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:::::::::::::::::::::::::::Maria Estela Guedes:::

DOIS CASOS SECRETOS EM CIÊNCIAS NATURAIS
Lisboa, 1994
(Trabalho apresentado para concurso a Assessor, no Museu Bocage. Distribuição restrita)

INDEX
7ª peregrinação: onde se passa para o outro lado do espelho e se vê que, se Alexandre era o Encoberto, Vandelli era o Indesejado

Ou digna de Padre Félix da Silva e Avelar (1744-1828), conhecido por Félix de Avelar Brotero. Filinto Elísio, aliás Padre Francisco Manuel do Nascimento, fugira para França com ele em 1778 ou 1779, há discrepância nas fontes. Por lá viveram doze anos, que Brotero aproveitou para se formar em Medicina, e conheceram pessoas como Lamartine, Buffon e Jussieu. Citemos do Archivo Pittoresco (1851), e não nos espante a omnipresença de Link, unicamente devida ao facto de ter divulgado o recheio do Gabinete da Ajuda no círculo de Napoleão Bonaparte:

Naquele tempo as ciências eram como estrangeiras entre nós. Os jesuítas, que tinham conquistado a supremacia intelectual, comprimiam tudo com danada e reservada tenção. Nas antiqualhas do direito romano e canónico, e nos aforismos dos médicos Avicena e Averróis, se resumiam todas as ciências. Brotero teve por isso de deixar-se conduzir por essa torrente, e começou pelas subtilezas do direito canónico. Falto, porém, de recursos, não pôde passar além do terceiro ano desse curso. Ordenado de diácono, obteve uma capelinha na Sé Patriarcal, e porventura alcançaria logo mais elevada posição na hierarquia eclesiástica, se lhe soprasse o régio favor. Com a reforma da universidade deixara Brotero os cânones, e prepara-se para a vida clerical, em que pouquíssimas vantagens alcançou. Talvez que por isso nem mesmo o seu nome pudéramos comemorar, se não fosse a perseguição que a inquisição lhe moveu, e o obrigou em 1778 a expatriar-se, refugiando e fixando-se no coração da civilização moderna, que já então era a capital da França.

Todas as suas forças se concentraram ali no estudo das ciências naturais, e principalmente da botânica (...). Discípulo dos célebres Vig d'Azyn e de Aubenton, ouviu também as eloquentes revelações de Buffon, Jussieu e Condorset (...). Logo dez anos depois da sua residência na moderna Mênfis, mostrou o resultado do seu estudo no ramo predilecto, publicando em 1788 o Compêndio de botânica ou noções elementares desta ciência, que dedicou ao seu protector e amigo D. Vicente de Sousa Coutinho, senhor de Alva e embaixador português na corte de Versalhes.

Seu Discurso preliminar sobre a origem, progresso, e estado actual da botânica, rico de instrução variada, mereceu os elogios de Link, botânico alemão, sempre severo, e não poucas vezes desfavorável avaliador das nossas cousas.

(...) e Brotero foi escolhido, como professor digníssimo, para reger a cadeira de botânica e agricultura, e inspeccionar as obras do começado jardim botânico, na universidade de Coimbra. Incorporado na faculdade de filosofia em 25 de fevereiro de 1791, para poder exercer o magistério se lhe conferiu gratuitamente, e por mercê especial, o capelo doutoral na mesma faculdade.

(...) No pouco descanso que as férias universitárias lhe consentiam, peregrinava pelas províncias, à cata de raridades botânicas ainda desconhecidas ou mal observadas. As tentativas que antes de Brotero se tinham feito na Flora de Portugal, esta terra felicíssima, esta índia europeia, segundo a expressão do célebre e poético Lineu, tinham sido quase insignificantes nos resultados. A obra de Grysley era miserável. Tournefort, que viajou em Portugal, poucas plantas menciona, e essas sem descrição nem desenho. Domingos Vandelli fraca obra fizera em 1788. Foi Brotero quem satisfez aos desejos do grande naturalista sueco, e preencheu tamanha lacuna na história de tão importante ramo da ciência, publicando em 1804 a Flora de Portugal.

(...) Brotero também foi poeta, o que ainda nenhum dos seus biógrafos disse. Há dele versos latinos que são qualificados de excelentes.

