MARIA JULIETA MENDES DIAS
& PAULO MENDES PINTO

Maria de Magdala
a Mulher – a construção
do Culto – o caminho dos Mitos

Parte III
Pós-Maria Madalena: a evolução da imagem e do culto
6. Da Maria Madalena tornada periferia
à Maria Madalena regressada
6.1. O fim do protagonismo teológico no Ocidente:
nasce a “prostituta”

Pelos textos canónicos, Maria Madalena foi a primeira a receber a notícia da ressurreição de Jesus, o facto que o transformava no Cristo, no Messias esperado. Fora a ela que o próprio Jesus confiara a tarefa de reunir os seus discípulos e relançar todo o processo de evangelização depois da profunda desmotivação e medo criado após a morte do Mestre.

Mas mais, como afirmara São Jerónimo, no seu Principium Virginem:

Maria de Magdala recebeu o epíteto de «fortificada com torres» por causa da força e intensidade de sua fé, teve o privilégio de ver o Cristo ressuscitado, mesmo antes dos apóstolos .

o seu nome pode, de facto, lembrar etimologicamente uma posição de guardião, o reduto inabalável: migdol ou magdal significa "torre" em hebraico.

Com toda esta assumida simbologia e peso narrativo no cristianismo nascente, como se deu todo o processo que nos leva, em pleno século VI, a verificar uma total anulação desta sua faceta?

Desde quando terá nascido a ideia de assimilar Maria Madalena à prostituta anónima dos Evangelhos canónicos? Qualquer que tenha sido a data deste fenómeno, devemos ter plena consciência de que, numa sociedade patriarcal, um lugar de destaque dado a uma mulher seria sempre bastante incómodo e alvo de fortes controvérsias.

Está por demais estudado o papel e o lugar das mulheres na estrutura insípida do cristianismo primitivo, herdando muito do lugar que o judaísmo lhes dava no campo do ensino e das tradições religiosas domésticas. Ainda hoje a transmissão dos valores e da linhagem judaica se dá por via da mãe e não do pai.

De facto, até à afirmação da estrutura eclesiástica do cristianismo, que é crescente no século II, e plena em forma na passagem do III para o IV, culminando na quase institucionalização do cristianismo como religião do Império por Constantino, a mulher detinha a capacidade de dirigir cultos e comunidades.

Paulo, nas suas epístolas, cita algumas mulheres que tinham importantes tarefas de evangelização nas suas comunidades, como Febe, por exemplo:

Romanos 16, 1-8:

Recomendo-vos a nossa irmã Febe, que também é diaconisa da Igreja da Cêncreas: recebei-a no Senhor, de um modo digno dos santos, e assisti-a mas actividades em que precisar de vós. Pois também ela tem sido uma protectora para muitos e para mim pessoalmente.

como Maria, que tanto se afadigou por vós (Romanos 16, 6);

ou como Júnia, que, com o seu marido, Andrónico, é chamada de "apóstola":

Romanos 16, 7:

Saudai Andrónico e Júnia, meus concidadãos e meus companheiros de prisão, que tão notáveis são entre os apóstolos e que, inclusivamente, se tornaram cristãos antes de mim .

De qualquer forma, é logo muito cedo que a mulher perde, ou melhor, não chega de facto a ganhar peso no tecido social cristão. Paulo, por exemplo, é já significativamente misógino em relação às mulheres:

I Coríntios 11, 7-10

O homem não deve cobrir a cabeça, porque é imagem e glória de Deus; mas a mulher é glória do homem. Pois não foi o homem que foi tirado da mulher, mas a mulher do homem. E o homem não foi criado para a mulher, mas a mulher para o homem. Por isso, a mulher deve trazer sobre a cabeça o sinal da sua dependência, por causa dos anjos.

Mais, Paulo parece ter uma evolução de pensamento que afastou as mulheres de alguns locais de maior destaque, fruto de uma reavaliação das comunidades por ele acompanhadas. Por exemplo, se na Carta aos Gálatas (3, 28) a sua argumentação conducente ao esbatimento de preconceitos e diferenciações sociais inclui o binómio Homem / Mulher a par do Judeu / Grego e do Escravo / Livre, na Carta aos Colossenses (3, 11), posterior à primeira, os binómios elucidativos perderam a dupla Homem / Mulher. Terá sido a experiência de Corinto que levou a uma verificação que esse esbatimento colocara em causa o modelo de construção hierárquico da própria comunidade, colocando-a eventualmente em risco.

