MARIA JULIETA MENDES DIAS
& PAULO MENDES PINTO

Maria de Magdala
a Mulher – a construção
do Culto – o caminho dos Mitos

7.3. A nova Eva, a padroeira dos dominicanos

Logo no século III, Hipólito, bispo de Roma (170-235 d.C.), escrevia no seu comentário ao Cântico dos Cânticos, que Maria Madalena era a representação da noiva no poema de Salomão. O amor representado no poema, era um amor espiritual por um mestre, neste caso, Jesus. Para Hipólito, Madalena representava a restauração do pecado original de Eva, mas num sentido oposto. Eva tentara Adão num jardim, sendo assim a causa da queda do homem, Maria Madalena encontrara Jesus ressuscitado e fora a testemunha de sua efectiva assunção como Divindade, como o Cristo, dando sentido a toda a mensagem de salvação dos descendentes de Eva e de Adão.

Eva é, desde cedo, o primeiro modelo feminino que reúne todos os indivíduos do seu sexo. Ela, a indutora da desobediência de Adão. Para Ambrósio de Milão († 397), a culpa da queda era claramente de Eva, não de Adão: a mulher é que foi a autora da falta para o homem, não o homem para a mulher (PL 14, col. 303).

Tertulinano († c.223), na senda dos discursos anti femininos, iria mais longe: não sabes tu que és Eva, tu também? A sentença de Deus tem ainda hoje todo o vigor sobre esse sexo, é preciso portanto que a sua culpa subsista também; Nas palavras deste Padre da Igreja, ela era a porta do diabo (PL 1, col. 1305). Todas as mulheres eram Eva, Maria Madalena, com especial razão.

Eva afirma-se como um modelo de tudo o que é negativo na medida em que era a antítese de Maria, a Virgem. Santo Agostinho di-lo de forma clara e significativa: Morte por Eva, vida por Maria (PL 22, col. 408).

Ora, a Maria Madalena construída com base nas várias mulheres reunidas numa só na tradição cristã latina, éa prostituta que chora aos pés de Jesus, é a pecadora na cidade, numa época em que tornam a desenvolver-se as urbes. Pedro de Celle († 1183) consigna-lhe o epíteto de meretrix e insiste na sua insaciável luxúria (PL 202, col. 837) – mais uma vez, para se vir a arrepender, Madalena teria que ter tido uma vida efectivamente digna de arrependimento, digna do retiro espiritual e físico a que se lançaria no termo da vida.

Realmente, as lendas que a trazem para as costas mediterrâneas de França reforçam a sua procura de privação. Maria Madalena tornara-se eremita, fugia e fustigava a sua carne. De meretrix, Madalena atingia a aura de redentora, patamar que nem a Virgem Maria atingira facilmente. O seu amor por Jesus era maior que o de Pedro. Retomando a ideia de Santo Agostinho, Morte por Eva, vida por Maria , Maria Madalena fazia, através da elaboração de Odon de Cluny, a junção entre esses os dois opostos: Maria Madalena, pecadora como Eva, Maria como a Virgem.

Godofredo de Vandoma vai difundir plenamente esta ideia com base, em especial, num sermão atribuído a este mesmo Odon de Cluny: Isto fez-se para que a mulher que trouxe a morte ao mundo não morresse no opróbio; pela mão da mulher a morte, mas pela sua bocao anúncio da Ressurreição. Tal como Maria sempre virgem nos abre a porta do Paraíso, do qual nos excluiu a maldição de Eva, também o sexo feminino se desembaraçou do seu opróbio por Maria Madalena (PL 133, col. 721).

Para além de Maria, é Madalena que abre as portas do Paraíso aos que se arrependerem. Tornada redentora ao afirmar a maior dimensão da sua humanidade, Madalena criava a imagem de que tudo poderia atingir o inatingível. A iconografia da santa marcará exactamente esta aparente contradição: representada muitas vezes de forma cuidada, linda, luxuriante, revela o que teve de abandonar para seguir a Cristo.

