MARIA JULIETA MENDES DIAS
& PAULO MENDES PINTO

Maria de Magdala
a Mulher – a construção
do Culto – o caminho dos Mitos

2.1.2. Iavé e Acherá

Entrando directamente no espaço, na cultura e na religião onde nascerá o cristianismo a que Maria Madalena assistirá e no qual tomou parte, olhemos agora para a relação entre Iavé e Acherá.

A palavra «Acherá» encontra-se quarenta vezes no texto hebraico do Antigo Testamento. Segundo variantes de variantes de género e número (com terminações em at / im / ot, conforme se trate de singular, plural ou masculino ou feminino) designam, regra geral, um objecto de culto, devendo tratar-se de um objecto de madeira, um pilar, talvez representando uma árvore, ou uma verdadeira árvore viva. Assim, Acherá está recorrentemente associada ao altar, ao lado do qual se erguia.

Vejamos Dt 16, 21:

Não plantarás árvores sagradas, de qualquer espécie, ao lado do altar que levantares ao Senhor, teu Deus.

e Jz 6, 25-26:

Naquela mesma noite, o Senhor disse a Gedeão: «Toma um touro gordo e um segundo touro de sete anos; derruba o altar de Baal que é de teu pai, e corta a árvore sagrada que está junto dele. Construirás depois um altar bem preparado em honra do Senhor, teu Deus, no cimo desta rocha firme. Tomarás, então, o segundo touro e oferecê-lo-ás em holocausto sobre a madeira da árvore sagrada que cortaste».

ou, ainda, 2 Rs 23, 6:

Mandou tirar do templo do Senhor o tronco de Achera e levá-lo para fora de Jerusalém, para o vale de Cédron, onde o queimaram. Depois, mandou lançar a sua cinza no sepulcro comum do povo.

Noutra série de textos, menos numerosos, mas muitos significativos, Acherá ganha outro estatuto, assumindo totalmente a natureza de uma entidade divina, uma deusa.

Assim é em 1 Rs 18,19, pela boca de Elias onde, sem dúvida, tem um corpo de profetas em tudo semelhante ao de Baal:

Convoca, pois, junto de mim, no monte Carmelo, todo o Israel com os quatrocentos e cinquenta profetas de Baal mais os quatrocentos profetas de Achera, que comeram à mesa de Jezabel .

Noutro trecho, tem mesmo toda uma panóplia de objectos de culto, de rito (2 Rs 23, 4):

O rei ordenou, depois, ao Sumo Sacerdote Hilquias, aos sacerdotes de segunda ordem e aos porteiros, que tirassem do templo do Senhor todos os objectos fabricados para o culto de Baal, de Achera e de todo o exército dos céus.

E, paralelamente a um grupo de profetas, um corpo de mulheres dedicadas ao seu culto (2 Rs 23, 7):

Destruiu os lugares [...] onde as mulheres teciam véus para Achera.

Logicamente, ambas as entidades aqui referidas, objecto de culto e deusa, seriam duas fases de um mesmo fenómeno religioso; o tronco deveria ser parte do rito e dos lugares de culto da deusa, integrado nos espaços dedicados a Javé no processo de monoteização; logicamente, durante o aprofundar desse processo, não só a divindade foi banida, como qualquer elemento que mantivesse a sua memória.

De resto, vários outros trechos mostram a integração destas figurações de Acherá, ou usadas no culto a Acherá, no culto a Javé, e a sua posterior destruição (2 Rs 21, 7 e, possivelmente, 1 Rs 15,13 e 2 Cr 15,16).

Ora, na Bíblia, Acherá surge frequentemente associada a Baal, entre outros, 2 Rs 17, 16:

Abandonaram todos os mandamentos do Senhor, seu Deus, fabricaram dois bezerros de metal fundido e símbolos de Achera [...]

Jz 3, 11-13:

Os filhos de Israel praticaram o mal aos olhos do Senhor; esqueceram-se do Senhor, seu Deus, e serviram os ídolos do deus Baal e da deusa Achera [...]

1 R 16, 30-33:

Acab, filho de Omeri, fez o mal aos olhos do Senhor, mais do que todos os seus predecessores [...] Ergueu um altar a Baal no templo de Baal, que construiu na Samaria. Acab fez também uma Achera, aumentando a ira do Senhor, Deus de Israel, mais do que todos os reis de Israel seus predecessores.

Mas mais que estes dois deuses, e os seus cultos, andarem bastante próximos e interligados, outros trechos nos dizem de forma explícita que também com Iavé a relação era bastante próxima. Veja-se, por exemplo, 2 R 21, 3-7:

Reconstruiu os lugares altos que seu pai Ezequias destruíra, levantou os altares de Baal, plantou um símbolo de Achera semelhante ao que fizera Acab, rei de Israel e, diante de todo o exército dos céus, prostrou-se em adoração; erigiu altares no templo do Senhor [...] colocou também a estátua de Acherá no Templo do Senhor.

