Maria Estela Guedes*

Trabalho apresentado no projecto “As ciências modernas à descoberta do mundo”,
de Ana Luísa Janeira (Maio de 2006)

CARTA SOBRE O “MÉTODO” EPISTOLAR
Ana Luísa Janeira, minha querida amiga –

Temas: exibicionismo e sedução

O meu tema devia retomar as explorações em Cabo Verde do naturalista luso-brasileiro João da Silva Feijó, agora a propósito dos lagartos gigantes, Macroscincus coctei, endémicos dos ilhéus Branco e/ou Raso, pois os mais antigos exemplares que se conhecem da espécie, incluído aquele que ainda se conserva no Museu de História Natural de Paris, são atribuídos às colheitas de Feijó no arquipélago cabo-verdiano, em finais do século XVIII.

Daniel Hofer, um herpetologista que estuda Caecilidae, anfíbios de distribuição equatorial e tropical, escreveu-me a dizer que os Macroscincus coctei tinham sido redescobertos na ilha de Santa Luzia, habitat referido apenas pelo naturalista francês Chevalier, em princípios do século XX, e salvo erro por Francisco Newton, numa das suas cartas em linha no TriploV – referências sem exemplares em museu, note-se. Daniel Hofer sugeria ou desafiava-me a mencionar o facto no meu artigo sobre eles, publicado em 1990 n’O Escritor, e agora em linha no TriploV. Bocage, ao descobrir o habitat cabo-verdiano da espécie, em meados do século XIX, fala de “segunda ressurreição”, para caracterizar a transcendência da naturalística aparição daquilo que, em meu íntimo, creio ser aparição de caracteres, dominantes e recessivos – o que implica intervenção humana, com introdução de híbridos. Em suma, a terceira aparição, além de reforçar o carácter não natural da presença de tais sáurios num arquipélago vulcânico (como foram lá parar, se não nadam?), parece até dar mais razão a Bocage do que a mim, inclinando perigosamente as aparições para o território do sobrenatural... Os lagartos ressuscitaram em Santa Luzia (porque alguém lá os enterrou, não é verdade?) depois de a parte mais influente dos zoólogos ter dado a espécie como extinta nos tempos da Primeira Grande Guerra... Eu dou os lagartos como desaparecidos do Raso em 1916, de acordo com um documento da época, transcrito nas Memórias do lagarto cabo-verdiano ( O Escritor , texto já referido), em que se fala de cães deixados no ilhéu pelos pescadores, os quais teriam dizimado os lagartos.

Antes de os abandonar à sua sorte, devo dizer que o habitat envolve uma extensa paródia, que cobre vastos territórios no continente. O facto de terem reaparecido – em ossos, nas fezes de gatos bravos – em Santa Luzia, não é literariamente extraordinário. Eles foram citados para o continente, para as ilhas Mascarenhas, e, em Cabo Verde, para diversos locais. Os italianos que, na peugada de Peracca e de Leonardo Fea, têm uma estranha ligação afectiva com eles, referem a ilha de S. Vicente como um dos seus habitat - Andreone, F.; Gavetti, E. (1998) - Some remarkable specimens of the giant Cape Verde skink, Macroscincus coctei (Duméril & Bibron, 1839), with notes about its distribution and causes of its possible extinction, Italian Jornal of Zoology, 65: 4, 413-421. Sim, devem ser os grandes lagartos a que Chevalier chamou “chinel”.

Tarda entretanto o artigo referido por Hofer em que a terceira ressurreição se anuncia à comunidade científica, decerto com as pancadinhas de Molière, eu não quero atrasar-me ainda mais a entregar o trabalho para o seu projecto, Ana Luísa, de forma que vamos tangenciar esse problema e este outro: aqui, em Britiande, não tenho livros nem acesso a bibliotecas, só posso socorrer-me da Internet, o que é curto para fontes e aparato bibliográfico. De outra parte, falta-me o tempo para mim, o TriploV absorve-me completamente; por fim, sobre os lagartos já publiquei, em papel e no ciberespaço, mais do que o suficiente, basta fazer uma pequena pesquisa no Google e logo se vê o resultado. Daqui a nada eles aparecem nas Canárias, como de resto já Greeff profetizou no século XIX, e então voltamos a conversar.