Maria Madalena completava, no fundo, a imagem de uma Eva contemporizada. Nunca se dissera que Eva era bela; nem mesmo que Adão tivera desejo do seu corpo – o pecado em Eva é dissimulado e tornado natural. Em Maria Madalena, numa época em que cresce o gosto por um certo ideal de galanteamento, a vida de corte e toda a poesia trovadoresca que a acompanha, o pecado não surge com a naturalidade de uma Eva a quem nunca se vira a face. Maria Madalena é a tentação em pessoa, o desejo, o corpo pronto para o sexo que cada vez mais é prática numa sociedade ligada à cidade e marcada crescentemente pelo cosmopolitismo.

Maria Madalena será, acima de tudo, esse contraste entre si e si mesma: por um lado, é a imagem da luxúria, da prostituição; por outro lado, é o exemplo do abandono dessas mesmas práticas e, pela sua negação, a vida austera que a levou à superação dessa primeira fase da sua vida.

Exemplo perfeito da capacidade efectiva da penitencia, Maria Madalena seria o melhor factor de entrada de uma nova evangelização nessa tão mal vista realidade social que era a cidade.

Num quadro histórico marcado, essencialmente, pelo rápido crescimento urbano, um pouco por toda a Europa, as ordens religiosas marcarão a necessidade de a Igreja encarar esse novo território. Os mendicantes, Franciscanos e Dominicanos, irão para a urbe encontrar vocação, evangelizar.

O século XIII assiste à tomada de consciência da cristandade de que, afinal, naquela época, a Europa não era assim tão cristã. De facto, toda a cristianização do velho continente fora bastante rudimentar, sem bases teológicas seguras e sem uma sistematização catequética que levasse os crentes a verdadeiras práticas cristãs – a pobreza, por exemplo.

Este século ficará para a cultura medieval como «o século cristão» porque, finalmente, haverá um espírito de evangelização efectiva das populações. Isso implicava ir para junto delas, não mais estar afastado do mundo. Os mendicantes são isso mesmo: religiosos que encontram na mundana, pecaminosa, e corrompida cidade, a matéria da sua vocação.

Francisco, o «Homem Pobre de Deus», il Poverello, ali nasceu e com a cidade criou uma profunda identificação. Dele dizia Dante, em Assis “um sol nasce para o mundo, como por vezes acontece no Ganges”, referindo-se ao santo mais austero da cristandade, um homem venerado ainda em vida.

Segundo a lenda, Francisco teria nascido num estábulo tal como Cristo. Mas, de forma muito diferente da de Jesus, Francisco era nado no mundo da cidade e do rico comércio. Nascido, de facto, em 1182, Francisco era filho de um abastado comerciante de lã, com casa grande e confortável na Piazza del Commune, onde ainda hoje se pode ver o antigo templo a Minerva.

Baptizado com o nome de Giovanni, talvez por a sua mãe ser francesa, ou por o pai ter relações com a França, passou a ser conhecido como Francesco, o francesinho.

Cidade comercial, a Assis do tempo de Francisco era uma urbe que pululava de vitalidade, de dinheiro, de prazeres. Terá sido neste ambiente algo boémio que o futuro santo da igreja terá vivido a sua juventude.

Feito membro da cavalaria da sua cidade na luta contra Perugia, e aos vinte anos conhecia as dores da guerra. Um ano de cativeiro não lhe retirou o interesse por ser armado cavaleiro.

Conta a lenda, qual história de Paulo de Tarso, que um dia, foi impelido a entrar dentro de Igreja de S. Damião. Prostrado frente a um crucifixo, ouviu Cristo dizer-lhe: “Vai, Francisco, e reconstrói a minha casa, porque está a cair em ruínas”. Nesta experiência mística começou a vocação do jovem que, desta forma, não chegou a ser armado cavaleiro. A passagem de culto de Vèzelay para Saint-Maximin mostra exactamente esta rotação na vida de Francisco: de cavaleiro decide mudar para padre, assim como de um local ligado às cruzadas se passará para um onde se centrará a formação dos padres dominicanos – imagens do tempo.

