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:::::::::::::::::::::::::::Maria Estela Guedes:::

DOIS CASOS SECRETOS EM CIÊNCIAS NATURAIS
Lisboa, 1994
(Trabalho apresentado para concurso a Assessor, no Museu Bocage. Distribuição restrita)

INDEX
De como Feijó envia dois lagartos do dito ilhéu

Então, no documento de Feijó que motivou estas digressões, rol dos produtos coligidos em Santa Luzia, Raso e Branco, datado de 1784, há três partes bem caracterizadas, com breve diagnose das amostras de pedras e terras, por corresponderem ao objectivo utilitarista da sua missão. Já a adenda é um rascunho redigido sem cuidado, por tratar de zoologia, ou seja, do que em princípio seriam simples curiosidades para o ministro. Na verdade, Padre Martinho de Melo e Castro abandonava Feijó à sua sorte, e aborrecia-se com ele, decepcionadíssimo por as amostras não terem valor, não darem o mínimo sinal de ouro nem diamantes. É o que maldosamente se deduz da leitura de O. Ribeiro (1954):

Existe no Arquivo Histórico Ultramarino alguma correspondência dele ou com ele relacionada: queixa-se o naturalista de não ter encontrado, da parte das autoridades, as facilidades e o apoio de que carecia; queixa-se por sua vez o ministro de negligência no envio de exemplares, amostras não localizadas, animais que chegaram em mau estado, remessa de coisas de pouca monta quando, como ainda hoje acontece, quem o subsidiou esperava tirar proveito imediato dos seus estudos.

Quem o subsidiou esperava tirar proveitos imediatos do trabalho de Alexandre Rodrigues Ferreira, já que de Feijó é o que espera, não esqueçamos esta passagem. Quem subsidia estas viagens é o governo e não Domingos Vandelli, director do Real Jardim Botânico da Ajuda.

Padre Martinho tem alguma razão nas suas queixas, pouca. Quem fica nos bastidores não assimila bem o que estes homens passaram nos territórios das Conquistas. Alguns, como Angelo Donati e um dos desenhadores de Alexandre Rodrigues Ferreira, por lá ficaram enterrados. É certo que as listas de Feijó quase nunca mencionam os locais de colheita em cada ilha, e frequentemente nem a indicação da ilha fornecem. Se uma vez por outra o esquecesse, podíamos acusá-lo de desatenção. Desatenção sistemática já pressupõe inexistência de regras que exijam tais informações. E se por excepção elas se registam, devemos pensar em excepcionalidade da coisa remetida: só em tal local existe, logo indique-se o local precisamente, para que em vão se não procure em toda a parte.

De outro lado, em ilhas despovoadas nem todos os locais têm ainda assento cartográfico com a devida toponímia. Aos novos acidentes naturais resultantes da erupção do Fogo, teve ele de dar nomes em que ninguém pegou, por isso agora já não se sabe a que pontos geográficos correspondiam. Isto partindo do princípio de que tais novos acidentes sobreviveram à erupção seguinte.

Por uma vez única, no que dele consultei, há uma excepção, a respeito de lagartos colhidos nos "Mosteiros na ilha do Fogo", duplamente misteriosa: não só indica a ilha, como mais precisamente a vila. Mosteiros, a NE do Fogo, era quase tão importante como S. Filipe, a capital, embora o porto só desse acesso, e nem sempre, a pequenas embarcações. Posto administrativo na época de Feijó, dispunha mesmo de lojas comerciais. Pena não ter explicado por que motivo usou de tanta exactidão ao apontar o local de colheita destes sáurios. Ou tê-lo-á feito e não sabemos. Suponho no entanto que tais lagartos eram muito especiais, só ali, nos Mosteiros, existindo. Se aparecessem indiferentemente em qualquer ilha, não era preciso sequer indicá-la, o Gabinete da Ajuda sabia que provinham de Cabo Verde, e isso bastava. Cem anos mais tarde, ainda vários catálogos de museus referem a proveniência dos exemplares apenas com o nome dos países.

Para voltar às produções das Desertas, o mínimo que se pode dizer de Feijó, quanto à redacção da lista relativa a material zoológico, é que revela pressa e indiferença. Ao contrário das secções anteriores, intituladas com o topónimo das ilhas, diz o seguinte:

Mais

4. Pássaros - 1 Alma de Mestre
2. Cagarras
1. Garsia
2. Lagartos do d.º Ilheo
Arvores do mar
um caixão de conxas de Sta Lusia

2. Lagartos do dito Ilhéu é o que está escrito, e Bocage interpreta a frase como "Dois Lagartos do Ilhéu Branco", deduzindo que o anexo, por vir após as pedras do ilhéu Branco, se refere só a este. Porém, se assim fosse, tal como as aves, que carecem de proveniência, os lagartos também não precisavam dela. Não sabemos onde foram colhidas as árvores do mar, talvez gorgónias, termo que Feijó usa noutros textos, ou mais provavelmente corais, um dos produtos de Cabo Verde referido por Vandelli, junto com as esponjas. E a seguir temos conchas de Santa Luzia. Não digo que os lagartos não sejam do Branco, sim que a única interpretação legítima para um texto tão desleixado é a de que esses dois lagartos, por exclusão da ilha (de Santa Luzia), só podem provir do dito (Branco ou Raso) ilhéu.

