Ritualidades

 

 

 

BENTO DOMINGUES, O.P. ................................Público, Lisboa,13.11.2005

1. A propósito da bênção da igreja do Convento de S. Domingos - situada perto da estação do metro do Alto dos Moinhos (Lisboa) -, lembrei que o combate profético ao ritualismo não devia servir para esquecer que os rituais são uma chave de acesso ao modo como o ser humano estrutura e interpreta o mundo que o rodeia. Uma liturgia reduzida à palavra convencional seca a religião da fé cristã e atraiçoa a transfiguradora incarnação de Deus.

Volto a este tema por duas razões. A primeira tem que ver com o Congresso da Nova Evangelização em curso. A segunda nasce do novo caminho proposto por Edward Schillebeeckx, influenciado pela "escola" dos Ritual Studies, para a redescoberta dos sacramentos cristãos.

Quanto ao congresso, é muito cedo para fazer qualquer avaliação, mesmo dos dias já decorridos. Mas, entre nós, a situação actual dos ritos de passagem - baptismo, casamento, santa unção e funerais - reveste uma tal gravidade que o Congresso da Nova Evangelização deveria, no meu entender, começar por aí.

Sei que os párocos e os serviços das paróquias são solícitos em lembrar as normas vigentes para a administração dos sacramentos. Esquece-se, no entanto, que em Portugal o contacto de muitos cidadãos com a Igreja acontece, quase exclusivamente, por ocasião do baptismo das crianças, dos casamentos e dos funerais. Aparentemente, estão ali só por conveniências sociais e familiares. Não participam, nem parecem interessados em participar.

Mas como é possível que os membros activos das comunidades cristãs deixem passar todas essas ocasiões, ao longo dos anos, sem ter uma estratégia clara de evangelização para esses tempos privilegiados? Quando é que a Igreja se decide a colocar os seus especialistas em ciências humanas, em artes, em teologia e em pastoral - com jovens, adultos e anciãos - a estudar esse fenómeno e a projectar caminhos que superem rotinas que prolongam uma situação que marca negativamente os não crentes, assim como os católicos "periféricos", e não torna evangelizadores os "católicos praticantes"?

2. O teólogo E. Schillebeeckx, O.P. - sem dúvida, uma das figuras mais altas do pensamento cristão actual - completou ontem 91 anos. Entrou nos dominicanos em 1934. Estudou Filosofia e Teologia em Lovaina, no Saulchoir e na Sorbonne, onde foi aluno do célebre historiador da teologia P. Dominique Chenu. Depois do doutoramento com a monumental tese De Sacramentele Heilseconomie (A Economia Sacramental da Salvação), publicada em 1952, ensinou Teologia no convento dos dominicanos de Lovaina e na Universidade de Nimega (Holanda, de 1957 a 1983). Conselheiro teológico do episcopado holandês, participou no concílio Vaticano II, de forma muito activa. É membro fundador da revista internacional, Concilium, criada em 1964, da qual tem sido um dos principais animadores. É autor de uma vasta e muito original produção teológica, traduzida em muitas línguas, na qual se podem detectar várias fases. Não seguiu a orientação da teologia transcendental. Começou pelo método da reconstrução histórica das doutrinas, antes de proceder à sua elaboração sistemática e acentuou a sua orientação fenomenológica. Depois do Vaticano II manifestou, nas Conferências Americanas de 1967, uma evidente mudança. Confrontou-se com as novas hermenêuticas, tentando mostrar a correlação entre a fé cristã e a experiência humana. A partir daí, empreendeu a aventura de uma cristologia de fronteira - Experiência Humana e Fé em Jesus Cristo - que lhe exigiu uma longa investigação exegética, histórica e filosófica, expressa em três volumes, provocando a intervenção da Congregação para a Doutrina da Fé. Respondeu a Ratzinger: "Temos a mesma fé cristã, mas hermenêuticas muito diferentes." Mas a inquietação maior surgiu com o abalo provocado pela publicação de algumas obras, na área sacramental e, mais precisamente, no âmbito da correlação entre celebração da eucaristia, comunidade celebrante e presidência dessa celebração.

3. Quando, em 1952, E. Schillebeeckx publicou, em flamengo, a referida tese sobre a natureza dos sacramentos, prometeu um segundo volume, repetidamente anunciado e sempre adiado. Esta tese, referenciada com os maiores elogios, nunca foi traduzida. Surgiu, agora, 52 anos depois, a tradução francesa, na Universidade de Friburgo (1), seguida de um longo texto, do ano 2000, sobre "um caminho para a redescoberta dos sacramentos cristãos", como experiências de sentido e de contraste purificadas nesses santos rituais.

É precisamente sobre a problemática e as exigências da ritualidade, investigadas pelas ciências humanas, que este notável teólogo da fenomenologia e da hermenêutica da fé cristã apresenta as condições de uma redescoberta dos sacramentos e da liturgia. É apenas o esboço do segundo volume, mas já desenvolve em pormenor as razões da fecundidade em trabalhar com instrumentos que a teologia patrística, medieval e da contra-reforma não podiam ter. Não renega a sua tese de 1952. Mostra, porém, que hoje é possível fazer outra coisa, alargando e aprofundando, com outros recursos, a intuição de Tomás de Aquino: "Os sacramentos pertencem à categoria do signo." Não é pela fuga para o dogmatismo - mesmo que ele revista a figura hermenêutica de uma "neo-ortodoxia" - que a fé católica pode manter-se de pé em tempos difíceis.

Às vezes são necessárias rupturas, porque o homem, enquanto tal e também enquanto crente, é um ser cultural-histórico. Isto vale para os indivíduos e para os institutos religiosos. Todavia, ritualidade e criatividade não se excluem. Os fiéis não estão colados aos arquivos e aos regulamentos históricos das celebrações rituais de épocas passadas. Um ritual tem o seu contexto.

Na prática sacramental e na teologia, temos questões sem resposta suficiente e questões inúteis que não precisam de resposta.

 
(1) Edward Schillebeeckx, OP, L"Économie Sacramentelle du Salut, Academic Press Friburg / Saint Paul Friburg Suisse, 2004.