Este doutoramento com mais borla que capelo escandalizou os colegas que, para obterem o seu, muito haviam sofrido. Rebentam rivalidades, invejas e ódios. Para cúmulo, nomeiam-no professor de Botânica e Agricultura, cadeira que nem existia em Coimbra, ligada a matéria à História Natural. Estas honras despoletam conflitos, Brotero passava por um charlatão aos olhos dos lentes seus colegas, e era tido por pessoa azeda, conflituosa, violenta, em alguns casos por questões de dinheiro. Um dos seus conflitos com o reitor da Universidade provém da exigência de pagamento de renda de casa, que a Vandelli, seu antecessor, fora concedida, por não estar disponível a habitação destinada ao director, no Jardim Botânico. Voltaremos decerto ao assunto, agora vamos apenas retomar o fio da ligação Brotero-Link, e lembrar que o autor da Flora Lusitanica era poeta. Sabemos que entre 1797-99 o alemão assistiu às aulas de Botânica de Brotero, e é de crer que, se ambos estavam à mesma data a herborízar em Trás-os-Montes, o mais natural é terem-no feito juntos, combinada a exploração nos intervalos das aulas.

Brotero, que nos primeiros tempos se relacionava bem com Vandelli, seu antecessor quer na direcção do Jardim Botânico de Coimbra quer na do Real Jardim Botânico da Ajuda, mais tarde atacá-lo-ia. É por causa das rendas de casa que o botânico cria dificuldades ao reitor. Tem-se a sensação de que este homem invejava profundamente o italiano, odiava jacobinos (acusará disso o reitor), e se enfurecia por só comer os restos do prato de Vandelli. Vandelli projectara os jardins, os jardins estavam meio construídos, a Brotero cabe uma estufa e uns acabamentos. Vandelli ajudara a preparar as viagens filosóficas de naturalistas como Feijó e Alexandre Rodrigues Ferreira, a Brotero cabe a exploração de Portugal e Trás-os-Montes. Vandelli recebera variadas condecorações, a Brotero cabe uma medalha anódina. Vandelli tinha meios de fortuna, Brotero passa a vida apedir que lhe paguem isto e aquilo e, durante o governo-geral de Junot, recebe uma esmola de Saint-Hílaire a título de satisfação do subsídio que a Junot solicitara. Vem a anedota em Daget e Saldanha, vale a pena contá-la: Brotero está sem dinheiro, os professores não recebem ordenado, então solicita-o e Junot recusa. Saint-Hilaire, apiedado, dá-lhe certa quantia, dizendo que é da parte do general, mas que não agradeça. Brotero agradece a Junot por escrito, o que gera novo conflito.

O que há nisto de relevante? Note-se: por muito anti-francês, e a despeito de acusar outrem de jacobinismo, o que era muito perigoso, Brotero pede e aceita a protecção dos franceses. Mas quando Vandelli fizer o mesmo, será acusado de jacobinismo e deportado para a ilha Terceira. Quem vai lucrar com esta expulsão? Brotero. Veremos que na mesma carta em que acusa o reitor, pede para si a direcção do Jardim Botânico da Ajuda. Recebe-a imediatamente.

Quem podia conhecer Feijó a ponto de o tratar por Feijão? Link ou Brotero? É bem possível até que a alcunha tenha nascido da inspiração do botânico português, meio padre ou meio frade, poeta, frequentador de círculos árcades e amigo de Filinto.

De que conversariam os dois em Trás-os-Montes, acampando entre tojais e rosmaninho? De Feijó ou de feijões? Brotero muito terá ensinado a Link, decerto foi ele quem obrigou o alemão a corrigir nomes e cifras errados em Voyage en Portugal. Link ter-se-á arrependido de ter dado ouvidos a Brotero, quando viu descritas pelo português as suas espécies. E então corou de vergonha, mudou de opinião acerca do Gabinete da Ajuda. Só não aceita retractar-se no que relatara de Vandelli. Porquê?