Numa sociedade marcada pelo poder e lugar dominantes dos homens, esta tentativa igualitarista entre géneros muito dificilmente seria aceite. Se no campo social e da organização das comunidades este salto mental era radical, no da formulação teológica era ainda mais inacessível e inconcebível. Uma mulher que seria incontornável pelo seu lugar de destaque junto do Cristo era, decerto, bastante incómoda.

Mas o quadro de leitura desta realidade do género toma contornos bem mais complexos. Temos de nos lembrar que o cristianismo, mais que nascer judaico, desenvolve-se grego e latino. Ora, encontramos aqui uma significativa mudança a nível de quadro de mentalidade. O mundo das culturas indo-europeias, onde linguisticamente o grego e o latim se enquadram, é marcadamente patriarcal. Não dizemos que o mundo das culturas semitas, onde o hebraico tem lugar, seja matriarcal, mas a verdade é que nesse espaço cultural o lugar da mulher é, apesar de tudo, menos posto em causa, menos negativo – mesmo a nível jurídico, os mais antigos códigos semitas dão algumas liberdades e garantias à mulher.

O cristianismo, ao avançarmos pelos séculos II e III, torna-se cada vez menos semita e mais indo-europeu. Ao integrar-se no mundo da cultura, da jurisprudência, da filosofia grega e latina, o cristianismo iria ganhar contornos institucionais vincadamente patriarcais.

Talvez já imagem desta tendência universalizante, para além das fronteiras judaicas, que nasce logo com Paulo, nas primeiras dezenas de anos de vida desta nova religião, Maria Madalena desaparece totalmente do livro que, cronologicamente, continua os Evangelhos: o Actos dos Apóstolos.

Neste escrito de Lucas, apenas surge a Virgem Maria. De resto, mostrando um total desconhecimento sobre aquela figura feminina que poderia até ter tido um lugar de preponderância junto de Jesus, ou mesmo, lançando o leitor num quadro onde ela nunca existe, Lucas nunca refere Maria Madalena.

Será, como visto antes, no universo das seitas cristãs, da gnose, que Maria Madalena se manterá crescentemente como imagem de uma proximidade a Cristo e, até, personificação da Sabedoria. Como que afirmando o lugar de destaque que se percebe nos Evangelhos canónicos, os textos apócrifos levam narrativamente a personagem a um limite inverosímil na sua proximidade a Jesus.

Numa mecânica de equilíbrio, pela recusa face aos hereges, quanto mais Maria Madalena era venerada pelas comunidades gnósticas, mais a igreja de Roma a transformava na imagem da mulher mundana, pecaminosa.

Passavam os primeiros séculos da história dos seguidores de Cristo e, de mensageira do Evangelho, ela tornava-se numa personagem afastada, esquecida. Do século III em diante, as mulheres já raramente têm participação activa nas comunidades.

No seio de uma cultura judaico-latina, a imagem difusa, de contornos nebulosos que era Madalena, rapidamente se deve ter associado à negativa visão que foi criada da sua sexualidade. No espaço cultural grego essa evolução parece nunca se ter dado.

Os grupos gnósticos que tomam Maria Madalena como a primeira na hierarquia do discipulato de Cristo são, culturalmente, gregos, orientais, e não latinos. Nesse espaço cultural, a figura da prostituta (nomeadamente a ligada ao culto sagrado), não era tão negativa como a associada ao mundo judaico, e muito menos com a visão idílica e social da virgindade romana, antes analisada.

No processo de criação do cânon, a integração do texto de João, o mais gnóstico dos não-gnósticos dos textos sobre Jesus, os Evangelhos canónicos, implicou uma pequena alteração ao seu conteúdo que mostra exactamente o peso crescente de Maria Madalena nos grupos periféricos do cristianismo.

