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Maria Estela Guedes

JARDINAR COM FRANCIS BACON
Maria Estela Guedes

INDEX

Sumário
Sobre jardins
Maravilhas da Natureza
Teres e haveres
Concluindo com idolatria
Bibliografia

Teres e haveres

As Maravilhas da Natureza, em especial destinadas a uso humano, são aquilo que, na Nova Atlântida, aparece regido pelo verbo “ter” e conveniente sujeito. Cito Carlos Fiolhais, para não traduzir eu: Temos todos os meios de transmitir sons em caixas e tubos, em linhas e distâncias estranhas”.

Como é que nos finais do século XVI, princípio do século XVII, um cientista foi capaz de imaginar o gira-discos, o telégrafo, o telefone, a televisão, até a Internet? A imaginação não tem limites? Trata-se de delírio poético?

Carlos Fiolhais classifica estes enunciados como antecipação científica. Existe um exemplar da Nova Atlântida, anotado à margem por um contemporâneo de Francis Bacon, Christopher Wren, que vai acompanhando com exemplos comprovativos os teres e haveres enumerados, como revelam as notas de Michèle Le Doeuff à edição de La Nouvelle Atlantide da Flammarion. Christopher Wren não é o único a achar normal a lista de teres e haveres que consideramos fantásticos, e a manifestar a ideia de que Francis Bacon se comportava como um divulgador da ciência. Mas vejamos: etiquetar Francis Bacon como divulgador é tão extraordinário como considerá-lo autor de ficção científica. Não parece que tenhamos saído do reino das ciências ocultas com nenhuma das soluções.

Para resolver o problema houve quem tivesse criado modelos de leitura, o que não quer dizer que ele esteja agora resolvido. Hatzenberger refere o modelo proposto por Raymond Trousson, com três aproximações: na primeira, far-se-ia o inventário de todas as descobertas, identificando as intuições, os pressentimentos e as antecipações. Na segunda, procurar-se-ia analisar a vontade do utopista em vulgarizar a ciência; a terceira aproximação consistiria em perguntar qual foi o papel das ciências e das tecnologias na utopia, uma vez que elas afectam a organização política, social, e mesmo a natureza humana, num manifesto de que a ciência é útil para o progresso social.

Por estas razões de programa eleitoral, ou ideológico, patente nas utopias, não é possível tomá-las como puras ficções, no interior das quais as tecnologias de vanguarda decorressem de delírios da imaginação dos autores. Note-se, no método citado, que a imaginação nem é referida. Pode apenas ser entrevista no primeiro modo de leitura, o que contempla as intuições, os pressentimentos e as antecipações. Mas perguntemos: que lista é esta, em que as antecipações fecham uma tríade encabeçada por intuições e pressentimentos? As utopias são textos místicos? É penoso responder. Diria que sim, que há nelas componentes New Age. Apesar de parecerem afastadas dos propósitos religiosos e estéticos, e mais próximas das ideologias políticas, Cioran não receia considerá-las aberrações intelectuais. É que no horizonte das utopias, como em qualquer messianismo, rebrilha a promessa de salvação. Cioran não suporta a ideia de que a ciência possa ter a pretensão de resolver a questão social, e resolvê-la com remédios mais ou menos miraculosos.

É aquilo a que Marquer chamaria a propaganda eleitoral: movemo-nos no jardim da política, a garantir que a ciência aplicada é a instituição capaz de transformar em Paraíso a vida na Terra. Concessões à novelística e à poesia há poucas, e manifestam-se mais na cobertura esotérica de certas descrições, caso da Casa de Salomão, que à evidência é o Templo de Salomão das sociedades iniciáticas.

Na parte final da Nova Atlântida, os resultados práticos obtidos pelos cientistas são apresentados não como programa eleitoral, sim como resultados da eleição de governantes que de há muito vêm cumprindo todas as promessas feitas. Por isso Bensalem já não é uma ilha oculta. Para os estrangeiros, ela é a revelação do Jardim do Paraíso, em que todos têm.

Nós temos é a frase dominante da lista. Ela define a satisfação dos sentidos, uma vez atingida a felicidade do corpo e do espírito com o conforto e o consolo proporcionados pela ciência. Nada falta em Bensalem, os ilhéus têm tudo, incluída a “Água do Paraíso”, que cura todas as doenças e concede o prolongamento da vida.

Entre os muitos teres e haveres, vejamos o que se passa com a jardinagem:

“Temos também extensos e diversificados jardins e pomares nos quais investigamos menos a beleza do que a variedade de terras e de solos que convenham a diferentes árvores e plantas. […] Levamos a cabo neles todas as experiências possíveis relativas a diferentes técnicas de enxertia, tanto em árvores frutíferas como selvagens, o que dá muito resultado. Conseguimos, com a nossa arte, nestes mesmos vergéis e jardins, tornar mais precoces ou mais tardias as árvores e as flores; também conseguimos que as árvores cresçam e frutifiquem mais depressa do que é natural nelas. À força de arte, tornamo-las maiores do que seriam pela sua natureza; os frutos são maiores e mais doces; o seu sabor, o seu perfume, a sua cor e forma são diferentes dos que encontramos em estado natural. Entre estas plantas, são numerosas aquelas que modificamos de tal modo que se tornem úteis de um ponto de vista medicinal”.

À força de arte, escreve Sir Francis Bacon. O que o homem cria é naturarte, próprio da Arte. Qual a diferença entre os produtos da selecção humana e os produtos da selecção natural? Para nós, que nos limitamos a usufruir dos bens que a ciência nos concede, eis uma das raras respostas claras: os frutos da selecção humana são maiores, mais substanciosos, mais saborosos, mais belos. Mas não é com novas espécies que a ciência consegue salvar a Humanidade do colapso ambiental que ajudou a criar na Terra.

Trabalho apresentado ao Congresso Internacional “Jardins do Mundo”. DRAC. Região Autónoma da Madeira. Funchal, 9-12 de Maio de 2007.

Maria Estela Guedes. Membro da Associação Portuguesa de Escritores, da secção portuguesa da Associação Internacional de Críticos Literários, do Centro Interdisciplinar da Universidade de Lisboa e do Instituto São Tomás de Aquino. Directora do TriploV. Alguns livros publicados: Herberto Helder, Poeta Obscuro; Eco/Pedras Rolantes; Crime no Museu de Philosophia Natural; Mário de Sá-Carneiro; O Lagarto do Âmbar; a_maar_gato; Lápis de Carvão; Ofício das Trevas; A Boba.