MARIA ESTELA GUEDES
Foto: José Emílio-Nelson

Beleza tocada em José Emílio-Nelson
Originalmente publicado na revista Incomunidade de Março de 2017, em:
http://www.incomunidade.com/v54/art.php?art=71

Santa, perfeito Verbo, Língua, Santa,

Santa que fala pelos cantos,

E é tocada pelas sombras andando ao sol.

[…]

É bífida, a Língua

 

José Emílio-Nelson, “O olho intrusivo”

Beleza tocada, o mais recente livro de José Emílio-Nelson, Obra poética, em subtítulo, reúne as obras que publicou entre 1979 e 2015. São quase 740 páginas de prosa e verso muito difíceis de criticar, por diversa ordem de razões, a mais óbvia por se tratar de literatura fescenina e iconoclasta. Ela ataca alguns dos pilares da nossa cultura, como a moral sexual. Não é sequer fácil de citar, mas daremos o exemplo breve e mais laboratorial do que animal da página 381, centrado nuns fetos conservados em frasco num museu, coligido n’A festa do asno (apesar de o bestiário implicar mais os cães – incluídos os cães do Senhor, ou dominicanos - do que O burro de ouro de Apuleio) :

Na frascaria das prateleiras altas,

Na penumbra da sala,

Uns fetos em gosma floresciam pelo brilho da chapa em latim que os
          legendava.

Um crucifixo, verdete.

E um dístico que nos alivia.

(Quem chora a morte a cão que renasce?)

 

Não devíamos considerar a originalidade um caráter exclusivo do autor que assim classificamos. José Emílio-Nelson é um dos poetas mais originais que conheço a escrever na nossa língua, apesar de se integrar numa linhagem que vem desde autores clássicos, passa pelas cantigas de escárnio, por Rabelais, Bocage, por Sade (e por Munch e Masoch entre outros, n’ A palidez do pensamento, pp. 101-111), pelos frades escrevinhadores d’ O Palito Métrico, etc., e chega ao Abjeccionismo, onde se encontra, ou onde eu lhe promovo encontro, com o também originalíssimo João César Monteiro. Esta lista pode ser alargada às centenas de nomes e até ao anonimato dos decoradores de catedrais, com as suas figurinhas obscenas a acompanharem nas gárgulas o escorrimento da chuva ou  desenharem o portal para o divino. Centenas de nomes é nada se pensarmos que só no presente e só em Portugal devemos ter no ativo mais de três mil escritores. Boa pergunta para a secretária da Associação Portuguesa de Escritores: - Quantos são os sócios da APE?

 

Então, começando por João César Monteiro, o maldito cineasta que encarnou a pessoa de Deus, e informou que o filme Branca de Neve tinha sido criado do ponto de vista do olho de Georges Bataille, dizia ele que não era abjecionista, sim abominacionista. Qual a diferença? O abjecionista é o surrealista português, é aquele que revela os segredos da abjeção mundana, nele como em José Emílio-Nelson, antes de Abril de 74, a ditadura da moral de sacristia e a censura política, em primeiro lugar. Hoje há outras sacristias e outros motivos de sátira política. Transgride-se a moral profana para combater a abjeção. O abominacionista vai mais longe, é sacrílego: não se limita a decorar com figurinhas obscenas o arco exterior das portadas de igreja, entra no espaço destinado à oração e transgride o que pertence ao divino. Será José Emílio-Nelson um transgressor da coisa divina? É-o tanto, pelo menos, quanto os padres que rezavam a missa do asno em tempos medievais, dentro das igrejas, zurrando em vez de falarem. O burro é um dos animais do bestiário deste poeta e acabámos de citar um segmento d’ A festa do asno.

 

Voltemos aos números: poucos têm esta coragem. Mais poderosa ainda do que a censura é a auto-censura, o medo de as nossas palavras nos fazerem perder família, amigos, emprego, tudo o que nos oferece sofá e televisor para o conforto dos dias. Neste aspeto, José Emílio-Nelson não usa sofá nem otomana, trepa ao trono da soberana elevação a que uma expressão como “tragi-comédia” talvez assegure inteligibilidade. Vejamos: os frades e outros estudantes que escrevinharam os versos macarrónicos d’ O Palito Métrico assumem postura de Zé-povinho, calçam baixo coturno, como os populistas, de modo a garantirem ao discurso escatológico a sua verdade humana. Como se só o povo dissesse e conhecesse palavrões e o que lhes corresponde em coisa e ato. O autor de Beleza tocada, e já o título merece exegese, coloca-se, com a Beleza, no trono celeste e é lá, no alto da Alta Cultura, que toca a maçã tocada, ou é lá que se aproxima do Sol, como Ícaro,

 

Sem beleza, sem apear-se,

Dardejante com

Asa da descida,

Asas de cinabre,

Asas de perjúrio,

Asas resplandecentes. Se acerca do Sol.

