teatro

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Prefácio
Cena. Personagem. Drama
Nota bibliográfica

A BOBA

Primeira insónia
Segunda insónia
Terceira insónia
Despertador

 

MARIA ESTELA GUEDES
A Boba

Colecção Teatro no Cordel, nº 4
Apenas Livros Lda, Lisboa, 2006

Prefácio

AUTO-RETRATO DA BOBA
ou A NOITE E O MEDO
por Eugénia Vasques*

1ª parte

Estela Guedes, poeta, investigadora e pintora envia-me de Britiande, lugar de ressonâncias medievas, mais uma peça para fazer crescer, e levedar, o mito, também ele medieval, dos amores de Pedro e Inês, no ano logo a seguir ao das comemorações do 650º aniversário da morte de Inês de Castro. O último texto teatral criado por uma dramaturga, entre nós, Fiama Hasse Pais Brandão, fora Noites de Inês-Constança, publicado, justamente, em 2005, uma peça-tese em três actos e um epílogo que discute, em sede de filosofia poética, a natureza do amor e a natureza, diversa, de Homens e Mulheres.

A proposta dramática de Estela Guedes de medieval tem (porque tem) alguma coisa. Mas, irónica contraparte ao mito inesiano, oriunda da era da Tecnologia, esta “volta” da poeta de Britiande é, como as Trovas à Morte de Inês de Castro, do rotundo Garcia de Resende, um exercício para uma voz – um monólogo, portanto – , dividido, com o humor surrealizante que caracteriza a autora de Ofício das Trevas e Lagarto do Âmbar, em três partes inquietas: Primeira Insónia, Segunda Insónia, Terceira Insónia e um Despertador. O conteúdo das “partes” tece uma interpretação e (parcial) desconstrução do mito com recurso ao apoio, não despiciendo, de alguns confrades: Agustina Bessa Luís, António Cândido Franco, António Ferreira, Bocage, Fiama, Resende, Herberto Helder, Camões e até com a validação de cronistas e historiadores como Fernão Lopes ou o Conde de Sabugosa, Gondin da Fonseca ou o inesperado tergiversador Alfred Poizat.

Mas, para além das citações mais explícitas, o bragal desta anã monologante é tecido ainda com fios que ligam A Boba quer a uma directa memória romântica (para além do título, reconhecível, a tensão entre o grotesco e a linguagem escatológica da Miguéis e o sublime do mito que abocanha conduzem este exercício literário para o paradigma do drama burguês que Victor Hugo teorizou, reinventou e dirigiu), quer a uma indirecta contaminação com a estética literária medieval (na mistura da prosa com o verso, por exemplo), que Anrique da Mota representou em texto sobre Inês a que Jorge de Sena atribuiu o papel de “elo da transformação literária de Inês, entre Garcia de Resende e António Ferreira. . .[,] elo de ligação entre Resende e as crónicas e a utilização que as contaminações castelhanas. . .farão de Inês.” (1).

2ª parte

Apesar de ser um texto desmistificador, A Boba mantém do mito inesiano alguns traços distintivos relevantes. No entanto, a Miguéis é, acima de tudo, um “produto reciclado” – mais uma vez irónica auto-justificação da sua natureza de tecido com “remendos”, em artístico (e manual) patchwork, de outros textos, de crónicas, de ficções e de comentários --, que, por via de ser memória “alternativa” aos ficheiros oficiais, ela que só alcança (como eu) as notas de rodapé da História, se volve numa narradora, num veículo de fala, numa comentadora-rapsoda que, ao modo romântico, dá voz aos excluídos da Terra, aos freaks do Universo: os Anormais e os Monstros.

Esta é a vertente social deste texto que define, entretanto, a responsabilidade da Palavra na Política e aproveita a voz da Boba para fazer as contas, à maneira do teatro de circunstância vicentino (veja-se, aliás, o eco de Maria Parda em falas da Miguéis), com o tempo e a nossa (e da autora) circunstância, sobretudo no que diz respeito à liberdade de expressão e aos artistas, seus usufrutuários.

