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:::::::::::::::::::::::::::Maria Estela Guedes:::

DOIS CASOS SECRETOS EM CIÊNCIAS NATURAIS
Lisboa, 1994
(Trabalho apresentado para concurso a Assessor, no Museu Bocage. Distribuição restrita)

INDEX

De como o lagarto é envolvido nas invasões francesas

Em 1808, o primeiro duque de Abrantes, Governador-Geral de Portugal, general Junot, assinava a ordem de entrega que permitiu a Geoffroy Saint-Hilaire levar para França os exemplares que seleccionara no Gabinete de História Natural da Ajuda, então dirigido pelo mestre italiano Domingos Vandelli (1735-1816). Invocando Sua Majestade, o Imperador Napoleão Bonaparte, a ordem fora precedida de outra mais geral, destinada a inventariar o património cultural português (Daget & Saldanha, 1989):

Nous, duc d' Abrantes, General en chef de 1' armée du Portugal, ordonnons à tout conservateur de muséum, Cabinet d' histoire naturelle, Bibliothèque et autres monuments des Sciences appartenant soit au Gouverneur, soit aux maisons religieuses, soit à des partículiers émigrés de laisser visiter et reconnaître leurs établissements par monsieur Geoffroy St Hilaire, membre de l' Institut de France, de lui ouvrir toutes les armoires et coffres qu'il voudra visiter. II est expressément déffendu à qui que ce soit de troubler Mr. Geoffroy dans l'exécution de Ia mission dont il a été chargé par S. M. l' Empereur et il est expressément ordonné de l'aider dans tout ce dont il aurait besoin.

Donné au Palais du quartier Général à Lisbonne le 23 mai 1808, le Duc d'Abrantes


Se benefício houve neste abuso, típico das campanhas napoleónicas, foi a ida de um exemplar do sáurio para o Museu de História Natural de Paris, onde o estudaram e tentaram classificar.

Sucedeu assim que, em 1839, Duméril e Bibron publicavam, na sua "Erpétologie Générale", a descrição de Euprepes coctei, Scincidae com membros robustos, dorso mosqueado de amarelo sobre fundo cinzento mareado de castanho, ventre branco-amarelado, 64,7 cm de comprimento total, 30 cm de cauda, cuja proveniência ignoravam:

La patrie de cette espèce ne nous est pas connue, mais nous Ia supposons originaire des côtes d' Afrique; le seul individu de cet Euprèpes que nous ayons été dans le cas d'observer appartient à notre musée national, ou il a été apporté de Lisbonne, en 1809, avec d'autres objets d'histoire nalurelle provenant du cabinet de cette ville.

A hipótese africana era plausível, mas Duméril filho, quando publica a sua relação herpetológica da África ocidental (1861), já o não inclui nela:

II est probable que cette espèce remarquable par sa grande taille, et qui semble n'avoir encore été vue que dans notre musée, a été rapportée d' Afrique occidentale; cependant il reste des doutes.

Entretanto, em 1867 Bocage faz uma viagem a Paris, na sequência de diligências para compensar, com umas centenas de exemplares oferecidos pelo Jardin des Plantes, o que em 1808 fora compulsivamente entregue a Saint-Hilaire. No Museu de Paris, guiado por Duméril filho, tem oportunidade de ver o tipo do Euprepes coctei, ficando persuadido, como D. & B., da sua origem africana. A partir daí, Bocage, director do Museu de Lisboa (cujas colecções se tinham começado a formar com as do Gabinete da Ajuda e do Museu da Academia Real das Ciências), decide-se a descobrir qual exactamente o habitat da espécie, uma vez que às suas mãos vinham chegando numerosas remessas de animais africanos, sem entre eles jamais ter aparecido o Euprèpes. Se o não recebe dos colectores africanos, encontra-o no entanto no seu próprio museu (1873):

Parmi les débris de l'ancien cabinet d1 Ajuda (...) j'ai eu le bonheur de retrouver trais sauriens se rapportant exactement par leur taille et par leurs caractères extérieurs à l'E. Coctei. Malheureusement ces spécimens ne portaient aucune étiquette constatant leur provenance; mais identiques, quant à leur mode de préparation, à celui du Muséum de Paris, ils semblaient avoir été leurs contemporains au cabinet d'Ajuda et avoir fait partie d'un même envoi. C'est-à-clire, selon toute probabilité, les trois spécimens de Lisbonne et celui de Paris se trouveraient ensemble dans Ies collections du cabinet d'Ajuda en 1808...