Mas minto ao garantir que me falta o tempo, retirada agora na aurea mediocritas rural, a gozar a aposentação em contacto directo com uma natureza que o não é para as Ciências Naturais. Campos agrícolas e jardins, tudo o que foi transformado pelo homem, é Naturarte. Esse é o grande escândalo dos lagartos: eu atrevi-me a dizer que a sua presença em Cabo Verde é fruto do engenho humano, e isso, ó horror!, é o mesmo que acusá-los de serem tão artificiais como as trutas e os caniches. E note, Ana Luísa, que eu nem acredito em aparições sobrenaturais, o que seria muito mais escandaloso ainda. Não, mãozinha de Vandellis ou de Feijós, de Newtons ou de Grays, isso, sim. Não é nada de muito difícil nem extraordinário, trata-se apenas de introduzir espécies, e as espécies introduzidas são sempre fruto de selecção humana, para apuramento de raças adaptáveis. Já Francis Bacon, em finais do século XVI, fala destes métodos. O texto vem numa edição francesa da “Nova Atlântida”, com o título “Magnalia naturae…” (Maravilhas da Natureza…). Título comprido, traduzi o texto, há-de estar em linha na apresentação do projecto “Naturarte . Jardins” e em “Francisco Newton, cartas da Nova Atlântida”. Não precisamos de bibliografia, basta esse prodígio da electrónica chamado Mr. Google.

Mas voltando à minha falta de tempo: veja por hoje, Ana Luísa, como são os meus dias: passei a manhã a semear feijões e a plantar tomates e pepinos com a minha mãe e um trabalhador; ocupei-me um pouco desta carta e anotei, no cabeçalho, dois dos temas a tratar, relativamente ao “método” epistolar – o exibicionismo, isto por parte do autor de uma mensagem privada aberta a terceiros, e a sedução, se não for aberta ao público; claro que tudo isto se complica quando se trata de correspondência literária, mas a minha intenção é tocar apenas alguns aspectos da epistolografia de objectivo científico; fiz eu o almoço; depois do almoço, deu-me uma soneira tal, que fui para a cama e só acordei da sesta quando a rapariga que nos vem limpar a casa me chamou; dei um passeio até à vila a pretexto de tomar café e levantar dinheiro; passei pelaloja de artigos mecânicos a perguntar se já tinham chegado os fogareiros pequenos, redondos, para cumprir as dietas prescritas pelo médico, que proibem açúcar e gordura; de regresso a casa, reguei as plantações hortícolas, as laranjeiras, limoeiros e o jardim – quase tudo o que sem método e sem geometria (um dia escreverei um artigo sobre a condição do “parecer bem” exigida a um horticultor, o que implica regularidade dos regos e valados, rectângulos de perfeita esquadria, e sementes deixadas a número certo de centímetros de distância umas das outras, não só para facilitar o crescimento e a rega, mas para os outros não se rirem de nós, não criticarem a falta de estética, pois a beleza é essencial em qualquer tipo de trabalho, mesmo científico – a obra, para merecer crédito, tem de ser sábia, forte e bela), quase tudo o que sem método e sem estética neoclássica (geométrica) semeei, repito, nasceu: alfaces, ervilhas, espinafres, etc., o que quer dizer que a estética do acaso e da desordem românticos também dão fruto; nos intervalos, fui actualizando o TriploV e respondendo aos emails; depois sentei-me na varanda a observar as aves, já conheço meia dúzia de espécies; andavam os Turdus merula na vinha, fui ver se os conseguia fotografar; nada; agarrei nos binóculos porque ando há dias atrás de uns passaritos cinzentos e delgados e ainda não sei o que são, mas não os vi; vi, gordos e pesados, pardais; e, mais esbeltos, os verdilhões do belo canto, mais elegantes ainda, as top modelHirundo rustica, e vi piscos, fofinhos, arredondados, com o seu flamante peito inchado.

Estes estudos feitos na Naturarte, apesar de não dispensarem a consulta de três ou quatro guias de campo que trouxe de Lisboa, com imagens nas quais se evidenciam os caracteres discriminantes das espécies, absorvem-me e encantam-me. Para eles tenho tempo de sobra, gosto de exercitar a mente em actividades dotadas de um lado lúdico: a ornitologia implica algo como resolver charadas, exige paciência para esperar, sem fazer ruídos nem movimentos, que a ave se aproxime ou apareça, e exige também que se anote tudo o que se observa nos famosos cadernos de campo. Porquê? Porque a informação obtida tem um teor mínimo de bits, digamos assim, e essa minimalidade é rejeitada pela memória. Ficamos convencidos de que no momento oportuno poderemos abrir a carteira e sacar dela esses valores, mas não estão lá. Desvaneceram-se como fumo. Que terei eu visto fazer aos verdilhões para pensar que tinha de incluir essa observação na ficha deles, no TriploV? Não sei, esqueci-me, não apontei nada, não tenho caderno de campo, em geral incluo as observações na ficha dos animais, logo que as faço, e ponho tudo em linha. O TriploV é o meu caderno de campo, aliás a minha biblioteca, para não dizer a minha obra aberta e em processo.

