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Maria Estela Guedes

Chão de Papel

Prefácio de Nicolau Saião

Lisboa, Apenas Livros, 2009, 50 pp.

Col. literatralhas NOBELizáveis, 60

 

Maria Estela Guedes ou a escrita no papel do chão
Por Nicolau Saião
(extracto do prefácio)

3.

Nestes poemas de MEG sente-se pairar a sombra de Rembrandt e da sua mensagem lucidamente antilírica — se entendermos como lirismo essa escrita impressionista (um pouco desfasada da realidade mais legítima e soberana) que por aí vai dando cobertura a um romantismo de pacotilha, ultra-sentimental e, por isso mesmo, refalso e, no fundo, claramente pedante.

MEG revisita Rembrandt, o pintor que nos deu um realismo avant la lettre excursionando pela sua própria rota interior, essa que contém os sinais de um país transterreno.

O Rembrandt das noites semiveladas e das carnes escorchadas, mas também o criador fascinado e fascinante dos interiores repletos de real encanto, está aqui, como se nos antolha que também ali esteja o perfil sóbrio de Milton com todos os seus horizontes perdidos e reencontrados.

Ali, aqui, nesta terra martirizada da Guiné, mas também na terra encantada de uma menina de 12 anos que através da sua sensibilidade e da sua inteligência soube forjar as tintas com que fotografaria a seu tempo uma grande e bela comoção posta em poemas que nos levam de viagem pelo seu paraíso disperso pelos anos que se evolaram.

Está ali a escrita, a paixão e o conhecimento da escrita, que é signo maior lavrado nas paredes de um amor pelos ritmos da memória, deliberadamente posto em equação. E está aqui também a interrogação do ser humano, da mulher que (se) recorda, que escreve, que do baú deslumbrante e deslumbrado do seu espírito e da sua nostalgia soube retirar os mais belos sinais de uma infância e adolescência para depois e para todo o sempre.

Idade de mulher... Por isso também Prometeu aqui comparece — esse Prometeu que os grandes pintores, os grandes poetas, podem encenar nos seus quadros/poemas diurnos ou sob a lua dos tempos que vão transcorrendo — pois que o fogo do entendimento ela o acalenta a cada pincelada (verso), a cada retrocesso e reincursão, a cada nova inflexão, a cada lugar revisitado.

Neste livro/poema, cujas jornadas incessantemente se questionam tanto quanto se afirmam — pois que é esse o movimento perene da poesia, ir e vir como se fossem as ondas de um mar na noite ou na claridade — a penumbra ilumina-se a dado passo para ganhar um sentido além da devastação e da amargura. Trata-se duma legítima e nostálgica evocação mas igualmente, o principalmente, duma transfiguração.

Conhecedora das mansões em que se radica a Arte Real, a autora deixa que a sua poesia se perpasse duma transmutação forjada pela forma e pela qualidade da escrita praticada. Espiritualização da matéria e materialização do espírito, para tudo dizer.

Rembrandt, Milton, Prometeu: o mistério das coisas e dos seres, a sua representação virtual e a chegada ao conhecimento. Ou pelo menos à busca intemerata do conhecimento (da sabedoria?) e de tudo o que ele nos pode ofertar — como claramente acontece neste Poema de carne e de sangue espiritual, livro seminal, secreto e luminoso duma mulher/menina poetisa e maga em terras africanas de outrora e deste tempo quotidiano, que é, para nosso prazer e nossa honra de leitores, Maria Estela Guedes.

Atalaião, Março de 09 NS

Bolama

Voltar à Guiné
Bissau, a nuvem de morcegos
Seguindo o velho vapor
De bancos de madeira corridos
Até à ilha entre ilhas
Bolama
A saber a mangos e a melancolia.

A praia lenta e morna a rodear-te o fatito
De banho vermelho.
Não tinhas mamas, pernas nem nada
Uma criança apenas
Com um caracol comprido
A cair de cada lado da cara.
As amigas de então – Pelete se chamavam –
Voltaste a vê-las mais tarde
E era como se não tivéssseis atravessado juntas
A adolescência, o Geba e o Atlântico
Na direção do mítico arquipélago
Dos Bijagós
Até Bolama, a ilha
A saber a mangos e a melancolia.

