MARIA JULIETA MENDES DIAS
& PAULO MENDES PINTO

Maria de Magdala
a Mulher – a construção
do Culto – o caminho dos Mitos

7.5. A nova cristianização da Europa:
o culto no Portugal medieval

Em 1147 está em pleno curso a chamada «reconquista cristã» na Península Ibérica. Nesse ano, dá-se a conquista de Lisboa, antecedida pela de Santarém. Sinal da globalidade de acções que nessa época trespassa a cristandade, num ímpeto de novas formas e novas ânsias de cristianização, a conquista de Lisboa aos mouros conta com a ajuda dos cruzados que na altura passavam na costa do nascente reino português em direcção à Terra Prometida, é plena imagem de uma nova dinâmica do mundo cristão. É exactamente um ano antes, em 1146, que em Vèzelay, centro do culto a Madalena, local onde se pensava estar o seu corpo, Bernardo de Claraval pregara a Segunda Cruzada.

O cruzado Osberno deixaria bem marcada, numa crónica que redigira, a conquista dessa grande cidade islâmica que era um importante entreposto comercial desde a época púnica. Tomada a cidade, uma igreja dedicada a Maria Madalena nasceria no espaço urbano. O templo actual é uma reconstrução de 1761, mas a primeira notícia sobre a Igreja da Madalena é de 1164, talvez a referida pelo P e. Manoel Thomas Machado nas Memorias Da Parrochial Igreja daMag da (Biblioteca Nacional – Lisboa - Reservados: Cod. 1615, fl. 45 fr. - fl. 72 vs. ):

Porem tenho para mjm, e com bons fundamentos, que tem por fundador o Santo Rej D Affonço Henriques, e que criaria esta Igreja com o numero das muitas que o Catholico zello deste Monarcha edificou.

Como esta fonte nos mostra, à conquista de cidade, ajudada pelos cruzados que responderam a Bernardo de Claraval na sua pregação na abadia em honra de Maria Madalena, nasceria, em Lisboa, uma paróquia a ela dedicada, significativamente, ou não, no espaço próximo ao que, milénio antes, fora ocupado por um templo a Cibéle, a Mãe dos Deuses ou a Grande Mãe.

Transversalmente a toda a Península Ibérica, de leste a oeste, Lisboa era a marca ocidental de uma mais vasta conquista territorial, uma verdadeira Guerra Santa contra o “infiel”, que ocupava vários reinos peninsulares. Santiago de Compostela, mas também Covadonga, eram dois dos santuários que religiosamente incentivavam esta luta militar com fortes contornos religiosos.

Apesar de as movimentações de populações terem existido, a verdade é que, como está estudado na cidade de Mértola, parte significativa da população, antes sob domínio islâmico (islamizadas ou não), e depois sob domínio cristão, manteve-se nos mesmos locais e com as mesmas actividades. Mudava o domínio, mudava o monarca, mudaria até a religião, as gentes mantinham-se.

A cristianização do espaço e das pessoas era tarefa essencial. Largas extensões de terras são entregues a grupos religiosos, como no caso de Alcobaça, a Cister. Na miríade de pequenos grupos humanos dispersos em povoados muitas vezes quase isolados, a organização episcopal recriará uma nova geografia de paróquias que quase perdeu a memória dos cultos visigóticos anteriores à ocupação muçulmana começada em 711.

Neste quadro, Maria Madalena parece-nos ter tido um lugar de grande destaque. Em meados do século XII, em plena “reconquista”, está no auge o culto franco à santa, um culto em tudo próximo do de Tiago em Compostela e muito próximo dos ideais de cruzada. Em Portugal, Maria Madalena vai ser, claramente, uma ferramenta forte e importante na nova organização religiosa do espaço.

A imagem que temos das paróquias dedicadas a Maria Madalena parece-nos poder ser tomada como indicador geral do culto. Através dos oragos das paróquias portuguesas ainda no século XV, é possível atender aos séculos anteriores, na medida em que poucas alterações de orago devem ter ocorrido.

Olhámos para Inventário Colectivo dos Registos Paroquiais, coadjuvado por um trabalho de inquérito e comprovação junto de outras fontes, bem como de visita aos locais, e elencámos 67 paróquias que, em meados do século XV, tinham Maria Madalena como orago da sua igreja principal.

 

 

 

Paróquias com Maria Madalena como orago:

 

1 - Argomil 36 - Madalena (Paredes)

2 - A-dos-Negros 37 - Matança

3 - Agadão 38 - Medelim

4 - Águas Santas 39 - Miuzela

5 - Alcobertas 40 - Monforte

6 - Aldeia de João Pires 41 - Montemor-o-Velho

7 - Aldeia do Mato 42 - Muxagata

8 - Aldeia Nova 43 - Nagozelo

9 - Aldeia da Ponte 44 - Negrões

10 - Alturas de Barroso 45 - Outil

11 - Alvaiázere 46 - Paradela

12 - Bemposta 47 - Peso

13 - Bustelo 48 - Peva

14 - Cabreira 49 - Pomares

15 - Campo 50 - Portalegre

16 - Candido 51 - Rapoula do Côa

17 - Cerejo 52 - Rebordainhos

18 - Chaviães 53 - Santo Tirso

19 - Chelas 54 - Sebadelha da Serra

20 - Conceição 55 - Seixo

21 - Curopos 56 - Tó

22 - Fonte Longa (C. de Ansiães) 57 - Tomar

23 - Fonte Longa (Meda) 58 - Turcifal

24 - Forcalhos 59 - Urrós

25 - Freixiel 60 - Viduedo

26 - Gouviães 61 - Vila Boa

27 - Gouvinhas 62 - Vila da Ponte

28 - Grijó da Parada 63 - Vila Nova de Gaia

29 - Jolda 64 - Vilar

30 - Junça 65 - Vil. da Castanheira

31 - Lisboa 66 - Vilas Boas

32 - Loivos da Ribeira 67 - Aldeia Gavinha

33 - Lordelo

34 - Madalena (Amarante)