Para escrever por obrigação, enfim, para escrever um artigo muito científico para o seu projecto – para esse tipo de trabalho, óptimo para valorizar um currículo e etc., para isso já não é o tempo… O Alessandro não pode sequer ler esta carta, se lhe desse para escrever a tese de doutoramento seguindo o meu “método” epistolar, ai!.. Então, não será tanto a falta de tempo, mas de oportunidade, porque há tempos para tudo: um tempo para imitar e seguir as directrizes dos mestres, pois disso depende o nosso futuro, e um tempo para sermos nós os mestres. Ao mestre compete uma liderança intelectual e prática, relativa às artes e ofícios nos quais justamente é mestre. Falo do que me diz respeito, Ana Luísa… Já por duas ou três vezes hesitei na acção a tomar, dei parte das dúvidas ao meu Pai Mestre, e ele, em vez de as desfazer, mostrou este outro caminho: “Você agora é Mestre!...” Como tal, tenho a responsabilidade do meu executivo e legislativo… Como tal, o meu magistério é não exercer magistério nenhum – como do método diria João Mota, o mais importante pedagogo teatral português, cuja obra assenta numa massa de conhecimentos, experiências e estudos ímpar, e que teve mestres de fama internacional, como Peter Brook – deixando os outros livres para procederem como melhor acharem, mas há um conjunto de informações úteis que vou transmitindo, isso a que alguns reagem, comentando que, comigo, aprendem sempre alguma coisa. Óptimo, esse é o correcto procedimento: fornecemos as instruções indispensáveis para que o outro erga a sua construção, mas não dizemos como, nem o quê, há-de ser ela. Cada um deve cultivar dentro de si a liberdade que levou Antoni Gaudí a conceber a sua extravagante Sagrada Família. Sem liberdade interior, de pouco adianta o conhecimento, não passamos de araras e chimpanzés.

Ficam assim os lagartos para ocasião mais oportuna, e para esta opto por comentar a estrutura epistolográfica e aspectos concomitantes de um dos textos de que me ia servir, o “Itinerário Flosófico”, de Feijó, cuja ficha electrónica, na Biblioteca Nacional, é a que costumo usar e transcrevo, e nela se pode ler que a epistolografia era considerada um método:

" Itinerario flosofico [sic] que contem a rellaçaõ das ilhas de Cabo Verde disposto pelo methodo epistolar” / dirigidas ao Illº e Exmº Senhor Martinho de Mello e Castro pello Naturalista Regio das mesmas ilhas Joao da Sylva Feijó -1783”. [26]f.,[51],7p., enc. : 2 mapas estatísticos color. ; 26 cm. - Ms. - Mapas estatísticos dos habitantes e produtos da ilha do Fogo . - Inclui uma lista de plantas. Secção de manuscritos da Biblioteca Nacional, Lisboa.

Boa parte deste manuscrito foi publicada e comentada pelo Luís Arruda e por mim, no volume de actas de um congresso de tema atlântico, com o título “As Ilhas e o Brasil”, publicado na Madeira em 2000 . Aliás, já publiquei vários trabalhos baseados na filosofia natural de Feijó. O que elaborei com o Luís Arruda, “João da Silva Feijó, naturalista brasileiro em Cabo Verde”, está editado também no TriploV.

A nossa atenção centrou-se de preferência na geologia, pois Feijó apresenta o mais remoto relato de uma erupção na ilha do Fogo que se conhece. E fá-lo nu m conjunto de cartas. Feijó, encarregado do estudo científico das ilhas de Cabo Verde, logo no início da primeira justifica o uso do método epistolar para apresentar os resultados da investigação, escrevendo ao ministro, e espero não atraiçoar o seu discurso ao decifrar-lhe a má ortografia e ao dar-lhe forma moderna:

“Para esta relação não acho, Exmº Snr, outro método mais acomodado que o epistolar, entretanto que o descanso de um corpo fatigado, em o leito, e o sossego de um espírito turvado, com tantas, e tão multiplicadas ideias, possam algum dia fazer ver a V.Exª para meu crédito, uma história mais pura, e mais circunstanciada destas ilhas, confiado no patrocínio de V.Exª e na sabedoria de quem me instruir e conduzir” .