À medida que se dá uma natural normatização e institucionalização do cristianismo, combatendo os grupos gnósticos, a imagem de Maria Madalena sofre uma erosão forte e alteração do seu conteúdo, da sua biografia. O Evangelho segundo S. João “retoca” a ressurreição do Cristo, dando o lugar de destaque a Pedro, retirando-o a Madalena (João 21).

Mesmo o cristianismo grego, que desembocará no ortodoxo, centrado nos patriarcados de Constantinopla, Antioquia, Jerusalém e Alexandria, nunca confundirá as várias mulheres, referidas no Novo Testamento, com Maria Madalena.

Vários teólogos orientais enaltecem o papel de Maria Madalena nos acontecimentos da Páscoa cristã, vendo-a mais como uma mulher honrada, digna desse destaque, que a continuadora da maldição de Eva.

Cirilo de Alexandria, duro crítico e acusador dos gnósticos nestorianos, em 444, dizia que as mulheres eram com Maria Madalena duplamente honorificadas: através dela, todas as mulheres foram perdoadas da transgressão de Eva e, também, porque uma mulher fora testemunha primeira da ressurreição.

Proclus, Patriarca de Constantinopla, pouco depois, em 446, também afirmava que as mulheres foram escolhidas para avisar os apóstolos, para serem honorificadas. Gregório de Antioquia, em 593, seguindo Paulo ao falar sobre Júnia, chama ao grupo das mulheres acompanhantes de Jesus, as "primeiras apóstolas". Mais idilicamente, Modestus, patriarca de Jerusalém, em 630, acreditava que Maria Madalena havia morrido virgem e mártir, e que fora líder dessas discípulas, qual colégio das Vestais romanas.

Porquê esta diferente atitude perante esta personagem? Obviamente devido às diferenças culturais já antes indicadas, mas também porque o Ocidente romano e cristão saberá cada vez menos grego, dando apenas atenção às versões em latim do texto tornado canónico.

No século IV, num tempo em que a ascese toma o lugar até então tido pelo martírio, a imagem do pecado desenvolve-se em torno da carne. A imagem de perfeição na busca de Deus serão os monges do deserto, os que recusam e fogem a todo o universo de tentações. A mulher é a principal imagem deste mundo a que há que fugir.

A virgindade, negação e recusa da actividade sexual, passa a ser encarada cada vez mais como uma forma sonhada de perfeição. Maria, mãe de Jesus, Virgem por definição, é agora o paradigma de uma perfeição espiritual que, no fundo, tem no comportamento sexual, uma das suas chaves mestras. Maria Madalena, pelo contrário, é o exemplo da mulher pecadora, a eterna penitente.

A partir do século IV, o celibato passa a ser cada vez mais exigido do clero. O concílio peninsular de Elvira, em 305, instruía que todos os que participassem nos ritos do altar mantivessem total abstinência sexual, mesmo os casados. Aprofundando esta linha, lançada por Paulo na Primeira Carta aos Coríntios (7, 25-39), em 325, o Concílio de Laodiceia proibia as mulheres de servirem como sacerdotes e de presidirem a paróquias.

Em 425, o Concílio de Cartago, onde esteve Sto. Agostinho, decretou que todo o alto clero se devia separar das suas respectivas esposas, sob pena de perder os direitos sacerdotais adquiridos.

Nesta época pouco abonadora da mulher, Santo Agostinho era um dos poucos a encarar Maria Madalena como a mulher mais importante dos Evangelhos, separando-a das demais personagens femininas. No seu Liber de vita eremítica ad sororem, diz o seguinte, sobre o episódio Noli me Tangere, descrito no Evangelho de João:

Mas porque, ó Jesus amável, rejeitas desta maneira dos teus santíssimos e desejabilíssimos pés aquela que te ama? Que palavra dura! Ele diz: Não me tocar. Mas porquê, Senhor? Porque não deveria tocar aqueles teus pés tão desejados, por mim trespassados pelos pregos e cobertos de sangue? Não deveria tocá-los, não deveria beijá-los? Ou talvez é menos amigo porque mais glorioso? E Ele: Não me tocar. Não temas; esta alegria não lhe é tirada, mas postergada: no entanto, vá e anuncia a meus irmãos que ressuscitei. Ela corre depressa, desejosa de voltar.