Situação semelhante se pode encontrar no trecho já citado 23, 4. De facto, parece claro que Acherá está próxima, quer de Baal quer de Iavé. Mas, obviamente, o que aqui nos interessa é a proximidade a Iavé, já documentada pela prática ritual no mesmo espaço.

Fora dos textos da Bíblia, reunimos mais e mais sólidos argumentos. A relação íntima entre Acherá e Iavé está confirmada, pelo menos, por três documentos hebraicos extra-bíblicos. Dois deles são grafitos inscritos em duas grandes jarras usadas para guardar mantimentos. Os fragmentos das ditas jarras foram achados nas ruínas de um edifício numa colina situada no norte da península do Sinai, em Kuntillat Ajrud; este edifício pode datar-se para o período entre fins do séc. IX e começos do séc. VIII a.C.

Seguindo Francolino Gonçalves, uma delas apresenta o seguinte texto:

X diz: ‘diz a Iahal[lel’el] e a Io‘asah e [a Z]: Eu te bendigo/abençoo por (por parte de, diante de) Iavé de Samaria e pela sua A/acherá’

Na outra lê-se:

Amaryahu diz: ‘diz ao meu senhor: como estás? Eu te bendigo/abençoo por (por parte de, diante de) Iavé de Teman e pela sua A/acherá. Que ele (isto é, Iavé) te bendiga, te guarde e esteja com o meu senhor...’

A terceira inscrição que associa intimamente Iavé e Acherá provém de uma gruta funerária de um lugar situado a uns 12 km a oeste de Hebron. A inscrição é geralmente datada do séc. VIII a.C. e diz-nos:

1. Uryahu o rico escreveu isto.

2. Abençoado seja Uryahu por Iavé

3. pois dos seus inimigos pela sua (isto é, de Iavé) A/acherá o salvou.

4. por Uryahu

5. pela sua A/acherá

6. e pela sua A/acherá

Parece claro, e sem grande dúvida entre os especialistas, que esta Acherá e a da Bíblia é exactamente a mesma realidade. No entanto, o debate sobre o sentido exacto da palavra A/acherá nas inscrições tem sido intenso: tanto poderá ser a própria deusa Acherá, como, e dando peso ao uso do adjectivo possessivo “sua”, não a própria deusa, mas um objecto que a simbolizava ou representava. De qualquer forma, já no texto bíblico existe a mesma questão entre objecto e entidade divina.

A subtileza gramatical em causa não modifica, na sua essência, o sentido do texto, o seu alcance para a história da religião de Israel e de Judá. Como efeito, falar de Acherá ou falar da sua representação vai dar ao mesmo, pois, aos olhos dos seus fiéis, a representação da deusa implicava necessariamente a sua presença efectiva. O que se nos apresenta como essencial é saber em que se fundava a relação que surge entre esta divindade e o deus que será único (nesta altura Deus, maiúsculado) no quadro de uma futura religião monoteísta na região de Israel.

O mesmo vocábulo, a indicação de posse revelado pelo «sua» avança a nossa leitura para a relação matrimonial. Acherá pertence a Iavé como uma esposa de então pertencia ao respectivo marido. Numa altura, e seguindo os excertos antes apresentados, em que a Iavé corresponde já uma noção territorial, uma pré-nação, implica pensar a existência de uma deusa consorte. Isto é, as inscrições de Kuntillat Ajrud supõem que havia em Israel, em fins do séc. IX ou começos do séc. VIII a. C. quem acreditasse que Iavé, o deus nacional, e Acherá formavam um casal divino. Obviamente, é-nos totalmente impossível perceber até que ponto esta relação matrimonial na construção de Iavé, futuro deus único, seria generalizada ou não.

Ora, este matrimónio deve ser continuação, e em continuidade deve ser entendido, face às divindades anteriores a Iavé. O nome «Israel» faz perceber que a noção territorial e humana terá nascido sobe o patrocínio divino de El, o deus supremo do panteão de Canaã no segundo milénio a.C., poucos séculos antes das inscrições apontadas. Chegado o momento em que, num processo lento, o deus Iavé assumiu o lugar de El, destronando-o, herdou não só os seus atributos divinos, mas também da sua esposa, Acherá. O matrimónio de Iavé e Acherá deve ter durado séculos até à formulação de um monoteísmo pleno, deixando, depois, os vestígios que a início vimos, assim como durara o de El com a mesma figura divina feminina.