Folha 3 do “Itinerário Flosófico”, na qual Feijó defende o método epistolar

No meu opúsculo “Lápis de Carvão” (Apenas Livros, Lisboa, 2005), também falei deste manuscrito de Feijó, e tive até oportunidade de mostrar que as flores do segundo termo do título, “flosófico” (de flos, floris – flor), se auto-reafirmavam, em processo de redundância, nas cinco flores desenhadas pelo naturalista, no frontispício do manuscrito, enquadrando no seu portal o nome do destinatário das cartas.

Se bem que Feijó só acidentalmente se lhes refira, são no entanto tão importantes como o vulcanismo as diligências empreendidas pelo seu superior em Cabo Verde, o administrador das ilhas, D. Frei Francisco de S. Simão, para fundar nelas uma “plantação de Letras”. E algo mais ainda há entretanto a dizer, a começar justamente pela estrutura do texto: cartas.

Cartas.
A epistolografia é uma técnica, ou “método”, para seguir as pisadas de Feijó, de antiquíssima estirpe, que obteve especiais favores dos humanistas, interessados na permuta de conhecimentos com os seus congéneres estrangeiros. Não se poderá dizer que a carta seja um género literário como o romance ou o poema, pois existe todo o tipo de géneros literários escritos sob a forma de cartas, desde as “Cartas Portuguesas”, a “Carta de Pero Vaz de Caminha”, até ao “Werther”, que é um romance epistolar, tal como as “Liaisons Dangereuses” e as “Lettres Persanes”. Há cartas em prosa e em verso. As cartas servem para narrar, descrever, transmitir informação científica, e servem naturalmente para amar. Não é absolutamente necessário que os amorosos vivam longe um do outro para se cartearem, podem viver na mesma casa e ainda assim a mensagem escrita é-lhes indispensável como fruição ou sofrimento, visto que o amor não vive só de gozo, a dor é inerente ao prazer, podendo ser também independente dele. O sofrimento irrompe como personagem psicológica que domina tudo e pode levar à morte, aliás esse é o percurso do jovem Werther, personagem criada por Goethe. O romance induziu muitos jovens a um suicídio que para nós, hoje, é incompreensível, porque não somos os destinatários das cartas. Somos leitores, mas as nossas condições epocais diferem das românticas. Hoje sabemos que os heróis românticos não morriam de amor, morriam de tuberculose. Por isso, hoje, antes de nos suicidarmos como Werther, teríamos de saber primeiro que causas científicas fizeram com que uma história de amor levasse adolescentes a atirarem-se de pontes abaixo, com o “Werther” no bolso.

Algo sobressai do que escrevi, Ana Luísa: a carta age em nós com mais intensidade do que o romance – não sei de romances que, como as cartas escritas por Werther, tenham agido emocionalmente junto dos leitores ao ponto de porem termo à vida! E estamos a lidar com a ficção. Será a ficção mais forte do que a vida real? E que coisa é essa que age sobre os nossos sentimentos, na carta? Só pode ser a sua estrutura simples de conversa entre A e B, sem ninguém a ouvir, sem mais mensageiros. Também na oração nos dirigimos a Deus directamente, sem o clero como intermediário: “Pai Nosso, que estais no céu…” Aos membros do clero, confessamo-nos. Enfim, confessávamo-nos. Agora a confissão, com o seu rol de pensamentos e actos reprovados e reprováveis, passou para o psicanalista. É isso o que existe na carta: alma, Psique a pentear-se, entrevendo Eros ao espelho. E essa é uma visão proibida. A relação interpessoal acciona o inconsciente e provoca um transfert, eventualmente com efeitos curativos.

