MÁRIO MÁXIMO - O SONHO DO QUINTO IMPÉRIO

A filosofia portuguesa não existe sem a poesia. É uma espécie de herança que não admite renúncia nem utilitarismo. As riquezas de tal herança são frugais. Ou melhor, são faustas e imensas, mas no plano da libertação interior. No plano espiritual e metafísico. Talvez no plano místico. Ao nível do profano são mesmo frugais, tais riquezas. Os impérios da filosofia portuguesa não abarcam sujeições. Talvez por isso o efectivo poder político-económico português tenha sido assumido de forma tão efémera e apenas num passado longínquo. Ou seja, que tarda em repetir-se.

Perdoem-me a heresia, mas acho que D. Sebastião teria subsidiado Luís de Camões de forma bem mais generosa se acaso tivesse sido ele um general de sucesso. Digo ele, Luís de Camões. Pois que D. Sebastião foi o nosso bem conhecido general do insucesso. D. Sebastião teria feito bem melhor a Portugal se se tivesse tornado poeta. Quis ser rei e seguidor de sinais. Ou melhor, era esse o destino que lhe estava traçado. Eis a sua única desculpa. Sonhou os sonhos errados e foi esse o seu legado. Por outro lado, diga-se, ser poeta ao lado de Luís Vaz de Camões deveria ser hercúlea obra mesmo para um D. Sebastião...

Os poetas fizeram do maior desastre estratégico da nação portuguesa (e não nos esqueçamos que o facto de termos estado sob a sujeição de uma potência estrangeira pela única vez desde sempre, é prova mais do que eloquente de tal estratégico desastre) a catarse da nação. Reescreveram o destino que D. Sebastião não soube ler. Nem podia ler. O destino só pode ser lido por profetas ou poetas. Sendo que estes são os profetas iluminados. Camões morre com a sujeição da Pátria. Não pode haver melhor metáfora. Nem a mísera tença real de D. Sebastião o matara. Matou-o a humilhação de Portugal a que conduziu o equívoco sonho de D. Sebastião

A partir de D. Sebastião passámos a encontrar-nos na saudade, na quimera, na luz espiritualmente revelada. Não mais glórias de expansão ou de domínio terreno. Todos perceberam que o destino de Portugal, a partir de tal desastre, só poderia ser espiritual. SÓ? Perguntamos. SÓ? Pois é na resposta a esta questão que se colocam as grandes questões da filosofia portuguesa. Porque digo eu filosofia portuguesa? Bem, porque corre nas nossas veias o sangue da saudade, da missão ungida e da revelação. O Padre António Vieira bem que pressentiu tal desiderato. O Padre António Vieira é um dos nossos maiores poetas. A sua obra é, toda ela, tocada pelo sublime da poesia. Ler O Império do Futuro é ler um livro que é um poema. Um poema filosófico mas cuja densidade cardíaca, ou melhor dito, cuja densidade de coração, ilumina todo um devir.

Claro que não é por acaso que o grande Tomás Morus, ao escrever o livro Utopia, coloca como narrador da visão da ilha da Utopia, cuja capital é Amaurota, um marinheiro português: Rafael Hytlodeu. Isto significa que os portugueses eram entendidos pelo escol da inteligência de então como aqueles que poderiam dar novas ao mundo. Até as novas do sublime, do milagre feito realidade, da revelação tornada quatro dimensões: as três do corpo e a quarta da alma.

