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:::::::::::::::::::::::::::Maria Estela Guedes:::

DOIS CASOS SECRETOS EM CIÊNCIAS NATURAIS
Lisboa, 1994
(Trabalho apresentado para concurso a Assessor, no Museu Bocage. Distribuição restrita)

INDEX

1ª peregrinação: a finalidade das "viagens filosóficas"

Feijó estava em Cabo Verde, como outros naturalistas noutras partes ultramarinas, por determinação governamental, no caso, do ministro da Marinha e Ultramar, Padre Martinho de Melo e Castro,

para recolher, e aprontar todos os produtos dos três Reinos da Natureza que encontrasse nos paises da sua viagem, para serem remetidos ao Real Museu de Lisboa; assim como também se lhe incumbiu a espinhosa tarefa de fazer particulares observações filosóficas e políticas acerca de todos os objectos desta mesma viagem.

Refere-se a anterior passagem à missão de Alexandre Rodrigues Ferreira no Brasil, mas

nesta ocasião [1783] partiram outros Naturalistas para diversas partes dos nossos Domínios Ultramarinos, tais foram, para Cabo Verde o Snr. João da Silva Feijó..., para Angola o Italiano Angelo Donati...; para Moçambique Manuel Galvão da Silva... (Costa e Sá, 1818).

Tratando-se de um projecto nacional, de nomeação simultânea, é evidente que todos levavam as mesmas instruções.

Se bem que na época as "viagens filosóficas" decorressem já de certa motivação intelectual, ao poder político interessa em primeira mão o político, e já vimos expressamente enunciada tal intenção nas instruções dadas a Alexandre Rodrigues Ferreira. Declara-se mesmo que a missão é espinhosa neste aspecto, uma vez que os naturalistas vão também fazer espionagem. Em documento divulgado por Fernandes (1950) diz-se claramente que a viagem de Alexandre Rodrigues Ferreira ao fim do Mundo do Brasil teve por principal objectivo executar os artigos secretos da sua Comissão.

O político pode traduzir-se por útil, e útil é a existência de "homens, mulheres e crias", ouro, diamantes, madeiras preciosas, plantas e animais tintureiros, e outros produtos com valor económico. O pano de fundo destas deslocações, em que Padre Martinho de Melo e Castro desempenha papel de voz off, assinando decretos e ofícios de vária ordem administrativa, é a escravatura. Os barcos em que os naturalistas viajam, enviam cartas, listas e barris com plantas, pedras e animais, são os negreiros. O bergantim S. João Baptista, a que Feijó se há-de referir como tendo enviado lagartos por ele, pertencia à Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão. Em 1763, de Angola para o Pará, no que deve ter sido viagem única com essa rota, o bergantim embarcou 466 escravos, dos quais 313 chegaram ao destino (Carreira, 1969). Milhares de escravos cruzavam anualmente o Atlântico, em navios de bandeiras diversas, entre a costa ocidental africana e a América. Se interpretarmos a diferença entre o número dos embarcados e dos desembarcados, e daí imaginarmos o que se passava com outros carregamentos, vemos que não era nada pequena a percentagem de baixas. Neste, 153 pessoas morreram na viagem. O tráfico não comporta só a escravidão, também a morte de número assustador de infelizes que contraíam doenças nos navios (muitas vezes bexigas, diz Carreira).

Já agora, que de economia tratamos, o preço do escravo oscilava muito. O da Guiné era o mais caro. Em Angola e na Costa do Marfim fazia-se melhor negócio. No séc. XVI, facilmente se adquiria um, no Reino do Benim, por doze ou quinze manilhas de latão (Carreira, 1968). É claro que mulheres e crias deviam custar só uns cinco ou seis braceletes. Estas pessoas, para lá de outras ofensas que pudessem sofrer, e das que se infligiam a si mesmas (entregavam-se por fome, sendo negros também os intermediários) eram submetidas a rituais mágicos de intimidação, para não fugirem, em que por vezes apareciam animais sagrados (serpentes, termiteiras de baga-baga), e obrigavam-nas a transportar o seu próprio alimento, desde o lugar da compra ou captura até ao porto de embarque, que podia ficar muito longe, significando isto que nem sempre os mantimentos chegariam para a subsistência durante a jornada. Uma vez que embarcavam nuas e acorrentadas umas às outras, agora por manilhas de ferro, só por acaso ou qualquer circunstância excepcional conseguiriam introduzir algo nos navios. Algo como lagartos, por exemplo, que pudessem colonizar o arquipélago cabo-verdiano, onde os navios faziam escala para deixar escravos e se refrescarem.

Volvendo os olhos para mercadorias mais inócuas, as plantas interessavam para fins múltiplos, entre eles os medicinais, de larga tradição nos hortos dos mosteiros. Um dos dez herbários levados por Saint-Hilaire, com 562 plantas, fora coligido por Feijó em Cabo Verde. Devia ser precioso, conservar-se em bom estado, de outro modo o naturalista francês tê-lo-ia deixado na Ajuda.

E interessavam ainda os animais, introduzidos ou nativos, desde que apresentassem valor económico. Em artigo acerca dos produtos úteis das Conquistas, Vandelli (1789) começa por denunciar o erro dos que à cabeça das riquezas põem o ouro. A abrir o capítulo sobre o Reino Animal, informa:

Entre os quadrúpedes se costumavam aproveitar as peles das Onças, Tigres, Lontras, Aguti, e Paca, e pouco uso se faz daquelas mais macias do Tapeti, e do Caviacobaia do Brasil. Além disto seria conveniente aproveitar-se mais as carnes dos Porcos Tacajú, e Capivara do Brasil.

Os exóticos, ornamentais e falantes (os papagaios eram muito apreciados, e estou a lembrar-me de um soneto barroco intitulado "A um papagaio do palácio que falava muito") destinavam-se, nesta época, ao recreio.

Maria Estela Guedes. Membro da Associação Portuguesa de Escritores, da secção portuguesa da Associação Internacional de Críticos Literários, do Centro Interdisciplinar da Universidade de Lisboa e do Instituto São Tomás de Aquino. Directora do TriploV. Alguns livros publicados: Herberto Helder, Poeta Obscuro; Eco/Pedras Rolantes; Crime no Museu de Philosophia Natural; Mário de Sá-Carneiro; A_maar_gato; Ofício das Trevas; À la Carbonara; Tríptico a solo. Espectáculos levados à cena: O Lagarto do Âmbar (Fundação Calouste Gulbenkian, 1987); A Boba (Teatro Experimental de Cascais, 2008). Aposentada no cargo de Assessor Principal, no Museu Bocage (Museu Nacional de História Natural - Universidade de Lisboa).