A descoberta, se não resolvia o problema zoogeográfico, encorajou-o no entanto a prosseguir. Assim, por exclusão de hipóteses, veio a persuadir-se de ter sido Feijó a coligir em Cabo Verde aqueles quatro espécimes:

L'exclusion de l'Afrique orientale résultait de cette considération - que nos colonies de Moçambique avaient été étudiées récemment et très bien étudiées, sous le point de vue de la zoologie, par un erpétologiste de premier ordre, le dr. Peters, de Berlin, qui n'aurait pas laissé facilement échapper l'occasion de retrouver l' E. Coctei, s'il y habitait en effet.

Quant à nos possessions sur Ia côte occiddentale, les recherches entreprises par MM. d'Anchieta et Bayão dans un grand nombre de localités comprises dans l'ancien royaume d'Angola, sans retrouver nulle part l' E. Coctei, rendaient chaque jour moins probable son existence dans cette partie d' Afrique continentale.

D'un autre côté je savais parfaitement que les îles de Cap Vert avaient été explorées pendant 10 à 11 ans, de I784 à 1795, par un naturaliste portugais d'un mérite incontestable, João da Silva Feijó, que de nombreuses collections de produits zoologiques avaient été adressées par lui au cabinet d' Ajuda, que ces collections devaient s'y trouver en 1808 (...) Malheureusement il paraît que c'était l'habitude dans le cabinet d'Ajuda de ne pas mettre sur les spécimens des indications sur leur origine, pas même de simples étiquettes constatant leur provenance; je n'ai pu retrouver aucun catalogue régulier et authique ayant rapport aux envois de Feijó et d'autres voyageurs-naturalistes; j'ai à peine découvert, après bien de recherches, quelques listes, écrites de Ia main de Feijó, contenant une énumération des animaux, minéraux et autres objets composant ses envois.

Na nota que em 1896 dedica ao M. coctei, Bocage será muito mais concreto:

Tivemos a fortuna de descobrir, confundidas com outros papéis que vieram do Gabinete da Ajuda, cartas do naturalista Feijó, escritas de várias ilhas de Cabo Verde nos anos de 1784 e 1785, e juntamente relações de algumas das remessas por ele efectuadas nesses anos. Numa destas relações, com data de 1784, vêm mencionados dois Lagartos do Ilheo Branco...

No arquivo histórico do Museu Bocage ainda existem cartas e listas de Feijó. Aquela a que Bocage se refere, como tendo escrito "dois Lagartos do Ilhéu Branco", requer exegese. É um cademinho em cujo rosto se lê:

Lista das Producçoes de Sta Luzia; Ilheos Razo; e Brcº que observou, recolheo e remeteo pª o Real Gabinete do Prince N. Snr. em o anno de 1784 o seu indigno Naturalista destas Ilhas de Cabo Verde João da Silva Feijó

O caderno divide-se em três partes mais uma adenda. A primeira refere-se a Santa Luzia, a segunda ao Ilhéu Raso, e a terceira ao Ilhéu Branco. Estas três partes, que só mencionam "Pedras" e "Terras", não levantam dúvidas interpretativas quanto à proveniência do material. Podem é sugerir breve comentário.

Maria Estela Guedes. Membro da Associação Portuguesa de Escritores, da secção portuguesa da Associação Internacional de Críticos Literários, do Centro Interdisciplinar da Universidade de Lisboa e do Instituto São Tomás de Aquino. Directora do TriploV. Alguns livros publicados: Herberto Helder, Poeta Obscuro; Eco/Pedras Rolantes; Crime no Museu de Philosophia Natural; Mário de Sá-Carneiro; A_maar_gato; Ofício das Trevas; À la Carbonara; Tríptico a solo. Espectáculos levados à cena: O Lagarto do Âmbar (Fundação Calouste Gulbenkian, 1987); A Boba (Teatro Experimental de Cascais, 2008). Aposentada no cargo de Assessor Principal, no Museu Bocage (Museu Nacional de História Natural - Universidade de Lisboa).