No caso de Feijó, que escreve cartas em diversos registos, e tem vários interlocutores reais no material dele de que disponho, o “Itinerário Flosófico” e as cartas a Júlio Matiazzi e a Vandelli conservadas no Arquivo histórico do Museu Bocage (Museu Nacional de História Natural da Universidade de Lisboa), no caso de Feijó, dizia, a carta serve a diversos fins, e um deles, explícito nas cartas a Mattiazzi, é o de exprimir profundo sofrimento causado pelo abandono de uma mulher, o governo de S. Majestade, D. Maria I. Mattiazzi é uma hipótese de salvador e um motivo de escape à solidão. Já no “Itinerário Flosófico”, o interlocutor, apesar de ministro, não é visto ainda como salvador, pois Feijó ainda não caiu em desgraça. Ele é visto como mecenas, portanto o remetente desenvolve uma estratégia de sedução para se manter no posto e nas boas graças do ministro.

A estratégia de sedução é simples, desde que não tenhamos pela frente um desses esotéricos indivíduos que só pensam no seu próprio aperfeiçoamento: para nos valorizarmos aos olhos de alguém, temos de encontrar pontos de referência acima dos quais nos possamos elevar – precisamos de ficar convencidos de que o destinatário do afecto nos atribui melhores notas do que àqueles que teremos de desvalorizar aos seus olhos. Não é, Ana Luísa? Nós subimos na consideração de A, ou julgamos que sim, se afastarmos um rival a que chamaremos B. Para afastarmos B do caminho, dizemos mal dele. Isto não quer dizer que a estratégia resulte, pois o interlocutor é bem capaz de reagir mal, pensando: “Quem é este aprendiz de sapateiro que julga confeccionar melhores sandálias que o seu mestre?”, quer apenas dizer que é uma estratégia simples para pessoas simples.

Feijó, nomeado secretário do governador geral, para se impor na categoria de secretário e daí subir de posto, quem sabe?, vai criticar o governo das ilhas. Com razão ou sem ela, o seu papel será o de acusar de mau governo o seu mais directo superior, D. Francisco de S. Simão. E como a administração das ilhas está entregue a outros prelados, o resultado geral da crítica exprime-se por um forte anti-clericalismo. Vejamos, em registo de língua actual, extractos de cartas em que o bispo é objecto de censura, atribuindo-se-lhe até sinistras intenções:

“Uns montes áridos, vermelhos, cortados de inumeráveis vales, terminados pela parte do mar em elevadas, escarpadas rochas a pique, foi a primeira ideia que concebi desta ilha [S. Nicolau] logo que se me representou do mar. Saltei em terra, e dali fui conduzido a Povoação, distante deste porto boas duas léguas pela ilha dentro, onde fui hospedado pelo Exmº Bispo destas ilhas, D. Fr. Francº de S. Simão, a quem eu tive a honra de ser recomendado por V. Exª, o qual tinha ali a sua residência.”

“A demora que aqui tive, que foram 2 meses, dar-me-ia muito lugar a comunicar agora a V.Exª algumas observações filosóficas desta ilha, e remeter ao Real Gabinete amostras de suas produções, se não se antepusesse a este meu desejo a sinistra intenção daquele prelado, a cujas ordens vim cometido, o que deixo para quando se me oferecer ocasião, pois tentando eu dar logo por ali princípio, me não quis permitir, dizendo-me que havia dar princípio pela ilha Brava, ao que o respeito, a subordinação me fez obedecer, em prejuízo meu, pois assim quis a minha fortuna para que mais tempo andasse por uns países tão desgraçados como este.”

“Passados os 2 meses, a 16 de Abril parti em companhia do dito prelado para Santiago, com escala pela ilha do Maio, onde no dia seguinte, 17, surgimos no porto do Pau Seco, e ali se demorou o dito Bispo no interesse das suas madeiras, fragmentos de uma nau dinamarquesa, que ali deu à costa, nos baixos chamados do Galeão, que ficam a Norte da ilha, cuja madeira ele havia arrematado como quis à Fazenda Real, com não pouco prejuízo da mesma.”

“Não posso deixar de reflectir aqui neste lugar a lástima que me causou aquele espectáculo de tanta riqueza perdida: tanta madeira, aduelas de tonéis, ainda sem trabalho; 60 e tantos mastros reais de 5 e mais palmos de diâmetro, inteiros, e novos, grande número de vergas, peças inumeráveis de cabo, ferro, chumbo, 100 e tantos barris de pez, grandes carretas de peças de artilharia, etc., amontoados por aquele areal ocupavam uma boa légua de distância, excepto o que dizem estar espalhado por toda aquela baía, como caixões compridos, que mostram ser de armamento, artilharia; peças de amarras, etc., que a negligência daqueles habitantes, e do feitor da Fazenda Real ali deixa perder.”

