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:::::::::::::::::::::::::::Maria Estela Guedes:::

DOIS CASOS SECRETOS EM CIÊNCIAS NATURAIS
Lisboa, 1994
(Trabalho apresentado para concurso a Assessor, no Museu Bocage. Distribuição restrita)

INDEX
6ª peregrinação: onde se volta a falar de Link, e de como tinha um Feijão na ponta da língua, muito mais próprio de um frade

Diz-se que o Gabinete da Ajuda foi objecto de crítica feroz por parte de Link, com ele Vandelli e também João da Silva Feijó, mas já sabemos que Link não é uma figura singular. Essa águia bicéfala chega ao desplante de tratar Feijó por Feijão, facto que, até prova em contrário, significa que tal sábio naturalista alemão, cuja passagem por Portugal foi de apenas dois anos, a maior parte dos quais a herborizar em locais como Trás-os-Montes, na santa companhia de Brotero, aprendeu como os Apóstolos a falar línguas estranhas.

Como se sabe, na expressão "burro velho não aprende línguas", há algum fundamento biológico. O desenvolvimento das cordas vocais tem limites, a partir de certa altura perdem flexibilidade para inovações fonológicas. Há sons, típicos de umas línguas e noutras inexistentes, que não conseguimos emitir, se os não tivermos aprendido até à adolescência, enquanto o aparelho fonador se adapta às peculiaridades de um dado sistema fonético. Daí a péssima pronúncia de certas pessoas que até conhecem bem, noutros planos gramaticais, a língua estrangeira que usam. Acontece que na palavra "feijão" encontramos precisamente um deles, algo a que podemos chamar um endemismo fonético. Este som é tão exclusivo da língua portuguesa que já houve estudiosos orientais que propuseram não me lembro que programa comum acerca dele, por isso mesmo, por a língua portuguesa ser a única em que sobrevive o som nasal "ão", tido por mantra, sílaba originária, sopro genesíaco criador do mundo, um Fiat lux que no hinduísmo se traduz por "Aum". Em suma, "Ão" e "Aum" seriam o mesmo mantra, o que, para a origem filogenética ou geográfica do lagarto em nada adianta, tendo já imensa utilidade para testar a competência linguística de um alemão que não viveu em menino no nosso país. De resto, se ele conhecia tão bem a língua, por que motivo não escrever nela um livro sobre Portugal? É pelo menos assombroso vê-lo a redigir correctamente tal sílaba, partindo do princípio de que alguma vez a conseguiu pronunciar, o que é muito mais incrível ainda.

Dir-me-ão que Link é um naturalista, e que um botânico tem de saber escrever bem a palavra "feijão" mesmo na língua bosquímana, a qual, apesar de inspirada, não consta que tenha registo de escrita. Mas basta atentar em como chovem erros de ortografia nos vernáculos de tudo quanto é catálogo, e nem os nomes científicos do Macroscincus coctei (Baltasar Osório escreve "Manrroscinco" e "Eupropes") os seus estudiosos redigem correctamente, para se revelar problemático o acerto em endemismos fonéticos. No máximo, Link escreveria "feijao", como todos os estrangeiros, e de preferência verde ou frade, para acompanhar o bacalhau.

De outra parte, espanta ainda que Link use trocadilhos com uma desenvoltura de que só raros nacionais gozam, e ele nem entendia. Porque a alcunha "Feijão" é um achado verbal, tem arte, implica boa capacidade satírica, só pode ter nascido numa arcádia ou salão de literatos. A única literatura com algum mérito saída da pena dos árcades é a sátira, decerto único escape para os constrangimentos impostos pelas duas censuras, nela sobressaindo o poema herói-cómico, uma sorte de epopeia às avessas, em que se usa a grandiloquência para tratar de assuntos insignificantes, como em "O Hissope", de Cruz e Silva. E repare-se que não podemos virar-nos para nenhum lado nesta época sem tropeçarmos em frades, padres, bispos, e hissopes agora. O hissope é a caldeirinha da água benta usada para aspergir os crentes.

Feijão é algo que pertence à tribo dos Elmano Sadino, Corydon, Alcipe, Elpino Nonacriense, Brotero, Filinto, etc, com que se baptizavam a si mesmos os árcades, simplesmente o valor lírico é substituído pelo cómico, que também existia de resto entre eles, caso do Corvo do Mondego, para ridicularizar o Elmiro Tagideo. E o Sadino, no táxone das musas fluviais.

Estas arcádias nascem da província homónima, aludem ao classicismo helénico, aos bosques de loureiros e montes transitados por rebanhos e pastores, o que significa que há no seu cenário uma forte componente botânica. Na época, há uma literatura cientista, e a botânica está na moda. Um dos títulos de Alcipe, Marquesa de Alorna, é justamente "Recreações Botânicas". O emblema da Arcádia Ulissiponense era uma foice e uma podoa, símbolos do hortelão. E a legenda rezava Inutilia truncat, poda as inutilidades, aviso contra a repolhuda e frondosa ornamentação barroca.