Tomou as palavras à letra e vendeu tudo o que pode e tentou entregar esse dinheiro ao padre de S. Damião. A situação evoluiu para os tribunais onde o pai o deserdou como consequência da sua obstinada ideia de tudo dar. Como gesto simbólico, em pleno tribunal Francisco despiu todas as suas roupas, conforme fresco de Giotto que se encontra na sua basílica.

Aos 24 anos o jovem Francisco tinha percorrido a sua via para a pobreza total, qual Madalena que se afastara da sua vida corrompida e se entregara à vida de ascese.

A sua vida seria radicalmente alterada aquando de uma peregrinação a Roma: o contacto com o luxo e a ostentação, lado a lado com a pobreza total da população, mostrava ao jovem Francisco que a via da pobreza era o terreno fértil para a salvação.

Domigos de Guzmán, nascido em Caleruega por volta de 1170, era oriundo de uma família da pequena nobreza de Castela-a-Velha e não consta que tivesse sido tão duramente marcado pela vida na cidade.

Em 1203 acompanhou o seu bispo a numa viagem ao estrangeiro e ficou consternado com a importância do catarismo no Sul de França. Para ele, a única solução contra essa heresia residia na pregação evangélica. Em 1207 fundou um mosteiro para mulheres heréticas convertidas, em Prouille.

Toda esta região irá ser profundamente dinamizada com o culto a Maria Madalena, exactamente de forma semelhante à que trataremos para o caso português – a imagem de Maria Madalena era a perfeita síntese entre as mais rígidas noções de ortodoxia e as tendências heréticas de certas populações.

Significativamente, em 1215 estaria no IV Concílio de Latrão, onde lhe viria a ser entregue a regra pelo papa, em Dezembro de 1216. Em 1220 e 1221 presidiu aos dois primeiros capítulos da Ordem dos Pregadores, em Bolonha, onde faleceu, sendo então Maria Madalena uma das figuras da ordem.

De facto, tal como Domingos cria um local para recolher mulheres hereges, também outros homens da Igreja criarão outras instituições semelhantes. A prostituta estará no horizonte das mais importantes preocupações dos fundadores de ordens religiosas no século XII. Vital de Savigny dota toda a turba de mulheres que vão desde as meretrizes às concubinas de padres agora abandonadas pelos mais rígidos ditames de Roma.

Roberto de Arbrissel acolhe estas mulheres numa ordem que funda e consagra-lhes um priorado – significativamente, com o nome de Madalena de Fontevraud.

Tal como Francisco responde a um chamamento, também foi de forma semelhante, e apenas um ano antes do nascimento do fundador dos Franciscanos, que supostamente se terá dado o milagre que libertou Carlos II e o obrigou a redescobrir o corpo da santa e a entregar esse local aos dominicanos. Olhemos um pouco melhor para esse mito relatado no Livro dos Milagres de Santa Maria Madalena, talvez escrito nas duas primeiras dezenas de anos do século XIV.

A narrativa remete-nos para o ano de 1279. Carlos II, aprisionado pelos aragonezes, encontra-se preso em Barcelona. A 21 de Julho, preparando-se para a festa da santa, no dia seguinte, confessa-se ao seu confessor, um dominicano, e dedica-se à santa. Durante a noite, num sonho, Maria Madalena aparece-lhe e dá-se o seguinte diálogo que descrevemos:

MM – Que desejas tu de mim?

C – A liberdade.

MM – Então, ergue-te e segue-me.

C – Mas os meus homens ainda estão cativos.

MM- A tua prece foi atendida.

Depois de liberto, dá-se um segundo diálogo:

MM- Onde achas que te encontras?

C – Em Barcelona, no palácio real.

MM – Não, estás a três milhas de Narbonne.

C – E tu, és a Madalena.