[…]

“Passados os 8 dias, partimos para Santiago, e em 6 horas surgimos em o porto da Vila da Praia, onde estavam fundeadas umas poucas de naus holandesas e inglesas: desembarcámos pela tarde, e logo tomámos o caminho da cidade onde chegámos pelas 8 da noite.”

“Ali nos detivemos, enquanto se passavam os dias santos da Páscoa, em que o Prelado, em razão do seu ministério, tinha obrigação de ali assistir; passada a última oitava recebeu o dito Prelado a posse do governo interino destas ilhas, em que Sua Majestade tinha feito a honra de o promover.”

“Recebida a posse, e deixando em seu lugar para o governo da ilha o oficial de maior patente, partimos para a Ribeira de Prata, sítio junto ao Tarrafal, que ele havia escolhido como o mais saudável daquela ilha para a sua residência e fundação de um seminário que devia servir para educação da mocidade destas ilhas” [...].

“Num lugar muito desabrido, muito cálido, estéril, doentio, e deserto, onde só se vêem rochas escarpadas, povoadas de inumeráveis cabras bravas, e chusmas de macacos devoradores e destruidores de todos os frutos que ali se pudesse produzir: eis aqui, Senhor, em poucas palavras, a verdadeira descrição do belo sítio que este prelado, contra o parecer de todos os principais da ilha, tem escolhido para uma plantação de Letras, desprezando então um dos sítios mais aprazíveis, mais frescos e mais férteis daquela ilha, qual é a Ribeira da Trindade, de que a mesma Mitra é senhora.”

 

Mas quais são afinal os elementos que permitem falar de método, em relação à epistolografia? Muito poucos. A carta pressupõe correio e selo, um meio de transporte e uma chancela, isto na sua exterioridade. O que não é pouco, Ana Luísa: ainda aqui temos a relação interpessoal, a mensagem e o mensageiro. Um soneto não mobiliza estes agentes, não é uma mensagem balizada pelo destinador Fulano e pelo receptor Cicrano. A fulanização, numa relação a dois, é que implica a dinamite: a carta, mesmo fictícia, apela para a pessoa vivente e por isso leva o leitor a identificar-se com o destinatário. Ou com o destinador, depende.

Interceptar esse correio é um fenómeno que abre o método a inúmeras consequências, conhecidas de Feijó, que decerto abriu correspondência que lhe não era dirigida e cuja correspondência para a metrópole foi aberta antes de entregue aos destinatários, ou ficou pelas mãos dos espiões, em Cabo Verde.

Na interioridade, o método exige um destinador e um destinatário, alguém que se dirija a outrem com algo no género: “Meu querido amigo”. Assinar com nome verdadeiro, apôr à carta informações verdadeiras como lugar e data de redacção, já são elementos secundários, que podem até ser transgredidos. Parte da correspondência de Francisco Newton, por exemplo, carece de toda e qualquer espécie de referência objectiva que permita saber aquilo que é essencial num naturalista, para correcta e completa identificação dos exemplares remetidos: onde estava ele quando redigiu a missiva, e em que data a redigiu. Da falta de referências contextualizadoras até à falsificação, vai um passo. Esse passo é dado por Francisco Newton ao fornecer duas séries de datas e de deslocações para a mesma exploração de Bioko (antiga Fernando Pó), inconciliáveis. Uma delas é falsa? Bom, ambas o podem ser. O cenário que se rasga diante dos nossos olhos, ao vermos Newton abrir o jogo com o seu destinatário, e chefe, é um abismo. Sentimo-nos escorregar por ele abaixo sem nada que nos apare a queda epistemológica, excepto ele mesmo, Francisco Newton, com a sua rede camaroeira… Porque Newton não é um mentiroso. Tal como Feijó disse tantas verdades, Ana Luísa! Os brasileiros sabem mais disso do que eu, porque têm por lá a bibliografia. Até vaca chamou à rainha! E eu, há anos, quando li isso, não acreditei, pensei que alguém quisesse denegrir Feijó. Nunca li o que ele escreveu n’ O Patriota, mas imagino as frescuras. Sei por portas travessas que dos lagartos gigantes disse que eram moles e lesmáticos (moluscos), tinham escamas de peixe e eram bons para fazer sapatos, e uma série de outras alarvidades, tendentes a fazer dos sáurios uma miscelânea de moluscos+mamíferos+aves+peixes+Systema Naturae integral. Tenho preguiça de ir ver às cartas do Newton, está lá a citação. Quem transcreve é o António Carreira, esse, leu. E eu pensei primeiro que era impossível, por amor de Deus!, não! Coitado do Feijó, até depois de morto… Sim, porque o bispo foi assassinado e ele queixa-se de que também a ele os despóticos de Cabo Verde o queriam assassinar. Pobre Feijó! E o Link, que lhe chama Feijão? Malditas gralhas, malditas! Malfadado Link, malfadado António Carreira! Acreditar que o desgraçado Feijó pudesse ter chamado vaca a D. Maria I, ou ainda pior, que pudesse ter cometido igual despropósito na caracterização dos bentos e sacratíssimos Macroscincus coctei, que não ressuscitaram ao terceiro dia mas estão a ressuscitar pela terceira vez, cruzes, canhoto, credo!, Ana Luísa!