3ª parte

A matéria do mito privilegiada neste texto teatral é, sobretudo, aquela matéria não-prima, matéria expelida e recolhida pelo azedume da anã coisificada nas "notas de rodapé" da História. Ele são os ciúmes que D. Afonso IV teria do filho – o tal complexo de Édipo invertido tão ao gosto de Maria Miguéis –, ele é o pavor que Pedro tinha do pai violento – causa da sua gaguez e da sua incontinência na cama –, ele é a pedofilia de Afonso IV e a sua homossexualidade, que terá sido, segundo as insinuações de Miguéis (e de Fernão Lopes!), partilhada por D. Pedro, ele é, finalmente, as mentiras e a infidelidade de D. Pedro e a sua cobarde fuga de Coimbra para não ter de assistir ao assassinato de Inês.

A anã Miguéis, objecto de prazer e de conforto de Afonso e Pedro e objecto de posse senhorial no decorrer da História de Portugal, vangloria-se, permanentemente, de ser a VERDADEIRA causa próxima da tragédia de Inês de Crasto! Confidente das vergonhas e falsetas de todos os heróis mitificados, Maria Miguéis tem ciúmes da beleza da galega. E por isso instiga Afonso a cornear o filho e, depois, a assassinar Inês, como instiga Pedro a cornear Inês e, após a morte desta, encena o seu cortejo fúnebre e o beija-mão tétrico.

Foi também ela, segundo se gaba, quem aconselhou Pedro na localização dos túmulos no Mosteiro da Batalha (motivo que inspirou um acto teatral pouco ou nada conhecido de Claude Henry Frèche). Ela que, segundo conta, não mais abandonou Pedro viúvo, mesmo quando amancebado com Teresa Lourenço, a mãe do futuro D. João I, mesmo quando aquele se dava a práticas selvagens de vingança e justicialismo!

E assim, pelos tempos fora, da Monarquia à República, da Carbonária aos Ficheiros da Net, passando certamente pela Inquisição, é ainda a anã Maria Miguéis quem, de cambalhota em cambalhota, de chiste em chiste, denuncia a surdez lírica de Pedro para, do mesmo passo, pronunciar a pior de todas as denúncias: a impossibilidade poética do mito de Pedro e Inês, ou seja, a inexistência da própria Poesia.

Abaixo a Miguéis!

Lisboa, 21 de Novembro de 2006.

 

BIBLIOGRAFIA DE REFERÊNCIA

Frèche, Claude Henry, “Inês ou O Túmulo Imperfeito: 1 Acto”, Lisboa, Teatro-Estúdio do Salitre, 1948; dactiloscrito no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Inspecção dos Espectáculos: Comissão de Censura, 7 pp..

Sena, Jorge de, “Inês ou Literatura Portuguesa desde Fernão Lopes a Camões, e História Político-Social de D. Afonso IV a D. Sebastião, e Compreendendo especialmente a Análise Estrutura da Castro de Ferreira e do Episódio Camoniano de Inês”, Estudos de História e de Cultura, Lisboa, Revista Ocidente, 1967, pp.122-621.

Vasconcelos, Carolina Michaelis de, A Saudade Portuguesa: Divagações Filológicas e Literar-Históricas em volta de Inês de Castro, Porto, Renascença Portuguesa, 1914.

Vasques, Eugénia, “Fiama-Inês, A Estátua Jazente (Ut Pictura Mors)”, Noites de Inês-Constança de Fiama Hasse Pais Brandão, Lisboa, Assírio & Alvim, 2005.

Vieira, Afonso Lopes, Inês de Castro na Poesia e na Lenda, Conferência Realizada no Claustro do Mosteiro de Alcobaça, Seguida do Soneto dos Túmulos, Programa, s/l, s/e, 1913.

(1) Cf. Sena, p. 608.

*Professora da Escola Superior de Teatro e Cinema (antigo Conservatório Nacional), teatróloga.

Britiande, Outono de 2006
estela@triplov.com
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