Quem ousaria sonhar com férias, praia, hotéis?
Nem tal devia existir em Bolama.
Talvez uma pensãozinha barata
Para passardes a noite, lembra,
Éreis tantos
Decerto o dono fez desconto,
Já a maior parte deles morreu
Como o senhor que tinha nome de rei mago, como era?
- Melchior
E morreu de noite, na estrada, a caminho de Bafatá, onde
Morava
Um acidente
Travou de repente a carrinha
Era noite e não via nada
Talvez um bando de macacos o tivesse assustado
Ou talvez não
Talvez soldados tivessem disparado
De um lado eram os tugas
E turras do outro lado
Isso aconteceu no entanto
Anos depois da ida a
Bolama, a ilha
A saber a mangos e a melancolia.

Os colegas de liceu que desapareciam
E então sussurrava-se
A boca encostada à orelha
Tinham fugido para o mato
Tinham ido para a luta
A luta no lado dos turras
Pode ter sido isso ou um bando de macacos
Ele travou, e então um tampo pesado de mármore
Para mesa de cozinha
Que levava atrás
Deslizou para cima do volante
E esmagou-o, ao senhor Melchior
Dentro da noite e da carrinha.

O senhor Melchior
Tinha tido uma moto de atrelado à banda
E óculos grandes de aviador
E certa vez arrancara em jeito febril de acrobata
Deixando a mulher em terra
A Dona Mariazinha
Mal agarrada atrás dele
Pela cintura
Porém isso acontecera
Em época anterior ainda à viagem seguida por um bando
De morcegos
Até Bolama, a ilha
A saber a mangos e a melancolia.
E o filho também, o Necas,
Excelente rapaz,
Atrasado um pouco, mentalmente,
O que não tinha grande importância
Importância tinha a saliva que lhe babava
As comissuras da boquinha tenra de jarro
Foste com ele num Agosto de férias grandes
Na ambulância vermelha a abarrotar de balaios
Galinhas e porcos no tejadilho
E dentro dela
As gentes chacoalhando
Brancas e pretas aos saltos nos assentos
E como ele e elas empurraste a lataria vermelha
Para ultrapassar os barrancos
Que as chuvas haviam cavado
Na terra batida da estrada.
Isto num tempo em que não havia guerra
Anterior à viagem de barco
Até à ilha entre ilhas
Bolama
A saber a mangos e a melancolia.
Nesse tempo em que para dois adolescentes
O perigo maior era perderdes o lanche
Ou a lancha, em Mansoa, a atravessar o rio
Pois nunca ali construíram ponte.

Também morreu, o Necas.
Três famílias a passar o fim de semana
Na praia
Em Bolama
As casinhas rasas à beira de água,
Com um sorriso de madeira pintada
A vermelho e amarelo
Descascada o bastante para ganhar a patina
Da pobreza aconchegante e
A água estagnada como bolanha
Nem uma vaga na praia
Podíeis caminhar pelo mar adentro infinitamente
Sem perder o pé
Dois dedos de água sobre a vasa
À espera de ser plantada com arroz
Esses tempos de outrora
Ai, são espuma a escorrer dos cabelos…
A memória, molhada e tépida, com bivalves
Nos pés
Espera a tua morte como se tivesse o tempo todo
À frente para nele se banhar em incenso
Era ali que devias ser sepulta
Com a tua carga de afectos e ondas pesadas
As lembranças
O coração fechado num búzio
A murmurar palavras sabe ao ouvido
Era ali
No fundo das águas a tocar
O lodo verde e menstrual do Geba…
Vai morrer à Guiné se te apraz
Num dia de neblina fria sobre as águas
Na linha imperceptível que separa a lua
Da luz
Vogando para o Oriente Eterno
Na barca de Rá
Depois de passar pela ilha entre ilhas
Bolama
A saber a mangos e a melancolia.

Maria Estela Guedes

 
Poemas
(versões anteriores à edição em papel)
sobre a Guiné-Bissau, ditos pela autora
no YouTube
Maria Estela Guedes. Membro da Associação Portuguesa de Escritores, do Centro Interdisciplinar da Universidade de Lisboa e do Instituto São Tomás de Aquino. Directora do TriploV. Alguns livros publicados: Herberto Helder, Poeta Obscuro; Eco/Pedras Rolantes; Crime no Museu de Philosophia Natural; Mário de Sá-Carneiro; A_maar_gato; Ofício das Trevas; À la Carbonara; Tríptico a solo. Espectáculos levados à cena: O Lagarto do Âmbar (Fundação Calouste Gulbenkian, 1987); A Boba (Teatro Experimental de Cascais, 2008).