Não há mais nada a reger o método epistolar, só isto: A escreve a B como se falasse com B. Método extremamente flexível por isso, permite começar com um assunto e acabar com o que não estava previsto, não tocar sequer nos anunciados, consente que no seu interior se transite por diversos registos, emocionais e de discurso, porque o regime da carta, se não for o rígido, porque ritualizado ofício, imita o discurso oral, fracamente ritualizado, e aberto a todas as contingências de erro, confissão, ocultamento e excurso. Ora bem sabemos como a conversa é como as cerejas, ou não sabemos, imaginamos apenas que no interior de uma carta tudo pode acontecer. Por exemplo, a abrupta interrupção, porque a mãe chama para o almoço. Depois dele, como retomar o fio à meada? Já não se retoma, a seguir virá algo diferente. Ou podia acabar aqui a carta, deixar a frase a mei……………………………………………..

Em princípio, as cartas não se publicam, são mensagens interpessoais de carácter privado. Em princípio, tanto é privado o seu conteúdo, que o Código Penal prevê uma pena pela violação da correspondência particular. Em princípio, é crime ler sem autorização uma carta da qual não somos o destinatário. De outro modo: porque não é nada extraordinária a violação da correspondência, foi preciso legislar sobre o assunto. Ou ainda: porque é importante para destinador e destinatário manter sigiloso o conteúdo da sua correspondência privada, foi preciso contemplar o sigilo como um dos direitos do cidadão.

Em princípio, claro, pois a epistolografia, como o romance ou a poesia, é literatura, destina-se portanto a publicação. Além disso, é um recurso literário muito usado pela ciência no passado. Por exemplo, a descrição original da tartaruga-lira, hoje Dermochelis coriacea (Vandelli, 1761), foi publicada sob a forma epistolar, em Itália, e daí enviada a Lineu, que inclui a nova espécie no Systema Naturae. Não vou meter-me em excursos sem a bibliografia, direi apenas que este facto deu lugar a tanto embróglio, que só em finais do século XX, anos oitenta, ficou definitivamente estabelecida a autoria. Como a Ana Luísa sabe, na minha peça de teatro, “Ofício das Trevas” (Apenas Livros, Lisboa, 2006), que tem uma componente muito forte de História da História Natural, uma das cenas é constituída pela ladainha, em latim, dos mil e um nomes e autores da tartaruga de Vandelli. Tal só foi possível porque no Systema Naturae deve ter ficado nublada a circunstância de existir uma carta publicada anteriormente com a descrição da lira, e então a autoria passou a atribuir-se a Lineu, e na sequência, já só inteligível como auto-paródica, a quase todos os grandes herpetologistas.

Como digressão a este pícaro episódio direi no entanto, contrariando a tendência de alguns intelectuais e naturalistas para omitirem o autor e a data de descrição que fazem parte do nome completo da espécie, ou mesmo para negarem direitos de autor à descrição, alegando que as espécies não pertencem aos autores, como digressão direi que sim, que as espécies pertencem aos autores, e que obras com alguma responsabilidade, como catálogos botânicos e faunísticos, não deviam amputar os nomes científicos nem omitir a sinonímia. Vamos ver.

