigo, que tratou a figura central do sebastianismo, foi o Conde de Sabugosa, em Donas de tempos idos (Lisboa, Livraria Ferreira, 1912). Antes de revelar o que existe atrás do "quase", fiquem-nos mais duas notas tristes: a de que D. Sebastião fazia batota ao jogo e consumia na caça todo o seu tempo. Onde o romantismo do "quase", esse fulgor capaz de inflamar os espíritos, a ponto de estimular os mais aptos à criação literária, por exemplo?

O casto jovem, que alguns autores rotulam de homossexual, teve vários casamentos congeminados pelos seus tutores e parentes mais chegados ao trono. Um deles com Margarida de Valois, a famosa Rainha Margot de Alexandre Dumas. A libertina Margot casada com o casto ou homossexual Sebastião, para que lado inclinaria o destino de Portugal? O romanesco da ligação não parece dar frutos místicos. Mas há outra mulher na sua vida que, essa, sim, podia fazer surgir uma chama em capela, sobretudo por ser dada como lenda. Na primeira expedição a Marrocos, D. Sebastião ter-se-ia apaixonado por uma princesa moura. Após o regresso a Lisboa, vinha regularmente uma embarcação do Norte de África, com um mensageiro, incumbido de trazer as cartas da dama e levar as do cavaleiro. D. Sebastião remava sozinho, de noite, ao encontro do misterioso mareante, com o qual permanecia algumas horas, na Trafaria.

Confesso que estes encontros nocturnos, sem testemunhas, acicatam a curiosidade, tanto mais que é fácil deslocar da moura para o emissário o ardor de D. Sebastião.

Seja como for, não é nestes relacionamentos, uns não consumados, outros misteriosos de mais para serem verdadeiros, que reside a chama do sebastianismo. Em que lado da vida de D. Sebastião se gerou o mito?

Creio que em nenhum. O sebastianismo não se gera em D. Sebastião, sim na mente dos portugueses. Uma faúlha apenas permite a transmutação do nada que ele era em figura arturiana: o facto, ou a lenda, de não se ter descoberto o seu cadáver entre os que juncaram os areais de Alcácer Quibir. Tudo o que gira à volta é desejo nosso, desejo de um Salvador, e por isso o seu cognome ficou sendo "O Desejado". Ele, D. Sebastião, não foi um herói, um santo, um mártir, não chegou a ser nada. E Alcácer-Quibir foi uma derrota, tal como afirma uma historiadora nossa contemporânea, Lucette Valensi, em Fábulas da Memória - A gloriosa batalha dos três reis (Lisboa, Edições Asa, 1996), ao comentar a eleição de três símbolos da vitória - palmas, obelisco, inscrição - com que, numa peregrinação realizada em 1942 aos lugares da campanha marroquina, se transfigurou a realidade. Assim, escreve ela, na página 161:

"Brilhante parada, nos dois sentidos do termo: no sentido próprio, um desfile militar, no sentido figurado, uma nova manha para mascarar a derrota de Alcácer Quibir. Dos descendentes dos vencedores, ela fez figurantes desarmados; e dos vencidos, combatentes outra vez exaltados."

Enfim, perguntemos: como é possível transformar o mais insignificante dos nossos reis num dos símbolos - e por consequência numa das figuras mais carregadas de significado - mais importantes e esotéricos da nossa História, da nossa identidade lusíada?

Ao valor do "quase" acrescento agora o valor do "nada". O nada da derrota, o nada do homem sem qualidades, é a própria condição do mito. O nada é o chumbo, ou a pedra bruta, anterior ao ouro da transmutação. "O mito é o nada que é tudo", já o sabemos de Fernando Pessoa. O mito é o nada que morre, mas muito devagar, porque se vai da lei da Morte libertando.

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