35 - Madalena (Tomar)

 

O que nos interessa nesta listagem de paróquias, reside no facto de facilmente se verificarem algumas dominantes na sua distribuição geográfica. Essa distribuição geográfica pode, eventualmente, levar-nos a constatar alguma orientação e datação no início do culto nesses locais; donde, a sua funcionalidade.

De facto, verifica-se que esta implantação do culto em tudo está relacionada com o auge da abadia de Vézelay e a sua proximidade a Cister, onde Bernardo de Claraval pregara a II Cruzada, em 1146. Os cistercienses terão a sua primeira casa em Portugal em 1138, em S. Cristóvão de Lafões, a que se seguiu S. João de Tarouca em 1140 ou 1143, e depois Alcobaça logo em 1153 e Salzedas em 1156, todas filiadas em Claraval, fundada por S. Bernardo.

Numa macro escala, quase todas as paróquias se encontram acima da linha do Tejo. Isto é, devem ter sido instituídas na fase de organização do espaço correspondente à conquista de Santarém/Lisboa, em 1147. Apenas duas paróquias estão abaixo, a sul, de Lisboa: Monforte e Portalegre.

Ora, esta quase ausência de paróquias dedicadas à santa a sul do Tejo mostra a sua utilidade específica a norte. Essa utilidade aproxima-se muito mais de toda uma fase de ocupação do espaço onde Cister teve imenso peso. Se fizermos coincidir a distribuição das paróquias dedicadas a Maria Madalena com as várias levas de forais medievais portugueses, vemos que a densidade destas paróquias está sensivelmente coincidente com os forais dos dois primeiros monarcas nacionais. O culto a Maria Madalena encaixa com alguma naturalidade neste quadro funcional de reorganização do espaço até à linha do Tejo, numa dinâmica em que a organização eclesiástica, num reino fidelíssimo a Roma, segue a administração civil.

Obviamente, existe culto em Portugal nessa época, porque, em termos absolutos, ele está em expansão na restante Europa. Mas não podemos descurar o facto de, nesta data, o ainda nascente e futuro reino português querer o apoio do papado gregoriano, consumado na bula Manifestis Probatum (1143), que marca simbolicamente a autonomização face a Castela, e, ao mesmo tempo, o facto de a nascente dinastia lusa ter raízes francas. Tudo o apontado são factores de aproximação a Portugal, nesta primeira fase de expansão territorial, do culto a Madalena.

Numa micro-escala, a análise desta distribuição pode dizer-nos mais. É nítida a correspondência dos locais de culto às zonas mais povoadas do reino. Mais, à maior densidade de paróquias, o Riba-Côa e Alto Douro, corresponde a região com maior número de feiras no século XIV. Naturalmente, tudo nos leva a crer que, à excepção de Trás-os-Montes, a maioria das paróquias está muito perto das principais vias de comunicação. Isto é, o culto implantou-se na zona mais povoada, na zona economicamente mais dinâmica, e nas regiões menos isoladas.

Ora, tendo em conta o que se concluiu antes, e tomando o sentido de integração social e urbana das Ordens Mendicantes, não é de estranhar que também aqui haja coincidência de implantação, onde o facto de Maria Madalena ser padroeira dos Dominicanos não poder ser deixado de lado.

Sintetizando, há uma coincidência cronológica e de implantação no terreno com os dois primeiros reinados portugueses; há ainda a notar que, apesar de ser um culto apenas localizado no centro e Norte do país, a sua implantação tem, decerto, a ver com uma adaptação a meios não muito isolados, e com algum dinamismo comercial.

Mas, o tópico principal que retemos, situa-se na própria organização do território: em fase de nova evangelização, de cristianização, Maria Madalena servia a função da integração de todos; a sua dimensão duplamente humana – a que pecara e a que conseguira superar o pecado – era uma ferramenta perfeita em tempos em que a cidade e a vida urbana traziam novos desafios a estes territórios pejados de marcas e heranças árabes e cosmopolitas.

Ao mesmo tempo, num campo de vivências muito ligadas à cidade, Madalena era a já referida ideia de superação do pecado, pela fuga a todo um novo universo de transgressão; na época do nascimento do Purgatório, uma nova evangelização deveria contar já com essa integração no kit a aplicar no terreno.

Por fim, é toda a dinâmica de integração do jovem reino no seu mundo, no contexto internacional: monarcas vindos de locais onde Maria Madalena era cultuada; terrenos entregues a ordens que detinham posições de relevo em alguns dos mais importantes santuários a ela dedicados (Cister); uma conquista feita com auxílio de duas cruzadas que foram, no seu principal santuário, pregadas e dele saíram... a proximidade era demasiada para que o território passasse imune ao seu culto.