Procurar textos
 
 

 

 

 

 







:::::::::::::::::::::::::::Maria Estela Guedes:::

DOIS CASOS SECRETOS EM CIÊNCIAS NATURAIS
Lisboa, 1994
(Trabalho apresentado para concurso a Assessor, no Museu Bocage. Distribuição restrita)

INDEX
Onde se vê que o lagarto
não é susceptível de recolher apreciações consensuais

Macroscincus coctei (Duméril & Bibron, 1839) foi uma das mais célebres espécies de animais na zoologia do século XIX, ligando-se em Portugal ao nome de José Vicente Barbosa du Bocage (1823-1907). A descoberta deste Scincidae, decorrente da política europeia em África, relaciona-se com a escravatura, guerras várias, fenómenos culturais de sinal contrário. reflectindo mais de duzentos anos de convulsões. Dos ilhéus Branco e Raso, em Cabo Verde, minúsculos, desabitados, áridos, grandiosos na massa vulcânica, mas desnudos de árvores e humildes na vegetação, vai parar à corte de D. Maria I, assistindo, se assim se pode dizer, a um maquiavélico processo de intriga, cujos métodos lembram os do Santo Oficio, destinado a lançar em desgraça um dos mestres italianos outrora chamados por Sebastião José a leccionar em Coimbra, no âmbito da expulsão dos jesuítas e subsequente reforma da Universidade.

Desde a primeira captura registada, atribuída por Bocage a João da Silva Feijó, em finais do séc. XVIII, e a descrição de Duméril e Bibron, em 1839, que o classificaram como Euprepes coctei, viveu meio século de eclipse, dele se conhecendo apenas o exemplar tipo. Mais quase quarenta anos continuou obscuro, até Bocage, em 1873, receber três espécimes vivos do ilhéu Branco, acontecimento tão exaltante que o consdera uma "ressurreição da espécie".

Nos quarenta anos seguintes, o animal tornou-se uma celebridade na Europa, objecto de captura intensiva por solicitação dos museus e jardins zoológicos mais importantes. Cerca de 1915, deixou de ser encontrado, daí que começasse a mergulhar aos poucos no esquecimento. Nos nossos dias, dir-se-ia i ressuscitar pela segunda vez, estimulando paleontólogos como Schleich a pesquisas no terreno, a fim de se certificar da sobrevivência ou extinção, e outros, como o evolucionista Greer, a aprofundar-lhe as relações filogenéticas, e a dar uma explicação dos problemas que levanta, ainda não de todo esclarecidos.

Eis as particularidades da espécie, apontadas quer por cabo-verdianos e naturalistas que a observaram nos ilhéus, quer pelos biólogos que a estudaram em cativeiro, denunciadoras da confusão que instaura:

a) Considerada exclusiva dos ilhéus Branco e Raso, de clima desértico, sujeitos a secas que podem durar sete anos consecutivos;

b) Gigantismo: dito o maior Scincidae da Macaronésia e o segundo maior do mundo;

c) Dentição profundamente modificada na direcção do herbivorismo;

d) A cauda é preênsil, própria dos animais arborícolas; a autotomia e regeneração desse apêndice foi comprovada em quase todos os animais estudados;

e) Gordo, pesado, os movimentos são pouco ágeis;

f) Dieta exclusivamente vegetariana, e mais frugívora do que herbívora; aceita todo o tipo de alimento vegetal, incluindo sopas de pão;

g) Estudos recentes de ovos e de esqueletos de aves pelágicas encontrados em Santa Luzia, e ilhéus Branco e Raso, não revelaram marcas de dentes que provassem terem sido predados outrora pelos Macroscincus coctei;

h) Segundo os mesmos recentes estudos, foram encontrados ossos de lagartos, mesmo um monte deles, no que se pensa ter sido ninho de Falconiformes; não porém de M. coctei; deste não foram encontrados esqueletos, peles nem excrementos, nenhum vestígio do animal foi detectado nos ilhéus;

i) Vários M. coctei foram enxotados dos buracos usados como ninho por aves pelágicas, quando se procedia a explorações ornitológicas;

j) Alimentava-se de insectos, plantas, sementes, ovos e crias de Procellariiformes, e foi visto a comer uma cagarra ainda viva;

k) A pupila é perfeitamente circular, própria da generalidade dos sáurios diurnos;

l) Observaram-no a apanhar sol em cima das rochas;

m) A sua actividade vai de vesperal a nocturna, mantendo-se escondido durante o dia e preferindo alimentar-se de noite;

n) Exclusivamente activo na época das chuvas;

o) Foi visto em actividade em tempo seco ou de seca.

Maria Estela Guedes. Membro da Associação Portuguesa de Escritores, da secção portuguesa da Associação Internacional de Críticos Literários, do Centro Interdisciplinar da Universidade de Lisboa e do Instituto São Tomás de Aquino. Directora do TriploV. Alguns livros publicados: Herberto Helder, Poeta Obscuro; Eco/Pedras Rolantes; Crime no Museu de Philosophia Natural; Mário de Sá-Carneiro; A_maar_gato; Ofício das Trevas; À la Carbonara; Tríptico a solo. Espectáculos levados à cena: O Lagarto do Âmbar (Fundação Calouste Gulbenkian, 1987); A Boba (Teatro Experimental de Cascais, 2008). Aposentada no cargo de Assessor Principal, no Museu Bocage (Museu Nacional de História Natural - Universidade de Lisboa).