(Em A coroa de espinhos, p. 269).

 

Daqui um tremendo contraste entre a elevação da Estética e a peniqueira matéria aqui e ali defecada.

 

Da outra parte, há muitos, para voltarmos à questão estatística da originalidade. Por exempo, Herberto Helder teve um séquito de seguidores, a dado passo metade dos poetas imitava-o e a outra metade fugia disso, como tão bem notou Pedro Proença no meu segundo livro, A obra ao rubro de Herberto Helder. Talvez por isso Herberto Helder tenha fugido nos últimos livros para o extremo oposto, o iconoclasta, o sacrílego, o da beleza tocada – como da fruta com sinais de podre - mas não chegou a tempo de constituir obra que a legitimasse como natural perante a censura alheia, que se dececionou com a perda do paraíso da luxuriante floresta de metáforas.

 

Em suma, o grande poeta  HH não foi assim tão original, não por defeito dele mas por excesso dos outros. A originalidade não consiste só em sermos únicos mas também em nos deixarem, por pudor ou barragem de arame farpado, ficar sós com a nossa própria idiossincrasia. Quando os predadores se apropriam das nossas características pessoais, a beleza pode ficar tocada e então começam a desenvolver-se aí  as larvas da academia.

 

As dificuldades que criam barragem não só à leitura como à crítica, e por isso à predação, são muitas em José Emílio-Nelson, aponto só duas ou três: o vocabulário raro, erudito, arcaico – “(De amor) velido”, e ainda mais, na glosa de trovadores, pp. 36-37 - ou científico – (“A vagina é /Galbo gálbula gálbano”), em “Nu inclinado”, p. 72; a sintaxe não normativa; a decomposição da palavra em elementos para desenhar figuras, à maneira da poesia visual, e neste caso tomemos por referência o modo como o título da obra se dispõe graficamente na capa dura, alertando entretando para a circunstância de este exemplo não ter por autor o autor, sim o artista gráfico:

B

EL

EZ

ATO

CA

D

A

As primeiras letras tornam-se sílaba e esta transforma-se em palavra, Bel. Bel, antigo deus ainda resistente em topónimos como Belmonte, foi transformado em Demónio pelos padres, quando a cristianização soterrou as culturas primitivas. É Belzebu, o Senhor das Moscas, é ele quem toca a beleza, é a sua larva que faz apodrecer a maçã do Paraíso. Os sátiros abundam nesta lírica, a assegurar-lhe a valência satírica, ou mesmo satânica, como se lê logo na abertura do livro Extrema paixão, de 1984, com o poema intitulado “Satan”, e como vemos logo em epígrafe, quando o autor descreve a Santa Língua, tocada e bífida, como a da serpente do Paraíso.

 

José Emílio-Nelson encripta voluntária e involuntariamente, do primeiro lado porque isso o diverte, faz parte do prazer de criar, do segundo porque o léxico pressupõe uma encriptação, aquela língua bífida das serpentes (e outros répteis) - o segredo é-lhe conato, tal como a revelação. Daí os dicionários, certo? Ninguém domina integralmente o código ou, para lembrar Umberto Eco, é por sentirmos prazer nisso e querermos dominar códigos que elaboramos listas, listas como os índices de Beleza tocada, mais uma vez da responsabilidade do artista gráfico e não do autor. Mas o que é um poema senão uma lista de versos, uma lista de frases ou uma lista de palavras? Porém, não é Umberto Eco, sim Georges Bataille, a mais profícua bengala para nos atrevermos a calcorrear o labirinto da poesia deste autor, cujo fio de prumo mede exatamente a distância entre o Mal e o Bem.

 

Georges Bataille formulou a ideia de que existe uma relação estreita entre o Mal e a Morte e entre estes e o erotismo, a cujo clímax, de resto, atribui o descritivo de petite mort. Pequena morte, diz o autor de La Littérature et le Mal. A poesia de José Emílio-Nelson, conduzida por estas pulsões, desafia o leitor, força-o a tomar partido moral, entre o Bom e o Mau, e ético, entre o Bem e o Mal. O leitor defende-se, eu defendo-me, deixando aos juízes deste mundo a pena ou o prémio, e consentindo à Literatura aquilo de que ela precisa: liberdade para morrer, se tal deseja, de tanta transgressão e de tanta beleza.  

 

Mas atenção: o prazer e a beleza das palavras não é transponível para a realidade, do mesmo modo que alguém certa vez negou que fosse desejável uma diva com “colo de marfim”. Creio mesmo que a designação de “erótica” é inapropriada para classificar certa arte, como a literatura de Sade, a filmografia de João César Monteiro, a poesia de José Emílio-Nelson e até os contos de Luiz Pacheco. O conceito de erotismo merecia revisão. Se erótico é aquilo que dá prazer e apela para o desejo sexual, então não é disso que estivemos a tratar. A transgressão, o sado-masoquismo, a visão da matéria fecal, a tortura, o MAL, enfim, não fazem parte do sex-appeal de ninguém, sim do seu contrário. São sex-repellents. 

