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:::::::::::::::::::::::::::Maria Estela Guedes:::

DOIS CASOS SECRETOS EM CIÊNCIAS NATURAIS
Lisboa, 1994
(Trabalho apresentado para concurso a Assessor, no Museu Bocage. Distribuição restrita)

INDEX
3ª peregrinação: laissez faire, laissez passer a genuína filosofia das viagens filosóficas


Voltando à primeira digressão, acerca do alvo político dos estudos do território ultramarino, refira-se que para dar conta deles se fundou a Academia Real das Ciências de Lisboa, quando Padre Martinho de Melo e Castro já era ministro de D. Maria I, e se iniciou a publicação das revistas da Academia. Cabe aqui entender o que seja filosofia nesta época, já que em cada uma e para cada autor abarca ideias diferentes. No século das Luzes, a concepção que vigora entre os iluministas portugueses é anti-aristotélica, pelo menos em teoria, já que o aristotelismo se insinua e permanece oculto, de resto em perfeita revelação, quer no reformismo árcade, quer na filosofia natural de Lineu. Mas deixemos de lado estas aporias e passemos aos factos, pela pena de Verney, no "Verdadeiro Método de Estudar" (1746), obra em que se propõe a democratização do ensino, mediante a criação de uma escola em todas as ruas grandes, se defende que as mulheres, tendo as mesmas capacidades intelectuais dos homens, devem por isso frequentar as escolas, se critica a retórica e o ensino das línguas pelo quase exclusivo instrumento gramatical, etc:

Eu suponho que a Filosofia é conhecer as coisas pelas suas causas; ou conhecer a verdadeira causa das coisas. Esta definição recebem os mesmos Peripatéticos, ainda que eles a explicam com palavras mais obscuras. Mas, chamem-Ihe como quiserem, vem a significar o mesmo, v.g.: saber qual é a verdadeira causa que faz subir a água na seringa, é Filosofia; conhecer a verdadeira causa por que a pólvora, acesa em uma mina, despedaça um grande penhasco, é Filosofia; outras coisas a esta semelhantes, em que pode intrar a verdadeira notícia das causas das coisas, são Filosofia.

Nota-se que Filosofia se identificava com ciência determinística. Quanto à ciência, identifica-se com economia. Estamos num mundo mecanicista, racionalista, mercantilista, de irrupção da física newtoniana. Burguês, diriam outros, o que é verdade. O que a própria realeza perdera em aristocracia, ganhara-o em penicos de prata. Aliás, mais uns anos e, via guilhotina, em França perderá mesmo a cabeça.

Temos assim que o primeiro tomo das Memórias Económicas (1789) é dedicado pelo estrangeirado duque de Lafões à "Senhora", nos seguintes termos:

Nele verá Vossa Majestade que longe de ter-se esquecido a Academia de dar execução às suas Reais Intenções, cada vez com mais zelo, e maior eficácia se tem empregado em promover aqueles Estudos, de que mais pronta utilidade se pode seguir à Pátria, e ao serviço de Vossa Majestade.

Da exploração em Cabo Verde, restam quatro artigos de Feijó, publicados justamente pela Academia Real. Nenhum deles trata de Ciências Naturais em moldes de ciência pura, todos se aplicam, sim, ao que podia ter pronta utilidade para a Pátria: Memória sobre a Fábrica Real do Anil na ilha de Santo Antão (1789); Ensaio económico sobre as ilhas de Cabo Verde, e Memória sobre a Urzela de Cabo Verde, ambos de 1815. A Memória sobre a última erupção vulcânica do Pico da Ilha do Fogo... (em 1785) foi incluída como apêndice num trabalho de Pimentel (1857).

Como o nome indica, a tendência das Memórias Económicas era económica, abria as páginas aos autores imbuídos das ideias da escola fisiocrática, que defendia a livre concorrência, necessidade de reformar a agricultura, promover a indústria, e entregá-la, bem como ao comércio, à iniciativa privada. É na qualidade de fisiocratas que Feijó e Vandelli apresentam os seus artigos nas Memórias da Real Academia das Ciências. Vandelli estava ligado ao Laboratório Químico da Direcção das Reais Fábricas das Sedas e Águas Livres, emprestava-lhe reagentes e instrumentos do Gabinete da Ajuda, estudava a composição e qualidade da água, o sal de Cabo Verde, as produções portuguesas e das Conquistas, como se dizia, defendia a primazia da agricultura sobre a indústria, falava das fábricas, da ferrugem das oliveiras, da púrpura e do anil, da lã, do queijo e da manteiga, estudava a maneira de industrializar o enxofre produzido pelos vulcões de Cabo Verde. Em resumo, só se ocupa de assuntos e produtos que se revelem de utilidade imediata.