Porque havia um contencioso entre os alemães e Vandelli. O italiano tinha contratado com Link que este ofereceria ao Gabinete da Ajuda metade das colecções (duplicados, parte-se do princípio) feitas no Brasil, em troca da autorização para explorar essa parte ultramarina. Link pretende escapar ao cumprimento do contrato, crêem alguns que tenha despachado para a Alemanha parte da bagagem a qual, à data em que Junot se encontra em Portugal, é empatada por Vandelli na alfândega. O director do Gabinete da Ajuda devia estar irritadíssimo, os alemães pedem ajuda aos franceses, prometendo metade das colecções a Saint-Hilaire, se Junot as libertasse da alfândega (Daget e Saldanha, 1989). Tudo isto só prova que Vandelli se preocupava com a instituição gerida, e que havia conflitos entre ele e os alemães.

É de crer que Brotero tenha tido acesso ao manuscrito de Voyage en Portugal, de Link e Hoffmansegg, a pedido do próprio Link, em altura de boas relações com O da Barretinha, alcunha de Félix Avelar. Teria introduzido assim na versão francesa o tão espantoso "Feijão". Link sabia que Brotero, para sobreviver em Paris, tal como Filinto, fora tradutor. O da Barretinha não era um bolseiro de Pombal, sim um exilado. Por isso vivia com dificuldades, das traduções e da ajuda do embaixador. Porque nesta época há uma actividade cultural importante por parte de portugueses no estrangeiro, em Paris e em Amsterdão, dos protegidos de Pombal, e dos que por causa de Pombal e do Santo Ofício se haviam expatriado.

Diz-se: Brotero fugiu de Portugal por suspeitas do Santo Oficio. Mas quando os biógrafos investigam com alguma profundidade, declaram que o seu nome não figura em nenhuma lista negra dos inquisidores. Ele suspeitava de que a Inquisição suspeitava dele, só isso. Há outra razão para a fuga: Brotero estudava na Universidade num regime a que hoje corresponde vagamente o de voluntariado. A Universidade era uma comunidade internacional, universal, donde o nome que tem. Digamos, entretanto, só para simplificar, que Brotero era um trabalhador-estudante, apenas ia fazer exames a Coimbra, pois vivia em Lisboa, cantando na Sé Patriarcal para se sustentar. A reforma pombalina decreta que os estudantes têm de frequentar as aulas, termina portanto o regime de voluntariado. Vendo-se impossibilitado de terminar os estudos, é então que Brotero foge com Filinto para França. Teria ele razões para louvar a reforma? Criticou-a acerbamente. Mas já tarde, director do Real Jardim Botânico da Ajuda, tece-lhe os maiores encómios.

O citado viajante alemão H. Link diz de Feijó (ao qual se chama Feijão na tradução francesa) que ele tinha um herbário em pouco bom estado e muitos centos de exemplares de borboletas, embrulhadas em papel, com as designações que lhes davam nas ilhas que explorou, e diz mais que pouco adiantado estava em ciência e que lutava com apertadas necessidades da vida. (Bettencourt-Ferreira, 1892).

Cá está um dos fundamentos satíricos do Feijão, os herbários em mau estado. Brotero tinha uma língua viperina, rezam os cronistas. Se o sermão lhe pertence, como julgo, e a Link só por encomenda, é certo que há aqui uma Vipera muito berus. Lembremos: um dos dez herbários levados da Ajuda para o Museu de Paris, no curso das rapinas de Napoleão, fora obra de Feijó em Cabo Verde. Ou bem que Saint-Hilaire é um naturalista de quinta categoria, para levar o que não presta, ou este sábio naturalista Link, futuro director do Museu de Berlim, debita recado alheio como um papagaio. Como é sabido que Napoleão só queria preciosidades, deduz-se que era precioso o herbário de Feijó, donde tudo o que este manipulável Link escreve ressuma intrigas de Brotero.

Pois como é que um alemão, herborizando pelas serras portuguesas, sabe tanta coisa da vida particular de cada um, incluindo atestados de pobreza e declaração de rendimentos? Ele sabe (?) que Vandelli recebia oito mil cruzados anuais, e escreveu isso no livro. A título de quê? Que interessaria a um alemão quanto ganhava por dentro e por fora o director do Jardim Botânico da Ajuda? Porque Link também sabe que Vandelli fora nomeado assessor da Junta do Comércio. Nessa época há a moda dos impostos, reinvenção da escola fisiocrática, há até sátiras ao imposto único, mas não consta que os cientistas estivessem sujeitos ao regime de exclusividade. Por falar de impostos, olhemos para o dia 27 de Junho de 1787 com os olhos de Beckford:

Ouvi dizer que a Rainha anulou o imposto sobre o bacalhau e, por conseguinte, foi recebida com invulgares aclamações. Mais de mil barcos e barcaças, transformados em caramanchéis de flores e grinaldas, acompanhavam-na com música e foguetes. Seguiu a pé desde o cais de desembarque até ao seu palácio, sem escolta, por entre a multidão, cujo reconhecido entusiasmo atingiu o delírio. Estas genuínas manifestações são raras em Portugal, e a Rainha de tal maneira o sentiu que quase tinha lágrimas nos olhos. Tive pena de ouvir dizer que o príncipe do Brasil continuou taciturno e indiferente no meio deste glorioso entusiasmo.

Deixemos a ictiologia e continuemos com a digressão antropológica: Vandelli acumulava funções, e não esqueçamos a Fábrica de Louças de Vandelles. Mas que tinha o botânico alemão a ver com isso? Porque é que no volume primeiramente editado, Línk escreve "Aula do Comércio" e "oitocentos cruzados" e depois, em volume posterior da obra (não li, mas eis a referência: Voyage en Portugal, fait depuis 1797 jusqu' en 1799, par M. Link et le comte d' Hoffmansegg, trad. fr., 1808), corrige para "oito mil cruzados" e "Junta do Comércio"? (Daget e Saldanha, 1989). Copiou mal o que Brotero lhe escrevinhou à luz da lua, acampando junto às moitas de rosmaninho? Ouviu mal o que Brotero lhe soprou em francês à orelha, em Coimbra, durante a declamação da "Cantata de Dido"? Ou Vandelli tinha sido aumentado? Como é que este indivíduo sabe que as borboletas de Feijó estavam embrulhadas em papel e que os herbários se encontravam em mau estado se, ao descrever o Gabinete da Ajuda, só deu mostras de ter visto o material em exposição? Quem é que lhe disse a ele que Feijó lutava com apertadas necessidades da vida? O próprio Feijó, a quem chama Feijão? E porque é que, ao privar-se de uma das cabeças, corrigindo o que antes escrevera, esta bicéfala águia imperial alemã declara que não pode retractar-se do que acerca de Vandelli escrevera? Se o fizesse, arriscava-se a que Brotero lhe puxasse as orelhas? Brotero já lhas tinha arrancado pela raiz sem a águia alemã dar sequer por isso. Não, Link não se retracta porque antes de assinar um contrato duríssimo com Vandelli, antes de este lhe deter a bagagem na alfândega, já na edição alemã do livro irritara o italiano. Havia passados conflitos entre ambos.

Já agora, a Aula do Comércio dependia da Junta do Comércio, Agricultura, Fábricas e Navegações, e foi um dos estabelecimentos de ensino médio criados pelo Marquês de Pombal.

Sempre em Daget e Saldanha (1989), vejamos então o pouco lisongeiro retrato que, ao contrário de outros, não comportará erratas, a não ser na declaração de rendimentos e nome da instituição que Vandelli assessorava:

On ne saurait lui disputer d' avoir été, dans sa jeunesse, un homme studieux et d' avoir entrepris beaucoup, pour acquérir de Ia célébrité. Pontedera a été son maître en botanique. Sous Pombal il fut appelé, avec un autre italien, Della Bella, de Padoue pour professer à Coimbra; de là il est venu à Lisbonne avec le titre d' inspecteur en chef du Muséum et du Jardin royal de Botanique. II a, en outre été nommé assesseur près de I' Aula do Commercio. Par différents moyens, il a su se procurer un revenu annuel de 800 cruzados. Au reste il est bien arriéré par les connaissances. A peine connaît-il les plantes qu'il a jadis décrites lui-même, il est également mauvais minéralogiste, et ses Mémoires de Chimie, inserés dans les Mémoires de I' Académie, l' ont couvert de ridicule auprès des savants. On pourrait lui pardonner son ignorance, s' il ne se montrait pas, à ce qu' on prétend, envieux et intolérant envers ceux qui sont au dessus de lui par leur mérite. Le second conservateur de ce cabinet est Alexandre Rodrigues Ferreira, dont on ne peut dire autre chose, sinon qu' il a été longtemps au Brésil et qu' il est gouteux.