De um lado, o nome completo da espécie é uma referência bibliográfica: se alguém pegar no nome “Dermochelis coriacea (Vandelli, 1761)” e fizer pesquisa no Google, descobre o artigo de Vandelli com a descrição. Não há só valor científico no nome e no texto original em que a espécie se descreve, de resto o valor científico dilui-se com o tempo, raros especialistas lêem textos antigos. O seu valor é histórico. Não é possível fazer a história de uma espécie sem as várias descrições. Por fim, há direitos de autoria, com certeza, e a responsabilidade inerente. Não confundamos animais com espécies. Concordo que os animais não pertencem aos zoólogos, e não vou recordar que o Génesis garante que os animais foram dados por Deus aos homens. Sim, mas as espécies não são os animais. As espécies pertencem aos autores. Tanto não se confundem com animais, e muito menos com populações, que pode nem existir população correspondente a dada descrição de espécie. E não é por estar extinta, é porque nunca existiu. Quando um ornitólogo inexperiente cria nova espécie por ter recebido 3 fêmeas de uma espécie de aves de que só conhecia os machos, por exemplo, está a criar um nome vazio, que não se aplica a nenhum grupo animal. E há muitos casos mais de espécie com autor, mas sem população - espécies sem animais dentro, para melhor esclarecer a diferença entre ambos.

As espécies são textos, categorias mentais, obras de arte, e os animais, em princípio, são os referentes desses conjuntos de signos. Ora por todos os motivos, práticos, estéticos e éticos, é absolutamente necessário que haja naturalistas a cobrarem direitos de autor, essa é uma forma de se manifestarem responsáveis pelas suas criações.

Voltemos porém às 7 cartas de Feijó que constituem o “Itinerário Flosófico”: saberia ele que a sua correspondência com o ministro viria a ser publicada? Eis um campo aberto à reflexão que daria para um livro.

Um discurso restrito a um destinador e a um destinatário, se cai na mão de terceiros, deixa-nos a nós, terceiros, na situação de voyeurs. O mesmo é dizer que na carta existem comportamentos exibicionistas. Se for uma carta amorosa, eles fazem parte dos rituais de cortejamento, são instrumentos de sedução, à maneira dos machos de tantas espécies de ave, cujas penas longas e coloridas caem, quando já não são necessárias, após o acasalamento. Não se tratando de cartas típicas das paradas nupciais, como no caso de Feijó, que não parece interessado em acasalar com Martinho de Mello e Castro, os mesmos dispositivos existem, com fins divergentes. Nada de mais natural do que Feijó tentar cair nas boas graças do seu mecenas, proeza que parece não ter tido sucesso, pois não só o ministro lhe censurou com dureza a incompetência (com razão ou sem ela é caso para analisar noutro lugar), como a dado passo Mattiazzi, seu outro interlocutor no Gabinete da Ajuda, o proíbe de pedir auxílio ao ministro, isto porque, poucos anos após a sua chegada a Cabo Verde, o governo se esquece de Feijó, deixando-o sem ordenado e sem sapatos, entregue à sua sorte mendicante.

Ana Luísa, acho que já chega de carta naturalística luso-brasileira, mudo para o que nos diz respeito a nós: então não temos alojamento em Mora? O Pedro de Andrade queria ir com os amigos, mas a Fernanda Frazão diz que os hotéis das redondezas estão cheios por causa de uma festa qualquer da Vodafone! Fico em sua casa, no monte, em Montemor, e vamos e voltamos? Entretanto vou ver se consigo marcar consulta em Lisboa com um endocrinologista, e a seguir vamos até Trancoso, aos encontros de arte e ciência promovidos pelo Emanuel Dimas Pimenta. Depois recolho à base, preciso de escrever a comunicação para o colóquio alquímico. Em última instância, escrevo uma carta, a terceira. A primeira foi para Mora, tem o Acácio Barradas por destinatário. Essa é uma carta perigosa. O Acácio é um velho amigo, jornalista aposentado, mas trabalha, publicou há pouco um livro sobre o presidente-poeta de Angola, Agostinho Neto, e é presidente do Sindicato dos Jornalistas. Posso escrever terceira carta, mas a quem? A escolha do destinatário é tão importante como aquilo que queremos dizer e o meu tema é o da subversão na “Flora Portuguesa” de Gonçalo Sampaio.

Beijos e até breve, domingo saio para Lisboa.

Estela

Britiande, Abril-Maio de 2006

 
*Escritora. Directora do Triplov. Investigadora no CICTSUL. Assessora no Museu Nacional de História Natural da Universidade de Lisboa, aposentada)