MM – Sim, sou eu. Obtive do Senhor a tua libertação.

C – Como poderei agradecer-te?

MM – Encontrando o meu corpo, o qual repousa em Saint-Maximin, o que será provado, e não na Borgonha.

Como já tratado, o copo estaria no sarcófago de S. Sidónio. A profecia dizia ainda que o corpo teria ainda os cabelos que banharam os pés de Jesus e, mais importante em época em que se reproduziam as gestas arturianas, junto do corpo estaria um franco de vidro com terra do calvário, impregnada com sangue do Cristo. Por fim, era a própria santa, nas orientações dadas a Carlos II, que ordenava a entrega dos seus dois locais (Saint-Beaume, onde vivera, e Saint-Maximin, onde fora depositado o corpo) aos dominicanos.

Outra situação do mesmo livro (o milagre 83) nos mostra mais uma vez esta relação inicial entre local e ordem religiosa. Neste caso, integrado no corpo dos milagres, a acção descrita pode ser apontada para 1222 a 1237, em Lyon, época em que Jordão de Saxe era o geral dos dominicanos.

A um recluso, preso numa cela sobre uma capela dedicada a Maria Madalena, a santa aparece durante a noite e diz-lhe o seguinte:

Coloca-te amanhã de manhã à janela que dá para a rua à hora do terço. Verás passar seis religiosos com o hábito dos irmãos pregadores. Tu lhes dirás da minha parte: Santa Maria Madalena apareceu-me esta noite e vos manda, por meu intermédio, estabelecer um convento nesta capela dedicada ao seu nome. Porque a vossa Ordem a servirá mais tarde em Saint-Maximin, ela desejou que a começassem a servir nesta capela.

Mas mais que lendas, onde, naturalmente, encontramos sempre um fundo de realidade factual, a proximidade dos dominicanos ao mundo das mulheres mundanas, pecaminosas, perdidas, vem da sua própria prática ligada a esse novo mundo que é a cidade e a uma vocação que assume a ida para esse horizonte de perdição.

Uma situação surge como paradigmática. Em 1219, Domingos partiu de Bolonha nos fins do mês de Outubro e, atravessando os Apeninos em direcção a Florença, demorando-se algum tempo nas margens do Arno (onde mais tarde a Ordem haveria de erigir os célebres conventos de Santa-Maria-Novella e de S. Marcos). Os nascentes dominicanos já aí tinham uma igreja, junto à qual vivia uma mulher chamada Benê, conhecida pela sua vida desregrada e que Deus castigara, abandonando-a aos ataques do demónio. Ora, nos relatos da vida de Domingos, não só esta mulher perdida vive junto ao local onde os frades vivem, como, e este é o dado fundamental, ao ouvir Domingos pregar, não só se converteu, como as orações do santo a livraram das obsessões que a atormentavam.

Mas, numa época em que a salvação, a expiação, a remissão de culpas e a penitência não são gratuitas, essa rápida “cura” foi para ela uma forma de recaída. Quando um ano depois Domingos voltou para Florença, Benê confessou-lhe os maus efeitos que lhe produzira a sua cura. Perguntou-lhe, Domingos, se queria voltar ao seu antigo estado, respondendo-lhe ela que se entregava a Deus e a ele. Passados alguns dias, de novo a atormentou o espírito maligno, e o próprio castigo das suas culpas passadas tornou-se para ela uma fonte de merecimentos e de perfeição. Reforçada pelo sofrimento, agora consciente que o seu estado lhe incutia, tomou o véu (Vida de S. Domingos , n. 37).

Com episódios como os antes relatados, uns do campo do mito, da lenda, outros aparentemente factuais, se justificava a relação entre uma figura ambígua do cristianismo, mas que tudo tinha para realizar um longo e grande trabalho, com uma das ordens mendicantes.

Redescoberta a mulher, Maria Madalena crescia em culto e devoção, como os seus locais de culto já nos mostraram. Vejamos agora como corria o culto no Portugal da chamada reconquista cristã.