Quero eu dizer com isto que o Padre António Vieira, ao formular a sinopse da História do Futuro, Esperanças de Portugal, e Quinto Império do Mundo estava a fazer o poema que lhe era possível. Luís Camões concebeu a Ilha dos Amores. Sonhou-a. Tornou-a realidade pela mão da mais delirante imaginação (Se bem que, deva ser dito que naqueles tempos de descobrimentos de novos mundos muita coisa inverosímil foi realidade. Ao ponto de eu perguntar se Camões não pernoitou, ao menos uma noite, na Ilha dos Amores). Mas quanto ao Padre António Vieira ele pensou a utopia como plena realização. Não apenas quimera sonhada. Ele profetizou-a. Aí terá sido mais poeta do que Luís de Camões. Arriscou tudo. Esteve nas mãos da Inquisição. A tal santa instituição que desmembrou corpos e almas em nome de Deus. Ao estar nas mãos da inquisição ele provou que sonhava verdadeiro. Pois apenas foram condenados pela inquisição os que estavam inocentes. Aqueles em quem luzia algum sonho ou a poesia ela mesma.

O Padre António Vieira fundou a ideia de Quinto Império. Não me importam, agora, os quatro impérios anteriores ao Quinto. Importa-me essa sensação sublime que é sentir-me parte vivente de um sonho maior do que uma Nação. E porque digo isto? Porque só as Nações grandes de coração e alma podem sonhar os sonhos que lhe são maiores.

O Padre António Vieira respeitava os povos autóctones das Terras de Vera Cruz como respeitava aquele povo de onde ele provinha. Tal atitude poderia levar a um Quinto Império na terra. De facto poderia...

Hoje, a noção de Quinto Império é outra sendo a mesma. Tem outros contornos. Mas o lume da gestação continua a ser o mesmo: o lume que acende e aquece a transcendência através da fé suprema da poesia. Grandes pensadores falaram do Quinto Império. Mas foi o poeta revelador, o Supra-Camões, aquele que falou de forma mais significativa. Fernando Pessoa sabia que no conceito de Quinto Império se subsumia o destino português. O esoterismo em Pessoa é uma assumpção de liberdade e de missão. Cada um só é livre se, e quando, se encontra no caminho da sua missão. E nenhum português pode abjurar a sua história. No plano dos factos, claro. Mas sobretudo no plano super-estrutural que ilumina esses factos.

Em boa verdade, devo dizer que acredito no Culto do Espírito Santo: o primeiro profetismo e aquele que vem do povo genuíno da fala portuguesa. Acredito na Sétima Idade, de Fernão Lopes. Acredito na Ilha dos Amores que Luís de Camões permite que visionemos através da sua iluminada poesia. Acredito no Quinto Império do Padre António Vieira, bem como no Quinto Império de Fernando Pessoa.

O grande Agostinho da Silva, numa notável entrevista publicada postumamente (conduzida por Antónia de Sousa) tem um lapso que não é lapso pelo simples facto de que não acontece por acaso: ao falar de Fernando Vieira. Junta Fernando Pessoa e António Vieira. Na verdade, eu acho que o dossier Quinto Império tem os seus máximos expoentes nestes dois autores. Nestes dois profetas e poetas: António Vieira e Fernando Pessoa.

Assim se entende que o conceito de Quinto Império evolui, sendo o mesmo. António Vieira procura-o na História do Futuro. Fernando Pessoa encontra-o na História do Passado. E é a esta transversalidade que irá juntar-se Luís de Camões. Luís de Camões entra neste triângulo com a voz da intemporalidade que une os discursos de Fernando Pessoa e António Vieira.

Quando comecei as minhas palavras falei de D. Sebastião. Talvez de uma forma que tenha surpreendido aqueles que costumam passear nos frondosos jardins sebastiânicos. D. Sebastião não é, de todo, o meu ídolo (digamos desta forma meio brincalhona). Mas D. Sebastião tem um papel inestimável: foi a partir dele que os portugueses passaram a procurar-se dentro de si próprios. Cada um tem um D. Sebastião dentro de si. E quando cada um regressa a si mesmo é D. Sebastião que retorna por entre as brumas da alma de cada um. O caminho do Quinto Império talvez possa dissipar a bruma. O D. Sebastião que falta a cada um de nós se calhar não está longe. Talvez a bruma seja o muro que nos separa da plenitude espiritual: aquela que nos realizará o sonho do Quinto Império.

MÁRIOMÁXIMO