 

O leitor rende-se: é demasiado normal para sentir prazer adentro do que as sentenças significam. E provavelmente é esse sex-repellent o maior embate da arte contra a abjeção da vida, é esse caráter que toca a Beleza com sinal repulsivo, e daí o seu poder de combate ao que merece ser banido da vida.

JOSÉ EMÍLIO-NELSON
BELEZA TOCADA
Lisboa, Abysmo Ed., 2016
Índice antigo

Maria Estela Guedes (1947, Britiande / Portugal). Diretora do Triplov

Membro da Associação Portuguesa de Escritores, da Sociedade Portuguesa de Autores, do Centro Interdisciplinar da Universidade de Lisboa e do Instituto São Tomás de Aquino. Directora do TriploV.

LIVROS

“Herberto Helder, Poeta Obscuro”. Moraes Editores, Lisboa, 1979;  “SO2” . Guimarães Editores, Lisboa, 1980; “Eco, Pedras Rolantes”, Ler Editora, Lisboa, 1983; “Crime no Museu de Philosophia Natural”, Guimarães Editores, Lisboa, 1984; “Mário de Sá Carneiro”. Editorial Presença, Lisboa, 1985; “O Lagarto do Âmbar”. Rolim Editora, Lisboa, 1987; “Ernesto de Sousa – Itinerário dos Itinerários”. Galeria Almada Negreiros, Lisboa, 1987 (colaboração e co-organização); “À Sombra de Orpheu”. Guimarães Editores e Associação Portuguesa de Escritores, Lisboa, 1990; “Prof. G. F. Sacarrão”. Lisboa. Museu Nacional de História Natural-Museu Bocage, 1993; “Carbonários : Operação Salamandra: Chioglossa lusitanica Bocage, 1864”. Em colaboração com Nuno Marques Peiriço. Palmela, Contraponto Editora, 1998; “Lápis de Carvão”. Apenas Livros Editora, Lisboa, 2005; “A_maar_gato”. Lisboa, Editorial Minerva, 2005; “À la Carbonara”. Lisboa, Apenas Livros Lda, 2007. Em co-autoria com J.-C. Cabanel & Silvio Luis Benítez Lopez; “A Boba”. Apenas Livros Editora, Lisboa, 2007; “Tríptico a solo”. São Paulo, Editora Escrituras, 2007; “A poesia na Óptica da Óptica”. Lisboa, Apenas Livros Lda, 2008; “Chão de papel”. Apenas Livros Editora, Lisboa. 2009; “Geisers”. Bembibre, Ed. Incomunidade, 2009; “Quem, às portas de Tebas? – Três artistas modernos em Portugal”. Editora Arte-Livros, São Paulo, 2010. “Tango Sebastião”. Apenas Livros Editora, Lisboa. 2010. «A obra ao rubro de Herberto Helder», São Paulo, Editora Escrituras, 1010; "Arboreto». São Paulo, Arte-Livros, 2011; "Risco da terra", Lisboa, Apenas Livros, 2011; "Brasil", São Paulo, Arte-Livros, 2012; "Um bilhete para o Teatro do Céu", Lisboa, Apenas Livros, 2013; Folhas de Flandres,  Lisboa, Apenas Livros, 2014; dir. CadeRnos SuRRealismo Sempre, na Apenas Livros. Nessa coleção, "Surrealismo incertae sedis, 2015".

ALGUNS COLECTIVOS

"Poem'arte - nas margens da poesia". III Bienal de Poesia de Silves, 2008, Câmara Municipal de Silves. Inclui CDRom homónimo, com poemas ditos pelos elementos do grupo Experiment'arte. “O reverso do olhar”, Exposição Internacional de Surrealismo Actual. Coimbra, 2008; “Os dias do amor - Um poema para cada dia do ano”. Parede, Ministério dos Livros Editores, 2009. Entrada sobre a Carbonária no Dicionário Histórico das Ordens e Instituições Afins em Portugal, Lisboa, Gradiva Editora, 2010; «A minha vida vista do papel», in Ana Maria Haddad Baptista & Rosemary Roggero, Tempo-Memória na Educação. São Paulo, 2014.

TEATRO

Multimedia “O Lagarto do Âmbar, levado à cena em 1987, no ACARTE, Fundação Calouste Gulbenkian, com direcção de Alberto Lopes e interpretação de João Grosso, Ângela Pinto e Maria José Camecelha, e cenografia de Xana; “A Boba”, levado à cena em 2008 no Teatro Experimental de Cascais, com encenação de Carlos Avilez, cenografia de Fernando Alvarez  e interpretação de Maria Vieira.