Ora bem, vale a pena gastar tinta com estes sábios, porque eles acabam sempre por fornecer provas à minha tese, já antes enunciada (1990), segundo a qual Vandelli não prejudicou Alexandre Rodrigues Ferreira, excepto, se quisermos comparar com o tipo de relações estabelecidas entre Bocage e seus naturalistas-colectores, no século seguinte, o quase nada que o director da Ajuda fez para classificar o material recebido, organizá-lo, expô-lo e publicar os respectivos catálogos. Toda a obra de Bocage assenta em colecções remetidas por outrem, ele nunca saiu do gabinete, e ninguém o acusou de roubar o trabalho de Francisco Newton ou José Anchieta. Vandelli pouco publicou neste domínio, já sabemos que se dedicou à área fisiocrática. O seu currículo é quase nada zoológico, e mesmo assim é acusado de plágio e roubo de trabalho do seu naturalista-colector. Se Vandelli tivesse sido prepotente com Alexandre, lhe tivesse invejado o mérito, por algum meio houvesse danificado as colecções brasileiras ou plagiado sem vergonha, Brotero teria coagido a águia alemã a escrevê-lo. Mas está aqui bem espalmado que era impossível Vandelli invejar o mérito de Alexandre, uma vez que o único mérito que os portugueses contemporâneos lhe reconheciam, e se apressaram a transmitir ao alemão, era o de Alexandre Rodrigues Ferreira ser doente de gota e ter andado uns anos pelo Brasil.

Chega a revoltar tanto menosprezo. Alexandre arriscou a vida no Brasil, um dos seus desenhadores por lá morreu, fartou-se de trabalhar, remeteu produtos a que a França soube deitar a mão, mas os seus contemporâneos nada sabem dele, ignoram-no com a mais inacreditável sobranceria, e o único recado que acerca dele mandam para o estrangeiro é que se trata de um pobre diabo que sofre de gota. Perante isto, com que leviandade se vai inventar anos mais tarde que Vandelli, por tanto invejar o pobre diabo, lhe destruiu as colecções, desgostando-o assim de reclamar o lugar de director do Jardim Botânico da Ajuda, ocupado pelo próprio Vandelli? Com que cinismo um Alexandre reclamaria o lugar ocupado por um seu superior? Para Link, Brotero e coevos, a importância de Alexandre era tão pouca, que jamais lhes passaria pela cabeça que Vandelli o roubasse. Que tinha Alexandre digno de ser subtraído? Só se fosse a gota, que depois passou a alcoolismo. Quem vai reclamar esse lugar ocupado é Félix de Avelar Brotero.

A fábula sebastianista de um Alexandre de quem tudo se esperava, e nada conseguira por causa da actuação criminosa de Vandelli, não pertence a esta época, nasce anos depois. A esta época pertence, isso sim, o mito do Indesejado. E é de facto um mito, nascido do ódio ao estrangeiro, dos reinados filipinos, agora da opressão dos franceses. Porém, a messiânica esperança na aparição do Desejado não se relaciona com Alexandre. Alexandre estivera ausente dez anos, aliás era brasileiro. Os desejados, antes e na altura das invasões francesas, são os que a reforma pombalina desprezara ou arremessara para o exílio, como Brotero.

Anos volvidos, esquecidas estas questões, os historiadores dos museus de História Natural criam um outro Desejado, Alexandre, cujos manuscritos são ainda hoje um grande nevoeiro, parte existente no Museu Bocage, parte emprestada em meados do séc. XIX ao Brasil para publicação, e que nem seria publicada nem devolvida. E resta saber como escapou à pilhagem de Geoffroy Saint-Hilaire, ou porquê terá escapado.

Se for preciso outra águia, mais um sábio documento de como em Portugal, em 1796, não havia nenhum naturalista de mérito a pôr fora de competição, nem colecções a fazer tanta sombra a alguém que valesse a pena sabotá-las, donde Napoleão foi um tolo, mais tolo sendo ainda Saint-Hilaire, basta citar o viajante Carrère, do seu capítulo "Ciências":

A física, neste país, está na infância; apenas se sabe que existe uma física fundada em princípios rigorosos, constantes observações, experiências belas e luminosas. Ainda aqui se ignora o uso e a aplicação da física no progresso das ciências e no aperfeiçoamento das artes.

Matemáticos não existem, os geómetras não merecem confiança, os botânicos são desconhecidos, os naturalistas ignorados.