É um tanto despropositado virem mais tarde acusá-lo de não ter publicado nem flora nem fauna lusitânica, quando, primeiro, isso é falso; segundo, as prioridades portuguesas da época não eram cientificamente puras; terceiro, se há uma "Flora Lusitânica" utilizável, que não seja a de Brotero (1804), ainda hoje, em 1994, não há nenhuma Fauna Portuguesa. Completa, ainda não há. Cem anos mais tarde, ninguém levantará a voz para criticar Bocage por não ter publicado um catálogo da fauna portuguesa, e ainda hoje tal permanece no reino das fantasias sebastianistas.

Finalmente, como o lagarto de Cabo Verde nenhuma utilidade imediata tinha para a pátria, muito pouca utilidade imediata retirei da leitura dos seus artigos. Vandelli não dá sinais de ter prestado atenção aos sáurios que Feijó lhe enviou. Já a orcela terá melhor sorte, por razões óbvias.

A urzela ou orcela será a única planta mencionada pelos biólogos do séc. XIX para o habitat do M. coctei, e só no ilhéu Branco. Já no séc. XX, B. Osório referirá as gramíneas. Eis como Feijó (1815), mostrando já conhecer o "Systema Naturae" de Lineu, descreve esse líquen (Rocella tinctoria):

É a verdadeira Urzela uma erva fruticosa, fibrosa, macia, roliça, flexível, de cor cinzenta, sem folhas, e dividida em ramos, coberta de certas proeminências alternativamente espalhadas; é conhecida em o sistema de Lineu com o nome de Lichen Rocella.

Da Rocella tinctoria extraía-se uma substância que, depois de mergulhada em urina podre, produzia uma tinta fixa de belo carmesim, usada para tingir panos. Feijó, apesar de descrever o processo, diz que havia nele segredos muito bem guardados pelos tintureiros. Esta planta tinha sido o mais importante produto económico do arquipélago, logo a partir da sua descoberta. Tornou-se depois exploração privativa da Coroa. Dos mercados estrangeiros, os mais importantes eram Londres e Amsterdão. Naturalmente, também se destinava à Real Fábrica das Sedas do Rato.

Os escravos deixados em Cabo Verde, e que viriam a constituir o núcleo inicial da população mestiça, ocupavam-se em parte grande na sua colheita. Forneciam urzela as ilhas de Santo Antão, S. Vicente e S. Nicolau, no grupo a que pertence o habitat do M. coctei, e ainda as da Brava, Sal e Santiago. Nem Carreira (1968-69) nem os documentos por ele reproduzidos aludem às Ilhas Desertas (Santa Luzia, Branco e Raso), o que certamente indica que eram pouco ou nada frequentadas, pelo menos com esse fim. Vandelli (1789) também as não refere, quando, depois de dizer que

A Urzela, que nasce nos rochedos do mar, é o principal produto que se tira destas Ilhas, porque nasce sem cultura; mas agora tem decaído muito o seu consumo e preço, suprindo a ela outras espécies de Líquenes,

acrescenta, em nota infrapaginal:

Estas Ilhas de Santiago, Fogo, Maio, Boavista, Sal, e Brava antigamente subministravam Escravos, Açúcar, Arroz, Algodão Ambragis, Dentes de Elefante, Salitre, Pomes, Esponjas, e Ouro, que os seus habitadores iam buscar no continente de África.

No correr dos tempos, a actividade veio a esmorecer, até ser abandonada, quando a planta começou a rarear, a vender-se de mistura com outros líquenes e a dar produto de má qualidade. Feijó conta que se deve ao excesso de cabras (de várias ilhas, algumas desabitadas, se vendiam anualmente duas e três mil para refresco dos navios) uma das razões do seu desaparecimento. As cabras, cujos descendentes se tornariam selvagens, comiam toda a urzela que encontravam.

Maria Estela Guedes. Membro da Associação Portuguesa de Escritores, da secção portuguesa da Associação Internacional de Críticos Literários, do Centro Interdisciplinar da Universidade de Lisboa e do Instituto São Tomás de Aquino. Directora do TriploV. Alguns livros publicados: Herberto Helder, Poeta Obscuro; Eco/Pedras Rolantes; Crime no Museu de Philosophia Natural; Mário de Sá-Carneiro; A_maar_gato; Ofício das Trevas; À la Carbonara; Tríptico a solo. Espectáculos levados à cena: O Lagarto do Âmbar (Fundação Calouste Gulbenkian, 1987); A Boba (Teatro Experimental de Cascais, 2008). Aposentada no cargo de Assessor Principal, no Museu Bocage (Museu Nacional de História Natural - Universidade de Lisboa).