O percurso para a institucionalização da confusão em torno da figura de Maria Madalena estava mentalmente feito através deste crescimento e incremento da figura negativa da mulher, acompanhado por um afastamento a que eram forçadas das instituições eclesiásticas. Neste quadro, confundir alguns dados biográficos de Madalena, mesmo que inconscientemente, não levantariam ninguém em sua defesa.

Maria Madalena não poderia ter muita sorte no que de literário nos chegou desta época. Será apenas um pouco posterior o célebre sermão de Gregório Magno (540-604 d.C.), papa entre 590 e 604, que mistura todas as mulheres que não a Virgem Maria, dando, por milénio e meio de anos, o epíteto de prostituta a uma mulher que, em princípio, nunca o fora (Homilia XXXIII, integrada em PL LXXVI, 1238):

Aquela que Lucas diz ser pecadora, a que João nomeia como Maria, são a mesma, cremos nós, que aquela de quem, seguindo Marcos, foram retirados sete demónios.

A junção destas três mulheres estava feita. Magdalena quæ fuerat in civitate peccatrix, seria, seguindo a mesma homilia, a imagem que da santa passaria para a História. Num quadro de fome e doença generalizado na cidade de Roma, o Sumo Pontífice dá o exemplo da pecadora que viveu o resto da sua vida em penitência para incutir na população cristã esse mesmo desejo e práticas expiatórias.

Mesmo algumas das inconsistências mais gritantes desta junção foram imaginativamente limadas. Por exemplo, tratando-se de uma única mulher, nascia o problema de harmonizar as diferentes origens familiares: Magdala e Betânia. O problema foi resolvido no século XII, quando Iacopo de Varazze, na sua obra Legenda Áurea, monta uma ardilosa solução a nível de heranças: Maria Madalena pertencia a uma família rica de Betânia, que morava num castelo designado por «Magdala» - lembrar que esta palavra poderia levar a crer que era um sinónimo de «torre»; com a morte dos pais, Marta teria herdado a vila de Betânia e Maria o castelo, daí o seu nome.

De resto, poucos seriam os autores a não alinhar nesta avalizada visão. Das poucas excepções, devemos referir Pascase Radbert (séc. X), para quem seriam duas as mulheres em causa nestes textos (PL CII, 879). Da mesma forma, Bernardo de Claraval (1090 - 1153 ), personagem conhecedor do culto e, em especial, de um dos seus principais locais, a abadia de Vézelay, inclinava-se para que fossem duas as mulheres, as personagens, dos trechos em questão (PL CLXXXIII, 216-218).

Para além de alguns teólogos, apenas no século XVI a tese unitária será, de facto, posta em causa. O humanista Jacques Lefèvre d’Etapes publica em 1517 uma obra, Maria Magdalena et triduo Christi disceptatio, reeditada em Paris em 1518, 1519 e 1520, onde afirma que a identificação comum de uma única mulher assenta sobre uma confusão.

Em resposta pela ortodoxia, um canonista de Saint-Victor (Paris), Marc Grandval, logo em 1518, e um lente da Sorbonne, Noël Beda, entram em disputa com Lefèvre. Em 1521, o bispo de Rochester, Josse Clichtoue, antigo aluno do teólogo que despoletara o problema, entra também na polémica. Nesse mesmo ano, a Faculdade de Teologia de Paris decreta como perigosa a leitura de Lefèvre. Se não chega a ser condenado por heresia é devido a intercepção directa do monarca.

Apenas no século XX o catolicismo daria como verdadeira a doutrina segundo a qual Maria Madalena não era todas as outras mulheres nela antes identificadas. Só nos anos quarenta do século há pouco findo, Maria Madalena viu surgirem nas edições da Bíblia católica algumas notas explicativas a afirmar que se tratava de três personagens distintas.

Condenada a expiar milenarmente um fardo que não era o seu, o lugar no culto e na teologia ocidental estava posto, por largos séculos, fora das prioridades.