Para rematar a área semântica em que se inserem simples como um Feijão, frade ou manteiga, diga-se ainda que uma das poucas inovações literárias que se devem aos árcades é o emburguesamento da temática, a katabase do loureiro à batata (a coroa de louros é olímpica), em resumo, o aparecimento de motivos triviais e quotidianos, comezinhos, em que pela primeira vez na lírica se come algo de material como bacalhau com feijão frade. Antes dos árcades, o único alimento que o sublime consentia à poesia era o mel, o néctar e a ambrósia, próprios das divindades.

Quero com isto dizer que a alcunha Feijão não é casual, define uma época, um ambiente cultural, e até uma personalidade. Um Elmiro Tagideo tem perfil para a criar, mas não Link, um alemão, vindo da pátria do romantismo. Elmiro, amicíssimo de Elmano, é a figura mais extraordinária destes anos, e espelha-os de certo modo, em quantas contradições e paradoxos tinha. Padre, foi acusado de apostasia, de viver com meretrizes, de roubar livros dos conventos para os vender aos alfarrabistas, etc, por isso condenado e, se me não falha a memória, excomungado. Por várias vezes se evadiu, por várias vezes foi condenado por fuga do cárcere. Finalmente, o seu protector, para ver se ele assentava, arranjou-lhe uma arcádia, já na fase final (a partir de certa altura, cada cidade ou bairro tinha a sua), onde se comia, bebia, praguejava, contava anedotas, mas já nada se produzia de meritório em matéria neo-clássica. Elmiro não assentou, era um desvairado, de quem sobrou quantidade alarmante de obra mas nenhum título de referência. O protector insistiu, o padre era um escândalo em Lisboa, só vergonhas, arruaças e malfeitorias, lá lhe conseguiu nomeação para a Real Mesa Censória. Aqui, Padre José Agostinho de Macedo tinha por funções a censura prévia dos livros que se haviam de publicar, entre eles dos poetas seus confrades. E levava aquilo muito a sério, ao apontar o dígito a obscenidades e heresias onde ninguém veria mais que um Zéfiro a perpassar nas pétalas de uma rosa. Amicíssimos, Padre José Agostinho de Macedo e Manuel Maria Barbosa du Bocage pegar-se-iam literalmente à pancada nas sessões da Nova Arcádia. Mas nenhum deles era um árcade de gema, ambos são pré-românticos. Elmiro Tagideo, autor de Os Burros, entre mais uns quinhentos títulos talvez, da índole mais diversa, desde a fescenina à pedagógica, é considerado o primeiro jornalista português em termos de modernidade. Tinha um público enorme e certo, que apreciava a sua oratória, o discurso popularízante e a agilidade com que argumentava.

Teria porém este homem tresloucado, violento, apaixonado, alguma boa relação com Link, ou péssima com o colector do M. coctei, a ponto de agredir este com um Feijão passado à águia bicéfala por debaixo do pano? Parece duvidoso. O retrato que fiz de Elmiro aplica-se entretanto a personagem similar na época, um célebre botânico, poeta, padre, conflituoso, agressivo, não muito escrupuloso e apaixonado.

O termo resulta de compressão fonética de Feijó-João, aludindo também, de certeza, a qualquer particularidade fradesca, fisionómica, e à sua faceta de botânico. Feijó-João herborizava, por isso assenta-lhe bem o Feijão. Mas nomes destes são naturais em lusos que o conheciam, não em estranhos. Por consequência, até apurar se Feíjão/Feijó é criação original ou cópia laboriosa de catálogo alheio, vou admitir que Link tem uma sensibilidade literária em matéria de língua portuguesa digna de um Bocage ou Filinto Elísio.

Maria Estela Guedes. Membro da Associação Portuguesa de Escritores, da secção portuguesa da Associação Internacional de Críticos Literários, do Centro Interdisciplinar da Universidade de Lisboa e do Instituto São Tomás de Aquino. Directora do TriploV. Alguns livros publicados: Herberto Helder, Poeta Obscuro; Eco/Pedras Rolantes; Crime no Museu de Philosophia Natural; Mário de Sá-Carneiro; A_maar_gato; Ofício das Trevas; À la Carbonara; Tríptico a solo. Espectáculos levados à cena: O Lagarto do Âmbar (Fundação Calouste Gulbenkian, 1987); A Boba (Teatro Experimental de Cascais, 2008). Aposentada no cargo de Assessor Principal, no Museu Bocage (Museu Nacional de História Natural - Universidade de Lisboa).