Noutra carta, de S. Nicolau, 27 de Maio de 1788, há mais uma referência a lagartos (Pelo Bergantim S. João Baptista, de que é mestre João Falcão, remeto dois barris com Peixes, Lagartos e Pássaros), na aparência desta mesma ilha. Numa lista datada de 26 de Julho de 1787, em que discrimina o conteúdo das caixas e barris (um herbário de 174 plantas, sementes, esponjas, borboletas, gorgónias, etc.) enviados pela Gallera S.ta Izabel e S.ta Anna, vem a frase muito curiosa a que aludi, e à qual terei de voltar quantas vezes forem precisas: no quinto caixão, Feijó enviava "1 barril com Lagartos dos Most°s na Ilha do Fogo". Já sabemos que a abreviatura corresponde a Mosteiros.

Salvo a indicação de que vai a Santo Antão para recolher lagartos, em carta da ilha do Fogo (1 de Agosto de 1886), não lhes descobri no espólio de Feijó mais nenhuma alusão. Descobri, isso sim, na primeira carta enviada a Júlio Matiazzi (Santiago, 27 de Abril de 1783), em que descreve a pobreza faunística de Cabo Verde, esta conclusão:

...tirados os Peixes, e algumas conchas, e árvores marinhas, não há nada de Pássaros excepto Pardais, que é praga, algum Flamengo nas salinas...

Hoje, o Phoenicopterus antiquorum, como Bolle e Keulemans escreviam, já não existe em Cabo Verde. Se o flamingo cor-de-rosa nidificava em algumas ilhas, como a do Sal, é facto que os Bannerman (1968) acham duvidoso. Em 1897, Boyd Alexander ainda ali viu colónias deles. Feijó, cem anos antes, terá visto um ou outro, em Pedra Lume, na ilha do Sal, em Sal Rei, Boavista, ou nas salinas da ilha de Maio. Nos nossos dias, porém, essa espécie, a que deram o nome da egípcia Fénix, tal como outras, incluindo o M. coctei, já só ressuscita das próprias cinzas na literatura.

Esta carta, dirigida a Júlio Matiazzi, repito que está datada de Santiago, 27 de Abril de 1783, e assinala a chegada de Feijó a Cabo Verde, ilha de S. Nicolau; começa por referir os vinte e cinco dias de viagem incómoda por causa dos frequentíssimos temporais, entre eles um em particular, por alturas da Madeira. Alguns autores consultados, incluindo Bocage, como já vimos, mencionam 1784/1795 como datas-limite da viagem filosófica de Feijó a Cabo Verde. Ignoro qual a fonte a que se reportam, certo é que O. Ribeiro (1954) diz ser errada a data de "dizembro de 1783" de uma carta de Feijó para o ministro Martinho de Melo e Castro, que o mesmo Feijó menciona a abrir a sua Memória sobre a nova irrupção vulcânica do Pico da Ilha do Fogo... (transcrita do manuscrito por O. Ribeiro, não figura nas Memórias da Academia), pelo facto de Feijó só ter chegado a Cabo Verde no ano seguinte. Não, o que contém erro é a fonte destes autores. Feijó encontrava-se em Cabo Verde em Dezembro de 1783, porque já lá estava pelo menos desde Abril do mesmo ano, conforme a carta que mencionei, conservada no arquivo histórico do Museu Bocage (CN/F-1). Alexandre Rodrigues Ferreira também chegou ao Brasil alguns meses depois, no mesmo ano, tal como em 1783 partiu Angelo Donati para Angola, e Manuel Galvão da Silva para Moçambique, de acordo com outra fonte, Costa e Sá (1818).

Maria Estela Guedes. Membro da Associação Portuguesa de Escritores, da secção portuguesa da Associação Internacional de Críticos Literários, do Centro Interdisciplinar da Universidade de Lisboa e do Instituto São Tomás de Aquino. Directora do TriploV. Alguns livros publicados: Herberto Helder, Poeta Obscuro; Eco/Pedras Rolantes; Crime no Museu de Philosophia Natural; Mário de Sá-Carneiro; A_maar_gato; Ofício das Trevas; À la Carbonara; Tríptico a solo. Espectáculos levados à cena: O Lagarto do Âmbar (Fundação Calouste Gulbenkian, 1987); A Boba (Teatro Experimental de Cascais, 2008). Aposentada no cargo de Assessor Principal, no Museu Bocage (Museu Nacional de História Natural - Universidade de Lisboa).