Castelo Branco Chaves, que não esteve para se maçar a rebater tantas opiniões, limita-se a remeter os leitores para o livro de Rómulo de Carvalho, A Física Experimental em Portugal no Século XVIII. Eu lembraria Vandelli que, apesar de ignorar o que é a física, pôs no ar um balão de hidrogénio. E na botânica, apesar do mau feitio, temos Brotero.

Bocage refere a sabotagem das colecções de Alexandre como tradição, que é quase a mesma coisa que mito. Mas com os exércitos de Napoleão em Portugal, tratava-se de liquidar Vandelli e mais nada. É uma guerra política à escala de pessoas politicamente ocultas, nunca de uma guerra científica à escala de pessoas cientificamente reveladas, Alexandre não tinha reputação de "sábio".

Até prova em contrário, vou considerar então que Link, o alemão, a águia imperial que tanto sabe trocadilhar à Nicolau Tolentino como descobrir o que se passa na intimidade fiscal de cada um, foi um joguete nas mãos dos inimigos de Vandelli, deixando-se manipular como uma das marionetas de António José da Silva, o Judeu, em 1739 garrotado e queimado em auto-de-fé pela Inquisição. Inquisição que, lembremos, ainda sobreviverá uns anos à morte do italiano. E talvez valha a pena dizer que os mestres italianos chamados por Pombal já tinham há muito abandonado o nosso país, diz-se que por inadaptação. Talvez fosse o clima, Portugal situava-se à época em latitude tórrida. Franzini, pelos vistos o mais inadaptado, mal chegou a aquecer-se no lugar, daí que só Vandelli apareça depois ligado à criação dos jardins botânicos. Vandelli, mais resistente, devia ser o último a remeter para a zona polar.

Link foi um peão no xadrez dos intriguistas da corte. O que escreveu foi-lhe insinuado por inimigos do estrangeiro, faz parte de uma jogada política que levará o italiano à deportação por jacobinismo. E devia ser, tantos o foram, incluindo portugueses. Em toda a Europa, até chegar a saturação, houve adeptos de Bonaparte. Nem de outro modo se compreende que a tenha conquistado, e instalado na Itália um reino privativo da família. O seduzido é sempre o sedutor. Se um império alastra, deve-se isso não só à força das armas que conquistam, também a cedências políticas de quem faz de conta que é conquistado. Do mesmo modo que para o repelir não bastou um general inglês, foi precisa uma aliança de nações, sem esquecer a francesa. Na parte final do império napoleónico, até os franceses deixaram de ser bonapartístas, e conta-se que a principal razão para isso, quanto à intelligentzia, foi a dúvida dos intelectuais acerca da legitimidade com que o exército havia pilhado o património cultural alheio (Duroselle, 1990). É possível.

Mas o que agora está em causa é que nos nossos dias se continue a tomar Domingos Vandelli pelo bandido que sabotou as colecções de Alexandre Rodrigues Ferreira, quando, na altura em que Link esteve em Lisboa, a persona de Vandelli era non grata por todos os motivos, excepto por perseguir o antigo discípulo. Ninguém, nessa altura, estava sequer preocupado com colecções de peixes e borboletas, manuscritos, índios do Brasil, e ainda menos com a pessoa de Alexandre Rodrigues Ferreira, isolado no castelo da sua melancolia. Nessa altura, a preocupação centrava-se nos franceses, e o que se perseguia eram os jacobinos, como Vandelli, que o foi de certeza.

Maria Estela Guedes. Membro da Associação Portuguesa de Escritores, da secção portuguesa da Associação Internacional de Críticos Literários, do Centro Interdisciplinar da Universidade de Lisboa e do Instituto São Tomás de Aquino. Directora do TriploV. Alguns livros publicados: Herberto Helder, Poeta Obscuro; Eco/Pedras Rolantes; Crime no Museu de Philosophia Natural; Mário de Sá-Carneiro; A_maar_gato; Ofício das Trevas; À la Carbonara; Tríptico a solo. Espectáculos levados à cena: O Lagarto do Âmbar (Fundação Calouste Gulbenkian, 1987); A Boba (Teatro Experimental de Cascais, 2008). Aposentada no cargo de Assessor Principal, no Museu Bocage (Museu Nacional de História Natural - Universidade de Lisboa).